DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n3p779-798
Anísio Teixeira: Dom Quixote Nacional
Wilson Sandano
Sâmara Rodrigues de Ataíde
Resumo: Este artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre vida, obra e ação político-educacional de Anísio
Teixeira em análise comparativa com Miguel de Cervantes, na obra Dom Quixote e com Lima Barreto, na
obra Triste fim de Policarpo Quaresma. Busca-se, na confluência entre esses três vultos históricos, analisar
o caráter heroico e idealista, o espírito ufanista, bem como as questões de denúncias sociais que permeiam
a trajetória dos mesmos.
Palavras-chave: Anísio Teixeira. Denúncia social. Caráter heroico.
Anísio Teixeira: Don Quixote National
Abstract: This article aims to draw a parallel between Anísio Teixeira’s life, work and political-educational action in
comparative analysis with Miguel de Cervantes, in the work Don Quixote and with Lima Barreto, in the
work Triste fim de Policarpo Quaresma. At the influence of these three historical figures, it is sought to
analyze the heroic and idealistic character, the spirit of pride, as well as the questions of social
denunciations that permeate their trajectory.
Keywords: Anísio Teixeira. Social denunciation. Heroic character.
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Vamos demolir, arrebentar o sistema que não se preocupa comigo, que não me dá valor, que
não foi capaz de perceber a grandeza de meu espírito [...]. É chegada a hora de reformarmos
a sociedade, a humanidade, não politicamente, que nada adianta, mas socialmente, que é
tudo (Lima Barreto).
Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, pelo contrário, a sua
existência social que determina a sua consciência (Karl Marx).
Miguel de Cervantes de Saavedra, célebre autor espanhol, cuja principal obra é Dom
Quixote, nasceu em meados do século XVI, em 1547, e faleceu em 1616, aos 69 anos. Apesar de
toda a glória alcançada por sua obra, que se tornou um cânone de expressão mundial, pertencendo
ao patrimônio cultural da humanidade, ao final de sua vida, viveu isoladamente, desprovido de
amigos, de dinheiro e de saúde.
Esquecido e incompreendido, o mundo já não lhe interessava. Em silêncio, recolheu-se a
um convento franciscano e, no mês de abril de 1616, teve como última morada um túmulo
despojado e sem lápide, como convinha a um franciscano.
Afonso Henriques de Lima Barreto, incompreendido autor brasileiro, há pouco resgatado
pela crítica e escritor homenageado neste ano de 2017, pela XV edição da Festa Literária de
Paraty (FLIP), nasceu no Rio de Janeiro no final do século XVIII, em 1881, e faleceu nesta
mesma cidade, em 1922. Tendo escrito, em sua breve vida, inúmeras obras entre romances, entre
os quais se destaca o Triste fim de Policarpo Quaresma, além de contos, de sátiras política e
literária, de artigos e crônicas e, dentre outros, memórias, sofreu com crises de depressão e com
problemas advindos do alcoolismo.
Também esquecido e incompreendido, sentiu na pele o preconceito devido à mestiçagem
étnica de suas origens, bem como as privações econômica e social advindas dela. Internou-se por
duas vezes no Hospício Nacional e faleceu de prematuro colapso cardíaco aos quarenta e um anos
de idade.
Anísio Spínola Teixeira, escritor, político, administrador público, homem de discurso e
filósofo da educação. Seu maior legado foi a propagação do papel transformador da escola e da
educação no Brasil, objetivando a construção de uma sociedade moderna e democrática. Nascido
em Caetité, Bahia, em 1900, e encontrado morto, em situação obscura, mais tarde revelada,
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em 11 de março de 1971, a trajetória de trabalho deste filósofo teve por principal mérito se
dedicar à reconstrução da escola brasileira, em seus diferentes níveis de ensino.
Tendo denunciado a frágil situação do ensino primário brasileiro, sobretudo o caráter
seletivo e dualista da educação, ao preparar os privilegiados de classe social para a continuidade
deste privilégio e ignorar a emancipação pelo trabalho produtivo do homem comum, Anísio
Teixeira incomodou aqueles que gostariam de manter o status quo. Desta forma, foi
covardemente assassinado, aos 70 anos de idade, sob uma incoerente e frágil maquiagem
arquitetada de um acidente em elevador.
Em comum, estes três vultos têm como principal semelhança, além da vida e da obra se
entrelaçarem quanto ao espírito idealista e aventureiro, a denúncia social, a transgressão política e
o desmascaramento das hipocrisias, mas que nem sempre se sentiram em pertencimento, o olhar
de buscar além e de, consequentemente, serem punidos por seu caráter inconformado e
audacioso.
Miguel de Cervantes e Lima Barreto são escritores que produziram importantes obras
literárias e têm em comum a utilização da denúncia e da crítica social por meio de suas
personagens. Anísio Teixeira é um grande nome da Educação e defendeu por meio da gestão e da
política educacional a transformação da sociedade.
Miguel de Cervantes: o aventureiro utópico
O famoso autor espanhol Miguel de Cervantes de Saavedra viveu entre meados do século
XVI e início do século XVII, época histórica da denominada Idade Moderna, marcada por
grandes transformações, descobrimentos e comércio com colônias europeias no Novo Mundo, o
que representou uma verdadeira revolução econômica, com o que se caracterizou como primeira
etapa do capitalismo moderno e a formação de grandes Estados, bem como uma era de conflito
na Igreja como instituição centralizadora de poder
(Movimentos de Reforma Protestante e
Contrarreforma), além da, e não menos importante, efervescência artística, intelectual e literária.
Em 1597, o autor iniciou a escrita de Dom Quixote, tendo publicado a primeira parte em
1605 e a segunda, menos conhecida, apenas em 1615.
Filho de um modesto barbeiro-cirurgião e de uma plebeia que, em busca de melhores
condições de vida, viajaram pelo interior da Espanha, Cervantes foi o quarto filho de sete
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outros. Sua parca condição social, em uma numerosa família, não lhe permitiu uma educação
formal cuidadosa, tampouco uma vida com maiores confortos.
Entretanto, aos vinte anos de idade, recebeu lições do mestre Juan López de Hoyos, um
humanista espanhol. Nesta ocasião, o contato com jovens e aventureiros despertou-lhe o desejo
de se aventurar por outros países a fim de conhecer povos e costumes.
[...] e então ele aceita o convite de um nobre cardeal para servir em sua casa, na Itália.
Esse país assiste ao crepúsculo do Renascimento, movimento artístico revolucionário
que teve como expoentes Rafael, Bramante, Michelangelo, Leonardo da Vinci, entre
outros, e que produziam estupendas obras-primas (VIDA..., 2002, p. 9).
Aos 24 anos de idade, desejando se tornar soldado, filiou-se ao exército espanhol e lutou
contra os turcos na Batalha de Lepanto, na costa oeste da Grécia. Apesar da vitória das Forças
Cristãs da Santa Liga, o espanhol foi seriamente ferido, perdendo o movimento da mão esquerda.
Em 1575, em nova expedição militar, foi preso por corsários, passando cinco anos de
sofrimento no cativeiro em Argel, sendo libertado mediante uma alta quantia de dinheiro de
resgate dada aos turcos e recolhida por meio de seus familiares, de alguns fidalgos e de padres.
De volta à sua cidade natal, Cervantes caiu no esquecimento popular. Não recebeu
medalhas de honra, tampouco a prometida promoção a capitão, apenas contraiu dívidas. Então,
tornou-se soldado raso nas tropas de Filipe II para sobreviver mas, pouco tempo depois,
desiludido com a carreira militar e desprovido de recursos materiais, depôs a espada.
Miguel de Cervantes também não foi bem-sucedido em sua vida amorosa. Casando-se em
1584, com Catalina de Saavedra, quase vinte anos mais nova, a quem, “[...] falta o gosto pelas
coisas dompsticas e o apego à família e ao lar” (VIDA..., 2002, p. 11), além da não aprovação da
esposa por seu espírito aventureiro, um ano após o casamento, com a infidelidade da mulher, o
casal se separa.
Como precisava sobreviver, após perder um importante cargo de comissário, exerceu a
função de coletor de impostos. Porém, devido à sua natureza livre e pouco afeita a números,
complicou-se ao ser acusado de desvio de verbas e, até que se provasse sua inocência, foi
encarcerado em Sevilha, local em que iniciou a escrita de sua obra-prima, Dom Quixote, o
Engenhoso Fidalgo de La Mancha.
Mesmo tendo a obra alcançado êxito com seis edições, sendo à época traduzida para as
línguas inglesa e francesa, alçando o autor à tão esperada consagração literária, e recebendo
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homenagens em vida, este sucesso foi efêmero e não lhe poupou a miséria, o esquecimento e o
desencanto com a vida.
É deveras importante ressaltar que a vida de Miguel de Cervantes parece entrelaçar-se
com a de sua personagem mais cplebre, Dom Quixote de La Mancha. Depois de “secar o
cprebro” devido às muitas leituras de romances de cavalaria, obras populares que datam do fim
da Idade Média ao início do Renascimento, livros que lhe consumiram o dinheiro e a fortuna
herdados de seus familiares, acarretaram o descuido com suas terras e bens materiais e
proporcionaram-lhe o ócio do deleite e da fruição dos livros, o fidalgo Alonso Quijano decide se
tornar um cavaleiro andante, à maneira de seu herói, Amadis de Gaula, para que se resgatasse, em
suas peregrinações, a justiça, o altruísmo, a bondade e, consequentemente, a fama.
Posto a seu cavalo nome tanto a contento, quis também arranjar outro para si; nisso
gastou mais oito dias; e ao cabo disparou em chamar-se Dom Quixote; do que, segundo
dito fica, tomaram ocasião alguns autores desta verdadeira história para assentarem que
se devia chamar Quijada, e não Quesada, como outros quiseram dizer. Recordando-se,
porém, de que o valoroso Amadis, não contente com chamar-se Amadis sem mais nada,
acrescentou o nome com o do seu reino e pátria, para a tornar famosa, e se nomeou
Amadis de Gaula, assim quis também ele, como bom cavaleiro, acrescentar ao seu nome
o de sua terra, e chamar-se “Dom Quixote de La Mancha”, com o que, a seu parecer,
declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria, a quem dava honra com tomar dela o
sobrenome (CERVANTES SAAVEDRA, 2003, p. 33).
Para tanto, promove uma autodenominação de Dom Quixote e alça seu vizinho, Sancho
Pança, ao cargo de seu fiel escudeiro.
Neste meio tempo, solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem (se
tal título de pode dar a um pobre), e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse,
tanto lhe martelou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de
escudeiro. Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote que do pé para a mão ganhasse
alguma ilha, e o deixasse por governador dela. Com estas promessas e outras quejandas,
Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos, e se assoldadou
por escudeiro do fidalgo (CERVANTES SAAVEDR, 2003, p. 57).
Saindo pela Espanha em busca de aventuras, deparam-se com várias enrascadas em suas
andanças como confundir os moinhos de vento com figuras de gigantes, tomar humildes
estalagens por nobres castelos, rebanhos de ovelhas por exércitos ou, ainda, de sofrerem
violências físicas em diversas passagens da obra, devido à fantasiosa interpretação de Dom
Quixote e o servilismo, por vezes interesseiro, de Sancho Pança.
É importante salientar que a obra possui inúmeras peripécias ilustrativas para o que se
propõe neste trabalho. Mas, devido à brevidade de extensão deste, será necessário fazer um
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recorte para o que se supõe de mais relevante, como a imbricação da obra ficcional com a vida de
Miguel de Cervantes, a exemplo, sobre o aproveitamento autobiográfico de sua passagem no
cativeiro em Argel, bem como a exposição de seu pensamento contra os padres da corte
espanhola, a quem considerava hipócritas.
O desfecho da obra é de fracasso e de fundo moralizante, assim como ocorre com o autor
Cervantes ao final de sua vida, conforme elucidado anteriormente. Temos uma aura de
desencanto e impotência do herói, travestido de aparente loucura, embora com nobres propósitos,
diante das injustiças do mundo, que teima em ser a terra dos mais poderosos e daqueles que estão
em vantagem ou devido à força bruta ou às riquezas econômicas.
Recobrando sua lucidez e demonstrando-se arrependido e ao mesmo tempo aliviado por
ter recobrado sua consciência, o fidalgo Alonso Quijano assiste, com o declínio da sua loucura ao
desmoronamento de toda a idealização e fantasia de um mundo utópico construído com castelos
no ar e com o enfrentamento de gigantes de longos braços, disfarçados em moinhos de vento.
Assim, a morte vem cobrar seu preço para quem ousou olhar o mundo de forma pouco
usual, preferindo à forma chã, terra a terra, a aventura de um projeto que lhe engrandece, pois só
um homem com projetos é capaz de ser visionário, de se descobrir e de se atualizar quanto ao
sentido e significado da vida, relativizando, assim, a ideia preconcebida de sua própria loucura.
Lima Barreto: aguda percepção dos contrastes sociais
O autor Afonso Henriques de Lima Barreto, em sua explícita percepção dos contrastes
sociais brasileiros, marca distintiva de sua obra, nutre profunda simpatia para com os humilhados
e ofendidos. Sua escrita está permeada de sátiras contra a burguesia bem posta na vida, de
manifestos literários contra a hipocrisia e refratária às falsas aparências.
Escrevendo uma literatura, inédita no Brasil, do povo e para o povo, sofrendo
preconceitos sociais, vivendo às margens de uma sociedade burguesa e preconceituosa, Lima
Barreto:
Sem o saber, esse pobre mulato dos subúrbios antecipava em seus textos a moderna
atitude do narrador que se recusava a ver o mundo de cima, a salvo das ameaças. Na sua
“alma de bandido tímido”, a obra não preexistia ao processo que a originava, assim
como não dependia de mais um estado de ser especial e singular para gerá-la. Ela
acontecia aqui e agora, banalizada no tempo e no espaço do leitor, no curso das pequenas
coisas apanhadas na rua, no acaso que se organizava, depois, em testemunho
(BARRETO; PRADO, 1980, p. 102-103).
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Quanto ao contexto histórico, o Brasil vivenciava a chamada República Velha (1894-
1930), em que preponderava a hegemonia dos proprietários rurais de Minas Gerais e de São
Paulo, a política dos governadores “cafp com leite”, somando-se à força da pecuária a lavoura
cafeeira, conforme nos atesta Bosi (2006):
É claro que a camada de “nobreza” fundiária, via de regra conservadora, não esgotava a
faixa do que se costuma chamar “classes dominantes”. Havia, num matizado segundo
plano, atuante e válido em termos de opinião: uma burguesia industrial incipiente em
São Paulo e no Rio de Janeiro; profissionais liberais; e, fenômeno sul-americano típico,
um respeitável grupo intersticial, o Exército, que, embora economicamente preso aos
estratos médios, vinha exercendo desde a proclamação da República um papel político
de relevo (p. 304).
Porém, devido ao processo de urbanização e à vinda de imigrantes europeus ao Brasil,
após o processo de libertação dos escravos, este quadro da sociedade brasileira sofreu alterações
significativas, aumentando a classe operária e o subproletariado, além do declínio da cultura
canavieira do Nordeste que, diante da ascensão do café paulista, perdeu seu poder de
competitividade.
Pertencente ao que se chama Pré-Modernismo brasileiro
“nome que designa
genericamente toda a produção artística nacional que se corresponde ao final do século XIX ao
ano de 1922, cujo marco foi a Semana da Arte Moderna, dando início à Primeira Fase do
Modernismo Brasileiro” (Fala dos autores), Lima Barreto pertencia à camada social mais
humilde da população. Sua condição de jornalista pobre e consciente de sua própria situação “às
franjas da sociedade burguesa”, motivaram seu socialismo, segundo Bosi, “maximalista” (2006,
p. 316).
Filho de um tipógrafo e de uma professora primária, ambos mestiços, Lima Barreto
perdeu a mãe aos sete anos. A este primeiro revés da sorte, somaram-se outros, como a demissão
do pai da Imprensa nacional, em ocasião da Proclamação da República, devido ao fato de ter sido
indicado pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho de seu filho.
Devido à proteção do Visconde, Lima Barreto, agora morando na Ilha do Governador, na
Colônia de Alienados, em que seu pai exercia o cargo de almoxarife, completou o curso
secundário, matriculando-se, em seguida, na Escola Politécnica.
Todavia, sem concluir os estudos, o futuro escritor enfrentou outro golpe do destino e seu
pai tendo enlouquecido e recolhido à Colônia em que trabalhava, restou a Lima Barreto a saída
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de viver como pequeno funcionário, amanuense, da Secretaria da Guerra e como colaborador da
imprensa.
Por volta dos vinte anos de idade, Lima Barreto, leitor voraz, sobretudo da literatura russa
do séc. XIX, já havia elaborado quase todos os seus romances, tendo contato com a tradição
realista e social que vinha ao encontro de sua própria história de vida.
O ressentimento do mulato enfermiço e o suburbanismo não o impediram, porém, de ver
e configurar com bastante clareza o ridículo e o patético do nacionalismo tomado como
bandeira isolada e fanatizante: no Major Policarpo Quaresma afloram tanto as revoltas
do brasileiro marginalizado em uma sociedade onde o capital já não tem pátria, quanto a
própria consciência do romancista de que o caminho meufanista é veleitário e impotente
(BOSI, 2006, p. 318).
Triste fim de Policarpo Quaresma, obra em estudo neste ensaio, é seu trabalho mais
conhecido, um romance escrito em terceira pessoa, cujo protagonista, o Major Policarpo
Quaresma, ufanista obsessivo que, aliado ao caráter ingênuo e entusiasmado, luta a favor do
fanatismo xenófobo, aproximando-o, segundo o crítico Oliveira Lima, da criação de Cervantes:
Dom Quixote de La Mancha.
No dizer arguto de Oliveira Lima, tem Policarpo algo de quixotesco, e o romancista
soube explorar os efeitos cômicos que todo quixotismo deve fatalmente produzir, ao lado
do patético que fatalmente acompanha a boa-fé desarmada. Seus requerimentos pedindo
às autoridades que introduzissem o tupi como língua oficial; sua insólita forma de
receber as visitas, chorando e gesticulando como um legítimo goitacá; suas baldadas
pesquisas folclóricas na tapera de uma negra velha que mal recorda cantigas de ninar: eis
alguns recursos do autor para ferir a tecla do riso. Mas o episódio da morte de Ismênia, o
contato e a desilusão de Quaresma com Floriano e a sua ‘falange sagrada’ de cadetes
(descritos em páginas antológicas), as desventuradas experiências junto à terra e,
sobretudo, as páginas finais de solidão, voltam a colorir com a tinta da melancolia a
prosa limabarretiana (BOSI, 2006, p. 319-320).
Mestiço, com educação escolar incompleta, sofrendo de alcoolismo, Lima Barreto
denuncia a hipocrisia a as falsas aparências da sociedade de seu tempo e exprime a si mesmo na
prosa ficcional.
Jamais se libertou da discriminação e da penúria, sendo visto até a década de setenta,
quando foi redescoberto pela crítica, preconceituosamente como um autor de segundo escalão,
bêbado cambaleante pelas ruas do Rio de Janeiro e militante contra a burguesia porque havia
lido, como poucos, os escritores russos cuja ideologia lhe infiltrou pela mente.
Entretanto, a crítica da contemporaneidade o redimiu, atribuindo-lhe a justa importância
no cenário nacional e a inovação ao ser um:
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[...] escritor claro e objetivo que começava a pôr a literatura nas praças e nos botequins,
nas ruas e nas fábricas, nos trens de subúrbio e nos morros do Rio de Janeiro,
inaugurando uma mobilidade em que o espaço e o tempo como que se desmistificavam,
para se transformar em circunstância integrada à experiência do leitor (PRADO, 2012, p.
57).
Antônio Arnoni Prado, na organização da obra intitulada Lima Barreto: uma biografia
literária, tece elogios ao autor, reconhecendo seu mérito:
Poucos como ele souberam, na época, reconhecer a importância política da Revolução
Russa de 1917 e sua visão acerca dos problemas sociais do pós-guerra, era das mais
lúcidas e penetrantes. Não chegou a ser um marxista, deixando-se influenciar tanto pelo
liberalismo sperenciano como pelo anarquismo de Kropotkine. Seus escritos, porém,
manifestavam sempre a intenção sincera de libertar as massas, razão pela qual acabou
sendo um dos partidários do maximalismo (PRADO, 2012, p. 58).
Para que se elucide a natureza do que se propõe neste trabalho, é importante que se faça,
ainda que resumidamente, um apanhado a respeito da obra.
Triste fim de Policarpo Quaresma, cujo título já antecipa ao leitor o infeliz desfecho do
protagonista da obra, trata-se de uma caricatura do nacionalismo ingênuo, xenófobo e fanático,
do Major (título sem valor legal, na obra) Quaresma que, incomodado com a descaracterização
que se encontram a cultura e a sociedade brasileira, ambas cada vez mais afeitas aos moldes
europeus, elabora um plano de mudança a fim de evitar a perda do caráter nacional.
A obra apresenta três partes distintas, que também caracterizam três quadros da história
nacional brasileira, sendo que a primeira, divertida e leve, apresenta o sofrimento do Major
Quaresma que, incompreendido em seu nacionalismo xenófobo, torna-se uma espécie de Dom
Quixote nacional, um otimista incurável, um ingênuo visionário.
O Major é um funcionário público exemplar, burocrata cumpridor de seus deveres, além
de um extremado nacionalista que se interessa pelo folclore brasileiro, pela música e pelo violão,
além das riquezas fluviais, minerais e vegetais brasileiras:
Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo
inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e
absorvente. [...] Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predileção por esta ou
aquela parte de seu país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não só eram
os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não eram o ouro e os
diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabara, não era a altura da Paulo Afonso,
não era o estro de Gonçalves Dias ou o ímpeto de Andrade Neves - era tudo isso junto,
fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro (BARRETO, 1995, p. 5).
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Depois de redigir um requerimento em que sugere ao Congresso Nacional a adoção do
tupi-guarani como a língua oficial do Brasil, o Major é ridicularizado nos jornais, nos meios
burocráticos e na própria repartição. É suspenso de suas funções e trancafiado em um hospício.
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. [...] Na repartição, os
pequenos empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo do
idioma tupiniquim, deram não se sabe porque em chamá-lo - Ubirajara. Certa vez, o
escrevente, ao assinar o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em
tom chocarreiro: “Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando? (BARRETO, 1995, p.
6).
Na segunda parte da obra, desiludido com as incompreensões, depois de ter sido internado
em uma casa de repouso, Policarpo Quaresma se retira para o campo, adquire terras abandonadas,
o sítio Sossego, e pretende transformá-las, em empenho novamente quixotesco, em exemplo de
produtividade, já idealizando uma revolucionária reforma da agricultura brasileira, mas é traído
pelas formigas saúvas que destroem seu cultivo:
Quase todas as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às centenas,
pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam em ruas
transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam;
nada de atropelos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era regulado a toques
de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas pelo pecíolo, cá em baixo, outras
serravam-nas em pedaços e afinal eram carregadas por terceiras, levantando-as acima da
descomunal cabeça, em longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a erva rasteira.
(BARRETO, 1995, p. 11).
Finalmente, a terceira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma retrata a Revolta da
Armada, transformando a obra em uma sátira política ao evidenciar o apoio dado pelo Major a
Floriano Peixoto, lutando contra os rebeldes amotinados na baía de Guanabara para, assim,
defender a ordem republicana ameaçada. Nesta fase, Quaresma recobra sua lucidez e consegue
identificar o quão interesseira e movida por circunstâncias vantajosas é a política.
Enquanto seus conhecidos militares transformam a Revolta como expediente para
benefícios próprios, Policarpo, aos poucos, consegue distinguir as duas imagens do Marechal: o
déspota do revolucionário concebido em seus sonhos de patriota.
Mesmo decepcionado, não foge à luta, mas p desautorizado por não possuir “espírito
guerreiro” e considerado um visionário pelo próprio Floriano Peixoto. Ao fim da Revolta, e com
a vitória de Floriano, ferido e doente, é rebaixado à posição de carcereiro.
Entretanto, ao redigir um protesto em defesa de alguns soldados inexplicavelmente presos
sob suas vistas, é encarcerado e mandado para a Ilha das Cobras.
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SANDANO, Wilson; ATAÍDE, Sâmara Rodrigues de. Anísio Teixeira: Dom Quixote Nacional.
O nacionalista exaltado, que após anos dedicados aos estudos da pátria, já não se julga em
condições de propor e de lutar por reformas radicais no país, tampouco em escrever grandes
obras que visavam à emancipação de um povo. É, injustamente, fuzilado pela ordem arbitrária de
quem ajudou a defender, lutando em sua causa.
O desfecho da obra apresenta, em seu ápice, a reflexão do protagonista a respeito de sua
ingenuidade e honestidade tolas e quixotescas, que o levaram à morte:
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada.
Levara toda ela na miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito
de contribuir para sua felicidade e prosperidade. Gestara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também, e, agora, que estava na velhice como ela o recompensava, como ela o
premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de
fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado da
existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não
provara, ele não experimentara (BARRETO, 1995, p. 188).
Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo,
envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a
pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em
holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo,
e sem sequer uma asneira!
Nada deixava que se afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.
(BARRETO, 1995, p. 189)
Assim se configura o “triste fim” do Major Policarpo Quarema. A incredulidade na
política e a lucidez de que sua vida quixotesca, na defesa e na construção do engrandecimento da
pátria, foram em vão. Pela pátria viveu e, em defesa dela, foi brutalmente assassinado.
Anísio Teixeira: a educação como direito
Visando à concretização de uma sociedade mais justa, o terceiro e último vulto tratado
neste artigo, Anísio Teixeira, em sua atuação político-educacional, possuía como lema a
educação como direito e não como privilégio das elites.
Perpassando por diversos momentos políticos como o início do regime Republicano, que
assinalava a modernização do país não só com o início do processo industrial e consequente
urbano, mas também, e sobremaneira, do “início” da escolarização, Anísio Teixeira promoveu e
participou de importantes projetos e reformas educacionais, além de colaborar para a constituição
de valorosas instituições, entre elas o INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), a
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CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e a UnB (Universidade
de Brasília).
Tendo ocupado diferentes cargos políticos, na Bahia e no Rio de Janeiro, cujo objetivo
primordial era a reconstrução da escola brasileira, o filósofo foi afastado da administração
pública em duas ocasiões, a saber: em 1935, pelo Governo Getúlio Vargas e em 1964, pelo
governo militar.
Seu caráter corajoso e quixotesco, mostrou-se muito prematuramente. Formando-se em
bacharel em Direito, atendendo ao desejo paterno, que idealizava para o filho a carreira jurídica,
assumiu o cargo de Inspetor Geral do Ensino da Bahia, surpreendendo a todos:
[...] julgou-se despreparado para enfrentar os desafios educacionais do período. Logo,
enveredou-se pelas leituras na área de educação e realizou viagens pedagógicas, cujo
intuito era observar os sistemas escolares de países como França, Bélgica, Itália e
Espanha. Em 1927, realizou a primeira visita aos Estados Unidos e, no ano seguinte,
quando retornou ao Brasil, publicou o primeiro estudo brasileiro sistematizado das ideias
de John Dewey. [...] os estudos realizados por Anísio nesse período foram fundamentais
para a mudança e seu pensamento, pois foi o primeiro contato com a visão científica do
mundo por meio do método experimental (CARBELLO; RIBEIRO, 2014, p. 69).
Vanguardista, foi um dos integrantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em
1932, que almejava uma grande reforma educacional, abrangendo tanto a filosofia da
educação e a política educacional, quanto traçando reformulações pedagógico-didáticas
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 52).
Visando a uma sociedade mais justa e igualitária, o educador defendia a democracia no
sentido de que tanto as diferenças individuais, quanto as sociais, bem como as de aptidão, não
seriam empecilhos para a constituição de um país igualitário, tendo como chave-mestra a
educação desprovida de privilégios de classe, fundamentada no tripé indústria, ciência e
democracia, pois:
Anísio entendia que o desenvolvimento econômico, político, social e cultural da nação
brasileira, fundamento de tão desejada emancipação do país, não derivaria tão somente
da intervenção direta do Estado na economia nacional, mas, sobretudo, de sua atuação
no campo educacional, implementando reformas de base imprescindíveis para sua
adequação à nova condição socioeconômica que iniciara a se gestar no país, com o
advento do processo de industrialização, particularmente a partir da Primeira Guerra
Mundial (CORSETTI; ECOTEN, 2012, p. 94).
A indústria representava, juntamente com a educação, a possiblidade de implementação
de novos hábitos na sociedade brasileira, bem como o alcance do progresso e da democracia. Para
tanto, a escola seria um dos fatores para que se alcançasse o equilíbrio social, assumindo para si
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tarefas até então destinadas à família e à comunidade, que iam além da transmissão de
conhecimentos.
Passou, portanto, a ser papel da escola a educação intelectual e moral de todos os cidadãos
como condição sine qua non para a obtenção do equilíbrio social na obediência e na ordem moral
e cívica dos cidadãos, bem como a submissão ao Estado regulador político e econômico:
A escola deve vir a ser o lugar onde a criança venha a viver plena e integralmente. Só
vivendo, a criança poderá ganhar os hábitos morais e sociais de que precisa, para ter uma
vida feliz e integrada, em um meio dinâmico e flexível tal qual o de hoje (TEIXEIRA,
1971, p. 39).
Além de exímio político e administrador, Anísio Teixeira foi autor de vasta produção
escrita, que refletiu a estreita relação existente entre sua vida pública e seu pensamento.
Propôs nova formação de professores, visando também à erradicação do analfabetismo da
sociedade brasileira, preparando, assim, o trabalhador urbano para o mercado.
Defendeu a elaboração de nova política educacional, rompendo com a dualidade da
educação, que servia, até então, para atender às elites sociais do país. Dessa forma, a educação
não deveria ser direcionada aos mais “capazes”, mas atingir a todos. A escola deveria abarcar
todos os que necessitavam dela para que pudessem fazer parte da sociedade moderna.
Com esta ideologia, Anísio Teixeira desmascarou a defasagem que havia no ensino,
discrepante e alienado das necessidades sociais da época, configurando-se como um autêntico
representante do pensamento educacional liberal do Brasil:
Basicamente, o ideário liberal caracterizou-se por quatro aspectos: a igualdade de
oportunidades e democratização da sociedade via escola; a noção de escola ativa [...]; a
distribuição hierárquica dos jovens no mercado de trabalho por meio de uma hierarquia
de competências e não por outro mecanismo qualquer; e, por fim, a proposta da escola
como posto de assistência social.
[...] Anísio Teixeira enfatizou a relação entre a
democracia e a educação no mundo moderno (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2006, p. 55-
56).
Outra ideia renovadora, compartilhada pelos escolanovistas, foi a respeito da
descentralização da educação. Anísio Teixeira defendeu a municipalização educacional, pois
considerava esta estratégia benéfica para a sociedade industrial moderna, caracterizando uma
reforma política e não simplesmente pedagógica ou, ainda, administrativa.
Entretanto, a municipalização não eximia o Estado de sua responsabilidade com a
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educação, pois a ele caberia criar e manter escolas, além de promulgar uma legislação específica
para a educação.
Por meio de pesquisas e levantamento de dados, o pensador problematizou a questão da
reprovação escolar, que impactava diretamente na evasão dos alunos nos primeiros anos de sua
vida na escola. A instituição de ensino que mal ensinava a ler, a escrever e a contar, além de ser
escassa, era ineficaz sendo, portanto, salutar que o Estado assumisse o papel de regulador da
educação.
Assim, em 1932, a reforma educacional implementada pelo pesquisador no Distrito
Federal, refletiu suas ideias sobre organização e administração do ensino, como regular
matrículas e frequências e, dentre outras medidas, classificar e promover alunos, visando ao
melhor aproveitamento dos prédios, distribuição de professores e detectando falhas sobre o
cumprimento da obrigatoriedade escolar, caracterizando-se, assim, em um verdadeiro sistema
escolar que precisava ser constantemente estudado e modificado para que funcionasse
satisfatoriamente.
Repensando os programas escolares, Anísio Teixeira defendia que a escola deveria, desde
o nível primário, “formar no aluno os hábitos fundamentais e as atitudes gerais para com a vida e
o trabalho” (CORSETTI; ECOTEN, 2012, p. 105).
A escola passa, portanto, a “ensinar a fazer”, tornando todas as crianças capazes e
distribuídas não apenas por ano escolar, mas também pela idade mental e quociente intelectual,
além dos critérios de aproveitamento escolar e de idade cronológica.
É importante destacar a influência norte-americana em sua obra, seja por meio do estudo
de autores, como o de John Dewey e William Kilpatrick, seja por processos avaliativos e planos
de reorganização escolar.
Na década de 30, Anísio idealizou prédios escolares conjugados, as denominadas escolas-
classe e escolas-parque, que garantiriam a presença da criança na escola nos dois turnos. Porém,
conforme Cavaliere, apenas em 1950 a ideia foi concretizada com a implantação do Centro
Educacional Carneiro Ribeiro:
O complexo educacional idealizado por Anísio Teixeira constava de quatro escolas-
classe com capacidade para mil alunos cada, em dois turnos de quinhentos alunos, e uma
escola-parque. [...] A escola-parque complementava de forma alternada o horário das
escolas-classe, e assim o aluno passava o dia inteiro no complexo, onde também se
alimentava e tomava banho.
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O Centro Carneiro Ribeiro tinha capacidade para quatro mil alunos, que lá permaneciam
de 7h30 às 16h30. Anísio Teixeira pretendia construir ao todo nove Centros como esse,
que lembrariam uma universidade infantil e ofereceriam às crianças um retrato da vida
em sociedade (CAVALIERE, 2010, p. 256).
Desta forma, a preocupação de Anísio Teixeira, em relação à escola brasileira, remete à
necessidade de uma política educacional adequada à realidade de um país que pretendia se
modernizar, exigindo que a escola se adequasse e preparasse os cidadãos para este projeto de
modernização:
Na concepção de Anísio, ler, escrever, contar e desenhar eram técnicas a ser ensinadas,
mas como técnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades, sem as quais não se
poderia viver. O programa da escola seria a própria vida da comunidade, com o seu
trabalho, as suas tradições, as suas características, devidamente selecionadas e
harmonizadas. Por tudo isso, a escola primária deveria ser uma instituição
essencialmente regional, enraizada no meio local, dirigida e servida por professores da
região, identificada com os seus valores e com seus problemas (CORSETTI; ECOTEN,
2012, p. 108).
Acusado de comunista em vários momentos de sua carreira, Anísio Teixeira, pensador
liberal, conseguia transitar em várias esferas políticas. Alternando suas ações de acordo com as
características de seus interlocutores, foi apontado como incoerente. Porém, essa aparente
dubiedade nada mais é que a sagacidade discursiva e política em manter firme e destemidamente,
seus ideais de democratização da cultura e, sobretudo, da escola no Brasil.
Confluências entre os três autores: conclusão
A escolha em se eleger três vultos histórico-políticos para se contemplar neste trabalho,
deve-se não apenas ao seu caráter de importância e brilhantismo, mas, sobretudo, ao fato dos
mesmos serem importantes referências dentro dos contextos em que atuaram, cuja transgressão e
persistência de valores utópicos transcenderam épocas, permanecendo atuais na
contemporaneidade.
Quebrando paradigmas e estigmas sociais, tanto Cervantes e Lima Barreto, quanto Anísio
Teixeira, demonstraram profundo amor pela pátria, resvalando muitas vezes ideologias ufanistas,
mesmo quando em situações de denúncia social.
Além disso, os três autores estudados neste artigo possuem em comum linguagem
simples, de fácil acesso, livre de retórica e de recursos ornamentais. Em Cervantes, desde o
prólogo da obra, nota-se a ironia utilizada pelo autor quando se dirige diretamente ao leitor
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fazendo uso da expressão “desocupados leitores”, como só aqueles ociosos pudessem ler sua obra
por sua complexidade ou devido a sua extensão.
Além disso, Miguel de Cervantes ainda se recusa a citar nomes consagrados como
Aristóteles, Platão ou até mesmo da Bíblia, como os outros autores faziam. O espanhol, à época
com 57 anos de idade, reconhece-se, ironicamente, e modestamente, em uma crítica a Lope de
Vega, seu inimigo público, um homem “de pouca letra”, recusando-se a fazer uso de falsa
erudição.
Mais uma vez, ironicamente, utiliza de duas citações de Ovídio, uma de Horácio e duas do
evangelho, todas em latim. E em toda a obra percebe-se a ironia tanto no uso de uma linguagem
arcaica, mesmo para os contemporâneos do autor, a imitar os romances cavalheirescos, quanto
nos ditados populares proferidos por Sancho Pança, no retrato de cenas prosaicas ou, ainda, na
utilização de um registro mais vulgar da Língua.
Lima Barreto também inovou em relação à linguagem utilizada em suas obras, conforme
Bosi, o que aparenta ser espontâneo e instintivo em sua obra é, de fato, consciente e polêmico:
Pois nos romances de Lima Barreto há, sem dúvida, muito de crônica: ambientes, cenas
quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida burocrática, às vezes só mencionados ou
mal esboçados, naquela linguagem fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero.
O tributo que o romancista pagou ao jornalista
(aliás, ao bom jornalista) foi
considerável: mas a prosa de ficção em língua portuguesa, em maré de academicismo, só
veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu à realidade entrar sem máscara no
texto literário (BOSI, 2006, p. 318).
Mais adiante, Bosi complementa:
Já se tornou lugar-comum louvar a riqueza de observação e de sentimento desse romance
para deplorar-lhe, em seguida, o desleixo da linguagem, enfeada por solecismos,
cacófatos e repetições numerosas. Sem entrar no mérito da questão, ligada a um
fenômeno estético-social complexo como o do bom gosto, variável de cultura para
cultura, pode-se ver, na raiz dessa língua “irregular” a própria dissonkncia espiritual do
narrador com o estilo vitorioso no mundo das letras em que, dialeticamente, se inseria
(BOSI, 2006, p. 320).
A obra de Anísio Teixeira é composta por um apanhado de textos como relatórios,
conferências e artigos dispersos em revistas e boletins que, reunidos, formam livros cuja
linguagem é marcada, segundo Lima, pelo:
[...] tom coloquial [...] em geral presumindo mais um ouvinte que propriamente um
leitor. Avesso a excessos de forma, ao mesmo tempo que denota um claro domínio dos
conceitos com que opera, os desenvolve de modo didático, repleto de exemplos, que ao
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leitor qualificado podem se tornar supérfluos, mas significam uma chave de leitura
oportuna aos neófitos (LIMA, 2011, p. 228).
Porém, a principal confluência encontrada nos três autores diz respeito à utopia, à crença
de transformação da sociedade, na criação de um lugar em que democracia e direitos fossem
respeitados. Cada um deles, a seu modo, defendeu estas nobres causas, sendo punidos pela
sociedade em ousarem ir além.
Cervantes se despiu de toda a glória e encerrou seus dias esquecido e pobre, em um
mosteiro. Lima Barreto, por ter ousado denunciar a sociedade preconceituosa e hipócrita, foi
internado em um hospício por problemas neurastênicos e, alcóolatra, faleceu aos precoces 41
anos de idade de infarto, permanecendo marginalizado mesmo depois de sua morte.
Anísio Teixeira, por sua vez, dedicou sua vida e carreira pública a defender a nobre causa
norteadora de sua obra: a escola comum, pública, universal, como oposição ao dualismo escolar,
sendo possível a todos em condições de igualdade e de democratização.
Sendo assim, a construção prática da vida democrática no plano imediato seria a única
forma de torná-la possível no plano futuro. Conforme apregoava, “não se educa para depois”.
Portanto, o que a escola não fosse capaz de produzir para o presente, também não o realizaria
para o futuro, pois segundo o autor, em Pequena introdução à filosofia da educação, “aprender
significa ganhar um modo de agir. Aprendemos quando assimilamos uma coisa de tal jeito que,
chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo com o aprendido” (TEIXEIRA, 1971, p.
43-44).
Desta forma, percebe-se o quão forte era o espírito quixotesco de Anísio Teixeira, cuja
convicção no caráter de democracia e de direito representados pela escola, manteve-se firme em
sua ideologia, apesar de tantas mudanças políticas e educacionais, além de sucessivos fracassos
presenciados pelo autor de Educação para a democracia (1931-1935) (TEIXEIRA, 1997) e,
dentre outros trabalhos, Educação é um direito (TEIXEIRA, 1996).
Acreditando que a escola deveria ser a réplica da sociedade e que o significado de
aprender se dá em uma situação real de experiência, o conhecimento geral deveria ser oferecido
pela educação comum organizada em uma prática inserida na comunidade local, revolucionando,
assim, o paradigma de educação, estabelecido até então.
Assim, o aprender seria um ato global e a escola não seria apenas um local em que se
prepara para a vida, tornando-se o local é vida.
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Em março de 1971, foi encontrado morto, em um fosso de elevador. A morte trágica
interrompeu sua brilhante trajetória na luta por uma educação pública de qualidade.
Para Clarice Nunes:
A violência barrou suas iniciativas, mas não venceu sua implacável denúncia de que a
privação da educação torna impossível até a simples sobrevivência. Anísio estava
convencido de que sem a qualidade cognoscitiva e psicossocial das experiências de
conhecimento não existem vivências da esperança. E a escola, tal como ele e seus
colaboradores pensaram, e concretizaram, pretendia instituir-se como organizadora da
esperança da em vidas humanas concretas. Mas a organização da esperança assusta,
porque desestabiliza privilégios. Porque exige, sobretudo, a paciência dos recomeços
(NUNES, 2010, p. 31).
Os Centros Educacionais idealizados e acalentados por Anísio não tiveram continuidade
após seu afastamento da vida política, nos anos de ditadura militar em 1964. A proposta de
educação integral ficou adormecida por cerca de 20 anos, sendo resgatada nos anos 80 pelo
programa dos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública do Rio de Janeiro), por Darcy
Ribeiro, que certamente foi influenciado pelo revolucionário e ambicioso projeto educacional de
Anísio Teixeira.
Hodiernamente, outros programas educacionais de governos estaduais e federais foram
criados para a incorporação deste conceito de educação integral, pensados na adequação às novas
exigências do sistema industrial urbano, conjugando os conteúdos e programas educacionais
tradicionais às atividades socioeducativas e sociocomunitárias em um segundo turno escolar
provando, assim, que nosso visionário da educação, nunca esteve tão atual.
De acordo com artigo em Carta Capital:
São muitas as evidências de que Anísio Teixeira foi morto sob tortura. A história tem
dessas coisas: as ditaduras acreditam poder esconder as patas depois de cometer crimes,
e as patas sujas de sangue um dia reaparecem. É momento de resgatar a memória, revelar
a verdade, fazer justiça. Sem condescendência com os criminosos (JOSÉ, 2014, p. 4).
O que permanece até a contemporaneidade é a evidência de que a utopia idiossincrática de
Anísio Teixeira se mantém atual. Embora suas inovadoras propostas tenham sido idealizadas no
início do século XX, a necessidade de oferecer uma educação de qualidade para todos permanece
no nosso atual quadro educacional.
Outros problemas, elucidados por Teixeira, ainda permanecem sem solução, como o
analfabetismo e a falta de universalização da educação. Porém, ainda há um longo percurso a ser
trilhado por outros espíritos empreendedores, destemidos e quixotescos.
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Entretanto, somente a oferta de escola para todos não resolverá as questões educacionais,
pois a verdadeira revolução é conseguir que todos aprendam. Esta foi a maior audácia e utopia do
nosso grande gestor, seu maior e inspirador legado para gerações vindouras, o repensar a
educação para que finalmente deixe de ser o privilégio de alguns e passe a ser o direito de todos.
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SANDANO, Wilson; ATAÍDE, Sâmara Rodrigues de. Anísio Teixeira: Dom Quixote Nacional.
Wilson Sandano
Uniso | Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE-Uniso
Sorocaba | SP | Brasil. Contato: ppge@uniso.br
ORCID 0000-0001-9587-3733
Sâmara Rodrigues de Ataíde
Uniso | Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação
PPGE-Uniso
Sorocaba | SP | Brasil. Contato: samara.ata@bol.com.br
ORCID 0000-0002-9966-4303
Artigo recebido em: 1 ago. 2018 e
aprovado em: 3 out. 2018.
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