DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2017v19n2p329-346
Formação em serviço: uma parceria entre creche e universidade
Márcia Regina Onofre
Andressa de Oliveira Martins
Resumo: O objetivo deste estudo foi o de analisar, ao longo de 18 meses, o processo de profissionalização docente das
professoras da educação infantil, enfocando os desafios e perspectivas do cotidiano de trabalho e os reflexos
desses fatores para a carreira dessas profissionais, bem como compreender os saberes, experiências e práticas
produzidos pelas profissionais da creche, promovendo a oportunidade de interpretá-los e reconhecê-los como
conhecimentos pertinentes tanto para a área acadêmica quanto para a área educacional. Também ressaltamos a
importância da aproximação entre licenciados do curso de Pedagogia das situações de trabalho, promovendo o
diálogo e a colaboração entre diferentes sujeitos envolvidos num processo de formação coletiva. Com um
processo de formação centrado na escola estabelecemos a parceria entre universidade-rede, por meio, de um
estudo exploratório descritivo envolvendo 20 participantes da CEMEI (2 educadoras, 14 professoras, 1 gestora e
3 agentes educacionais), 2 professoras da universidade e 4 licenciandas do curso de pedagogia da UFSCar. Os
dados foram levantados por meio de análise de diários reflexivos e questionários com questões abertas. Os
resultados apresentados confirmam o potencial da parceria entre creche e universidade, promovendo tanto a
aproximação dos licenciandos das práticas do contexto de trabalho da creche, quanto o reconhecimento do
trabalho das profissionais da Educação Infantil que produzem, cotidianamente, saberes e conhecimentos
significativos e fundamentais no campo da educação e que, quando valorizados, promovem um crescente
processo de profissionalização e reconhecimento da identidade profissional.
Palavras-chave: Formação em serviço. Parceria creche-universidade. Educação infantil.
Training and service: a partnership between university and nursery
Abstract: The aim of this study was to analyze, over 18 months, the process of teacher professionalization of the teachers
of early childhood education focusing on the challenges and perspectives of daily work and the reflection of
these factors for the career of these professionals, as well as understanding the knowledge, Experiences and
practices produced by day care professionals promoting the opportunity to interpret and recognize them as
relevant knowledge both for the academic area and for the educational area. We also emphasize the importance
of approaching graduates of the Pedagogy course of work situations, promoting dialogue and collaboration
between different subjects involved in a collective formation process. With a school-centered training process,
we established a university-network partnership, through a descriptive exploratory study involving 20 CEMEI
participants
(2 educators,
14 teachers,
1 manager and 3 educational agents), 2 university teachers and 4
university teachers Graduates of the pedagogy course at UFSCar. Data were collected through the analysis of
reflexive diaries and questionnaires with open questions. The results presented confirm the potential of the
partnership between nursery and university, promoting both the approach of the students to the practices of the
working environment of the day care center and the recognition of the work of the nursery education
professionals who produce, on a daily basis, significant and fundamental knowledge and knowledge in the Field
of education and that, when valued promote a growing process of professionalization and recognition of
professional identity.
Keywords: Service formation. Partnership university. Network childhood education.
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universidade.
Introdução
O estudo aqui apresentado é resultante das discussões promovidas pelo Grupo de Estudos
e Pesquisas sobre Processos Formativos e Saberes da Docência (CNPq) e de um Projeto de
Extensão Universitária desenvolvido entre os anos de
2012 e 2013 com 20 profissionais
(professoras, gestora, educadoras e agentes educacionais) de um Centro Municipal de Educação
Infantil (Centro Municipal de Educação Infantil - CEMEI) de São Carlos/ SP. O objetivo geral da
pesquisa foi o de analisar, ao longo de 18 meses, o processo de profissionalização docente
enfocando os desafios e perspectivas do cotidiano de trabalho e os reflexos desses fatores para a
carreira dessas profissionais, bem como compreender os saberes, experiências e práticas
produzidos pelas profissionais da creche, promovendo a oportunidade de interpretá-los e
reconhecê-los como conhecimentos pertinentes tanto para a área acadêmica quanto para a área
educacional. Neste sentido, acreditamos que refletir sobre como as professoras produzem os seus
saberes e conhecimentos na Educação Infantil, e como sua prática de ensino se relaciona com o
conhecimento da área é, ainda hoje, um desafio para as pesquisas em educação, em especial para
a área da Educação Infantil, o que por si só justifica a relevância do estudo aqui apresentado.
Acreditamos ser importante destacar, também, o potencial da parceria entre creche e
universidade e a oportunidade dos licenciandos do curso de Pedagogia, participantes do Projeto,
de se aproximarem e vivenciarem as práticas do contexto de trabalho da creche, bem como, os
desafios cotidianos das profissionais da Educação Infantil, buscando a aprendizagem colaborativa
de todos os envolvidos.
Neste sentido, partimos dos pressupostos da creche como um espaço de aprendizagem
(BARROSO, 1997) e dos profissionais que nela atuam como sujeitos em construção (NÓVOA,
1992; TARDIF, 2002), ou seja, um processo de construção coletiva de identidades profissionais,
constituídas não só no momento de formação inicial, mas ao longo da carreira e trajetória de vida
do sujeito, passando sempre por um processo complexo onde cada um se apropria do sentido da
sua história pessoal e profissional. Um processo que necessita de tempo, tempo esse para refazer
identidades, para que se acomodem em relação às inovações e assimile as mudanças.
Nesse exercício de construção e ressignificação da identidade profissional é preciso que
ocorram mudanças, mudanças de postura e mentalidade, mudanças educacionais que, além de
depender dos professores e da sua formação, também dependem da transformação das práticas
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pedagógicas na sala de aula e essas transformações dependem de “[...] um investimento educativo
dos projectos de escola” (NÓVOA, 1992, p. 29).
Foi com essa perspectiva que o Projeto foi concebido, buscando estabelecer a parceria
entre a escola e a universidade e tomando a creche como lócus de formação, buscando superar o
modelo clássico de formação continuada e construir uma nova perspectiva para o
desenvolvimento profissional das professoras (CANDAU, 1996). Desde o início do processo,
primamos por uma prática coletiva de decisões e perspectivas envolvendo todo o grupo
participante (20 profissionais da CEMEI (2 educadoras, 14 professoras, 1 gestora e 3 agentes
educacionais),
2 professoras da universidade e
4 licenciandas do curso de Pedagogia da
Universidade Federal de São Carlos UFSCar).
O Projeto de Extensão consolidou-se na proposição de uma parceria entre universidade e
escola por meio da constituição de uma rede formativa e colaborativa, sustentada na concepção
de que a função docente como uma ‘tarefa de grupo’ p uma resposta ante as pressões sociais e
novas demandas que vêm insistindo para um quadro de sobrecarga, exaustão e desvalorização
docente (MARIN; GIOVANNI; GUARNIERI, 2009).
Nesse sentido, considera-se que a docência vai além da tarefa de aplicação de uma
atividade, ou do cuidar de crianças pequenas. O trabalho docente implica a capacidade de refletir,
analisar, planejar e ao mesmo tempo compreender os fatores de ordem mais abrangente
relacionados a este contexto. Ou seja, desenvolver processos formativos no contexto escolar
significa tomar o contexto pedagógico da escola como contexto da práxis pedagógica,
considerando-a como espaço potencial para rever os estatutos dos saberes da profissão
(PINAZZA, 2014).
Acreditamos que nesse tipo de formação a maior importância foi a de considerar as
profissionais da creche como parceiras no processo de decisão. Neste sentido, essas profissionais
foram chamadas, desde o início das ações, a opinar e a discutir sobre as decisões do Projeto de
Extensão, contribuindo, assim, para o desenvolvimento de um processo de formação continuada
dinâmico, colaborativo e participativo, cujos conteúdos advinham da realidade na qual
trabalhavam e de referenciais teóricos levantados por todo o grupo envolvido com a pesquisa.
Partindo dos pressupostos de Barroso (1997) sobre a escola “como organização aprendente”,
nosso objetivo foi o de fazer com que as profissionais da creche aprendessem a valorizar a
experiência que elas já traziam ao longo da de carreira criando condições para que participassem
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das tomadas de decisões e, neste sentido, encontrassem significado e valorização nas ações
desenvolvidas sobre o processo de desenvolvimento profissional.
De acordo com Kramer (1989) a mudança nas estratégias de formação do professor em
serviço está diretamente relacionada à mudança nas estratégias de organização e divisão do
trabalho no interior da escola.
Segundo a autora,
Há que se ter em vista que a formação do professor que está em serviço é feita na escola
e a ela devem estar voltadas às demais instâncias a fim de que se fortaleçam os
professores em termos teórico-práticos, possibilitando-lhes uma reflexão constante sobre
sua atuação e os problemas enfrentados, e uma instrumentalização naqueles
conhecimentos imprescindíveis ao redimensionamento da sua prática. [...] Nessa medida,
para que se possa pensar e propor alternativas de formação dos professores em serviço,
comprometidas com a função social e política da escola e, portanto, direcionadas à
formação e ao exercício de cidadania, a teoria não pode ser vista como soberana sobre a
experiência, da mesma forma que a experiência não substitui a análise crítica sendo, na
verdade, mediada por ela. Uma política de formação dos professores em serviço,
efetivamente engajada na melhoria da qualidade do ensino deverá, então, garantir as
condições e viabilizar um trabalho dessa natureza, vendo a escola e a própria formação
como práticas sociais que são (KRAMER, 1989, p. 11).
Para Kramer (1989), os profissionais da escola devem possuir uma visão de totalidade do
trabalho pedagógico e atuar no sentido de favorecer a reflexão e a construção coletiva da equipe,
revendo juntos a própria prática primando pela cooperação e pela a ética e sendo capazes de
reconhecer suas limitações e os desafios que a carreira impõe com vistas à construção da
autonomia e, consequentemente, da reorganização do trabalho pedagógico.
Acreditando na construção coletiva e na parceira entre escola e universidade o Projeto se
estruturou buscando levantar discussões e reflexões sobre a ausência de valorização e
reconhecimento social e profissional destinada às educadoras de creche e professoras de
Educação Infantil no Brasil, tanto nos âmbitos político e social quanto no âmbito educacional
(BONDIOLI; MANTOVANI, 1998; KISHIMOTO, 2010; KRAMER, 2011). Desde o início o
grupo teve clareza do papel da universidade nesse processo de investigação e questionamentos,
bem como a universidade tinha clareza dos processos formativos e saberes das profissionais da
creche e da dificuldade de “re”construção da identidade profissional docente. Nossas
inquietações convergiam para o fortalecimento de políticas públicas que compreendessem que a
Educação Infantil é de extrema importância para o desenvolvimento integral e educacional da
criança de 0 a 5 anos e que, portanto, o profissional atuante nesse nível de ensino deveria ter
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condições estruturais, profissionais e salariais compatíveis com o trabalho de qualidade que
deveriam desenvolver.
Infelizmente os estudos (ASSIS, 2007; COSTA, 1995; PEREIRA, 2000; ROSEMBERG,
2012) mostram que as profissionais que atuam nesse nível de ensino são vistas como “educadoras
natas”, “tias”, “cuidadoras”, “professorinhas”, que realizam suas atividades por “dom”, “amor
aos pequenos”, “caridade”, “benevolência”, “sacerdócio”, “incapacidade de saber lecionar em
outros níveis de ensino”.
Somando-se a essas questões, Assis (2007) enfatiza a ideia de que a mulher, por ser
considerada uma educadora nata, influencia a forma das pessoas pensarem sobre o papel
profissional do professor de Educação Infantil, delegando a esses profissionais a extensão da
educação materna. A precariedade de alguns cursos de formação destinados aos professores de
creche se dá pelo fato da própria sociedade imaginar que a condição de ser mulher já habilita uma
pessoa a ser professora de crianças pequenas.
O fato de a Educação Infantil se dirigir ao atendimento de crianças pequenas exige que
algumas das práticas pedagógicas desenvolvidas em suas instituições sejam bem próximas de
determinadas práticas de cuidados de crianças realizados nas esferas domésticas. Essa
ambiguidade entre o espaço público e o privado, entre a função materna e a função docente, está
presente no imaginário de muitos professores e eles muitas vezes reproduzem práticas maternas
na realização de seu trabalho (ASSIS, 2007).
Segundo Pereira (2000) a questão da feminização do magistério e as implicações desse
processo para a situação do trabalho docente passaram a ser tema de diversos trabalhos,
principalmente a partir da segunda metade da década de 1980. A composição feminina da força
de trabalho na educação, pelas condições históricas de submissão da mulher, teria, segundo o
autor, contribuído para a proletarização dessa categoria profissional e dificultado o processo de
profissionalização do magistério.
Ainda sobre esta questão, Costa
(1995), em seus estudos sobre trabalho docente e
profissionalismo, discute a questão da feminização apontando outra vertente. Para a autora, a
feminização do magistério não deve ser vista como algo pejorativo para a categoria, mas sim
como valorização de um perfil docente, com suas características próprias, seus anseios, seus
olhares e posturas profissionais.
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A falta de reconhecimento e de valorização da sociedade perante os professores que atuam
com crianças pequenas dificultam a construção de uma identidade para esses profissionais
(TARDIF, 2002). Essa ausência de valorização e reconhecimento social destinada aos educadores
de creche e professores de pré-escola no Brasil comprova que as políticas públicas têm muito que
planejar para que a sociedade compreenda que a Educação Infantil tem uma função de extrema
importância no desenvolvimento integral da criança.
Conforme a LDB lei nº
9.394
(BRASIL,
1996) a Educação Infantil tem como
responsabilidade oferecer ao indivíduo o desenvolvimento físico, psicológico e social,
valorizando a participação da família e da comunidade. O professor de Educação Infantil é o
profissional responsável para desenvolver tal trabalho e para atuar com crianças de 0 a 3 anos de
idade em creches, e em pré-escolas com crianças de 4 a 6 anos.
A Educação Infantil é a primeira etapa da educação básica, nela está inserida a criança de
zero a cinco anos, sendo assim, a Educação Infantil necessita desenvolver um trabalho pautado
no cuidar e educar. Diante de tal responsabilidade, torna-se essencial que o professor que atua
com esta faixa etária seja reconhecido como profissional e a ele devem ser garantidas condições
de trabalho eficaz, plano de carreira e formação continuada que contemple o seu verdadeiro papel
de professor de crianças pequenas.
É importante ressaltar, ainda, que, apesar da LDB lei nº 9.394 (BRASIL, 1996) ter
incluído a Educação Infantil como parte da educação básica, ainda existe em nosso país a falta de
uma exigência legal que obrigue os profissionais de Educação Infantil ter formação de professor
para desempenhar tal função. Neste processo, está inclusa a atuação de profissionais de outra área
no setor da Educação Infantil, a esses profissionais dá-se o nome de berçaristas, babás, monitoras,
recreacionistas, pajens, etc.
Foi buscando suprir lacuna nesse campo de formação e atuação profissional, somada ao
convite da creche, que nos aproximamos para de forma compartilhada promover ações
colaborativas de formação, buscando desmistificar e diminuir a dicotomia existente entre
universidade e rede (GIOVANNI, 1994, 2000).
Além da proposta de formação continuada, achamos importante o envolvimento de nossos
alunos do curso de Pedagogia, visando ao enriquecimento da formação inicial possibilitando
oportunidades de reflexão, troca de experiências com as profissionais da rede e aquisição de
conhecimentos na área específica em questão.
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O Projeto de Extensão Universitária
Desde seu início, em 2012, o Projeto primou pela parceria entre universidade e rede
p~blica de ensino com o objetivo de “ouvir a voz” da creche partindo dos interesses de um
coletivo e tomando a escola como lócus de formação (BARROSO, 2003). É também seu objetivo
a formação continuada de professoras da Educação Infantil, a busca da ressignificação das
identidades das participantes, a formação a partir dos temas de interesse das profissionais
atuantes na escola pública e a valorização dos saberes da prática dessas profissionais.
A parceria com o espaço escolhido para o desenvolvimento das ações (Centro Municipal
de Educação Infantil CEMEI) foi estabelecida por meio de um convite do grupo de professoras,
agentes educacionais e gestão da à coordenação do Projeto visando uma proposta de formação
continuada que partisse das necessidades formativas das profissionais da escola, um “caminho
alternativo”, diferenciado dos cursos oferecidos até então pela Secretaria Municipal de Educação;
um projeto que representasse o ideal de um coletivo com vistas a ações contínuas e eficazes
levando as envolvidas a atingir um objetivo comum sobre os conhecimentos e saberes da prática
profissional
(ONOFRE, 2012). As ações do Projeto, desenvolvidas no período de março a
dezembro de cada ano letivo por meio de encontros presenciais quinzenais, com duração de duas
horas cada, são realizadas ao final do expediente escolar
(das
18h às 20h). Também são
realizadas atividades não presenciais, como a produção de diários, registros de aula, de memórias
e vivências do cotidiano de trabalho.
As discussões levantadas pelo grupo, até o presente momento, caminham no sentido da
convicção de que no campo da educação o contexto da prática tem potencial para a produção de
conhecimento acadêmico e profissional. Nesses termos, embora seja importante reunir as
professoras e oportunizar o debate e a reflexão sobre os temas do cotidiano pedagógico em que
estão imersas, partilha-se do entendimento de que apenas oportunizar momentos para “troca de
experiências” e “ouvir a voz” às docentes não é suficiente para o estudo das questões da educação
em geral, e da Educação Infantil em particular. Isso não dá conta e não prepara necessariamente
para a ação consciente e qualificada.
Neste sentido, indica-se que os processos formativos vivenciados no interior do Projeto
podem trazer à tona a necessidade de aprofundar a investigação da natureza dos saberes que
circulam nas ações desenvolvidas por este grupo de participantes do Projeto a partir do
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entendimento de que as práticas cotidianas tendem, muitas vezes, a cristalizar as práticas e com
muita frequência, transformam os saberes profissionais em modelos a serem reproduzidos pelas
colegas, principalmente as mais novas na profissão.
A proposta do Projeto se inspira no trabalho desenvolvido por Pinazza (2014), o qual
considera que o trabalho docente carece de situações para desenvolver o discernimento capaz de
um fazer esclarecido e comprometido. Para a autora, essa sabedoria prática que mobiliza os
professores a participar de suas experiências promove a oportunidade de interpretá-las e
reconstruí-las por meio de exercício individual e coletivo. Pensar como os professores produzem
conhecimento na Educação Infantil, e como sua prática de ensino se relaciona com o
conhecimento da área é, ainda hoje, um desafio para as pesquisas em educação, em especial para
a área da Educação Infantil, cuja constituição se considera recente em função de sua origem
histórica nas áreas da Saúde e Assistência Social.
Os caminhos metodológicos da pesquisa
Para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos como literatura de apoio as políticas do
Ministério da Educação para a área de Educação Infantil e autores como: Barroso (1997),
Bondioli e Mantovanni
(1998), Canário
(1997), Dahlberg; Moss; Pence
(2003), Edwards;
Gandini; Forman (1999), Kramer (2011), Kishimoto (2010), Oliveira (2010), Sommerhalder;
Alves (2011), Rossetti-Ferreira (2000), Nóvoa (1999), Tardif; Raymond (2000), Assis (2007).
Por meio de estudo exploratório descritivo (SELLTIZ; JAHODA; DEUTSCH; COOK,
1965) com enfoque qualitativo
(BOGDAN; BIKLEN,
1994; LUDKE; ANDRÉ,
1986;
TRIVIÑOS, 1987), envolvemos 20 participantes da CEMEI (2 educadoras, 14 professoras, 1
gestora e 3 agentes educacionais) 2 professoras da universidade e 4 licenciandas do curso de
pedagogia da UFSCar. Os dados foram levantados, num primeiro momento, por meio de
questionários (ANDRÉ, 2004) elaborados partindo dos objetivos da pesquisa, contando com
questões abertas (permitindo a liberdade de escrita das entrevistadas) propostas às participantes
da pesquisa acordadas mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e,
num segundo momento, pela análise dos diários reflexivos (produzidos pelas professoras da
creche no Projeto de Extensão).
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Os dados foram analisados partindo dos objetivos propostos e da revisão da literatura que
norteou todo o desenvolvimento do Projeto, permitindo às pesquisadoras a compreensão do ponto
de partida e as constatações suscitadas pela pesquisa.
Foi com base na análise dos dados que encontramos a possibilidade de “avançarmos no
plano do conhecimento”, buscando as relações possíveis dos dados entre si e com outros estudos
já produzidos sobre o tema (LUDKE; ANDRÉ, 1986).
Assim, neste estudo, o processo de organização e análise dos dados partiu do mapeamento
geral das respostas, seguido do agrupamento das informações em torno de classes de dados
suscitadas por aspectos ou elementos
(comuns ou divergentes) presentes no conjunto das
informações.
Os dados foram organizados partindo de 5 categorias descritivas e reflexivas (identidade
profissional, desafios e dilemas, parceria universidade-creche, processos formativos e saberes
profissionais, perspectivas profissionais e políticas) possibilitando uma melhor visualização dos
mesmos e de suas decorrências para a compreensão do tema no sentido do avanço de futuras
pesquisas para a área. Tais categorias foram assim divididas norteadas pelo estudo exploratório-
descritivo que possibilitou a compreensão de diferentes aspectos do processo de formação em
estudo, permitiu que esse mesmo processo fosse descrito de forma coerente e fidedigna, por meio
dos depoimentos das profissionais envolvidas, gerando análises e novos questionamentos sobre a
temática.
Identidade profissional
Antes de iniciarmos a discussão sobre as percepções das profissionais da creche é
importante acrescentar que as 20 docentes participantes da pesquisa são do sexo feminino e
encontram-se na faixa etária entre 35 e 50 anos (78%). A grande maioria são professoras
experientes na docência (77% com mais de 12 anos de experiência profissional na área da
educação - 69% na área da Educação Infantil). São profissionais formadas em curso superior
(95% Licenciatura em Pedagogia) em instituições privadas (74%) e algumas com curso de
especialização
(43%) também em instituições privadas. Ou seja, observamos que as
universidades públicas pouco contribuíram tanto para a formação inicial quanto continuada
dessas professoras, mais uma razão para a pertinência e relevância da nossa aproximação na
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construção de um processo colaborativo de desenvolvimento profissional.
Outro dado importante que se mostrou fundamental para o estabelecimento da nossa
parceria foi a dificuldade dessas profissionais pela procura aos cursos oferecidos pela
universidade. Os depoimentos das professoras da creche revelaram preocupação em não
conseguirem cumprir com o nível de exigências dos cursos; também apontaram sentirem
dificuldade em voltarem a estudar por conta do tempo, do cansaço e da distância (trabalho para a
universidade) e o mais grave, a dificuldade de retomarem as práticas de leituras e escrita
(atividades muito pouco exigidas para as profissionais atuantes nas creches).
As profissionais participantes do Projeto revelaram em seus depoimentos uma maior
percepção sobre a construção ressignificação da identidade profissional, percebendo que ela
ocorre ao longo da vida, passando sempre por um processo complexo onde cada um se apropria
do sentido da sua história pessoal e profissional. As docentes revelaram ser esse um processo que
necessita de tempo para refazer identidades, para que o indivíduo se acomode em relação às
inovações e assimile as mudanças. Neste sentido, a visão de resistência a mudanças e a busca
pela formação continuada apareceram em vários depoimentos como necessária e urgente visando
um processo contínuo de aprendizagem.
Ao longo do processo o que era resistência acabou se tornando necessidade de mais informações, de mais
conhecimentos. Uma vontade incansável de saber mais, de mudar a forma de agir e pensar contagiando
todos da equipe. Não imaginava o quanto a minha história de vida tinha a ver com a minha forma de lidar
com os meus alunos. Não imaginava o quanto precisamos de tempo para que a nossa prática se
fortalecesse gerando mais segurança e autonomia profissional. Hoje sabemos o quanto precisamos de
cursos e projetos que nos apoiem e que sejam desenvolvidos dentro da escola (Profissional 13).
O grupo também percebeu que as mudanças na forma de agir e pensar dos participantes
refletiram na organização da escola como um todo, possibilitando uma maior autonomia de ação,
uma maior compreensão da importância do seu papel nas decisões e, consequentemente, a
emancipação pessoal e profissional e a crítica ao contexto social.
Tudo o que trocávamos no projeto refletia na nossa forma de agir e no movimento do cotidiano escolar. Até
as professoras e educadoras que não participaram do projeto vinham nos perguntar as novidades. Cada
caixa que trazíamos, cada painel, cada proposta de interação com a comunidade era bem vinda, pois
sabiam que eram estimuladas pelo projeto e isso representava que algo inovador, diferente e enriquecedor
seria bom para a escola (Profissional 5).
Desafios e dilemas
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A grande totalidade do grupo (79%) apontou a dificuldade de lidar com as mudanças
políticas responsáveis pelo mal estar nas escolas, pela instabilidade profissional e pela dificuldade
de entendimento e continuidade de projetos.
Quando acostumamos com um tipo de ação, muda-se a política e diz que aquilo que estamos fazendo está
errado. O que era certo até aquele momento político passa a ser errado para o outro partido. A fala de
continuidade gera insegurança e desconforto em todas as professoras da escola (Profissional 1).
Outro fator apontado pelas profissionais foi a falta de recursos e espaço físico adequado
para o desenvolvimento das atividades.
Como pode em uma creche, em uma escola de Educação Infantil não ter parque? Os brinquedos estão
enferrujados, a areia suja. O lugar ao invés de acolher a criança é perigoso e prejudicial para ela
(Profissional 3).
As angústias profissionais são apontadas como grandes entraves para o desenvolvimento
profissional. Dentre elas as profissionais citaram: insegurança, decepção, culpa, desprestígio,
cobranças, desequilíbrio emocional, incapacidade de lidar com determinadas situações, falta de
paciência, dificuldade de estabelecer a parceria com as famílias. Essas angústias são resultantes
do número excessivo de alunos por sala impossibilitando um trabalho de qualidade, a dificuldade
da participação da família na escola, o entrave burocrático, a dificuldade de diálogo com os pares,
a falta de postura ética do coletivo, a dificuldade de implantar novos projetos e atividades e as
mudanças que geralmente tem de ser feitas a toque de caixa.
Estou cansada de lutar sozinha. Toda vez que trago algo novo todo mundo me olha com aquela cara de “lá
vem a empolgada”. Adoro me envolver com projetos novos, mas as minhas colegas não aceitam, acham que
vai dar muito trabalho. Gostaria tanto de ter mais tempo e incentivo. Na maioria das vezes minha vontade é
de desistir. Os pais não me ajudam, os colegas não me apoiam e a política e nem preciso dizer (Profissional
8).
Parceria universidade-creche
A parceria da universidade com a creche permitiu às profissionais da creche espaços de
desabafo, debates, reflexão e necessidade de construção de um sentido a carreira. As leituras, os
registros semanais nos diários, os espaços de troca com o grupo, as oficinas, as dinâmicas e o
compartilhamento de experiências com os pares possibilitaram entender que a coletividade é
necessária para a construção da autonomia profissional e que essa autonomia deve caminhar no
sentido de um maior exercício político de reivindicações e militância em prol da melhoria da
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universidade.
qualidade da Educação Infantil e, consequentemente, de valorização do trabalho dos profissionais
da creche.
A percepção de que a formação inicial foi apenas o ponto de partida de um longo processo
de busca ao conhecimento foi fundamental para o entendimento de que há necessidade de
projetos e propostas voltados para o desenvolvimento docente tomando como referência a
formação em serviço e a parceria entre escola e universidade visando à colaboração e à harmonia
entre esses dois níveis de ensino.
Nunca imaginei que as professoras da universidade viessem para a escola. A chegada do grupo causou
estranheza no início, até desconfiança. Com o tempo percebemos o que era parceria, respeito mútuo,
compromisso com uma causa. Percebemos o quanto precisamos da universidade aqui e o quanto a
universidade precisa estar perto da escola (Profissional 12).
A construção e ressignificação da identidade marcaram muito a postura pessoal e
profissional das professoras da universidade. O contato com a escola fez com que a forma de
trabalhar as aulas no ensino superior também fosse alterada. A escolha dos textos para as aulas, a
forma de conduzir os estágios, as discussões nos grupos de pesquisa, os exemplos do cotidiano
escolar e as próprias ações no Projeto foram sendo revistas, refletidas e construídas a cada
momento de desenvolvimento do ação formativa. A construção coletiva e os avanços do grupo
(autonomia e crescimento profissional) geraram nas pesquisadoras questionamentos, percepções
e significações que até então não havia ocorrido na trajetória profissional. Foi o momento de
parar para rever, ressignificar e compreender a própria prática profissional.
Quando iniciamos o projeto não imaginávamos o quanto de enriquecedor e desafiador a proposta se
transformaria. O grupo de professoras e educadoras que começou tímido desabrochou e a autonomia deu
lugar a profissionais engajadas, inquietas, transformadoras e, politicamente, preocupadas com a
valorização profissional. Aprendemos muito com o grupo. Aprendemos que a coletividade é essencial, é
valiosa e representa a maturidade de uma equipe, independente, da idade e tempo de experiência dos
participantes. Quanto mais envolvido for o grupo melhor são os resultados na escola. Aprendemos que a
universidade têm uma papel fundamental de escuta, reflexão e construção coletiva. Aprendemos que é,
extremamente, pertinente e relevante, aproximar as alunas que estão em formação inicial das que estão em
formação continuada. Aprendemos que todos as teorias são fundamentais mas que em determinadas
momentos nem todas são necessárias. Aprendemos a deixar a rede falar, construir, ressignificar, para só
depois buscarmos caminhos conjuntamente (Professora Universidade 1).
O compartilhamento das experiências com as profissionais da Centro Municipal de
Educação Infantil
- CEMEI suscitou nas licenciandas a necessidade e interesse em buscar
conhecimentos e saber utilizá-los no cotidiano de trabalho. Mais do que simplesmente dominar o
conhecimento, os encontros apresentavam para as alunas em formação inicial, momentos de
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angústia, de choque com a realidade, de como lidar, na maioria das vezes, com o incerto, com o
desconhecido, com novo, com o desafiador e, principalmente, com a inexperiência. A
proximidade do cotidiano escolar, diferentemente dos estágios, era o momento de reflexão
conjunta, de compartilhar experiências, de buscar soluções conjuntas, de sofrer frente a
problemas da escola, de trocar informações, materiais, exemplos de vida pessoal e profissional.
Para a maioria das licenciadas a participação no Projeto auxiliou uma maior compreensão no
curso de graduação e nos estágios.
No começo tínhamos receio de falar, de nos posicionar frente às professoras da universidade, da escola,
achávamos que éramos inexperientes, sem muito a contribuir. Com o passar do tempo começamos a nos
posicionar, sentir mais segurança, a preparar os encontros, a questionar leituras e posicionamentos que
não achávamos coerentes. Sentíamos como pares, como parceiras de luta. Passamos a entender o curso de
graduação em seus bastidores. Foi bem interessante o posicionamento crítico e político-pedagógico nos
nossos seminários, nos estágios e mesmo nas aulas da graduação (Licencianda 4).
Processos formativos e saberes docentes
Para as profissionais da escola, os principais processos formativos suscitados pelo Projeto
foram o resgate da identidade pessoal (história de vida, memorial da infância) e a percepção do
que vem a ser identidade profissional (autonomia, senso político, valorização, investimento na
carreira, formação continuada, troca com os pares, trabalho em equipe, estudos e pesquisas,
reflexão sobre a própria prática).
Um novo olhar sobre os alunos também foi um processo apontado pelas professoras. O
entendimento da infância e do desenvolvimento integral das crianças foi um dos temas que mais
chamaram a atenção do grupo nos debates e oficinas realizadas.
Eu nem imaginava que até os 2 anos de idade era preciso estimular as crianças por conta da bainha de
mielina. Não imaginava a responsabilidade do meu estímulo para o desenvolvimento dos meus alunos.
Passei a trabalhar com as crianças de maneira diferente e inclusive sensibilizar os pais sobre a
importância do estímulo, da proximidade e do afeto para o desenvolvimento da criança (Profissional 4).
As profissionais revelaram também a contribuição dos diários reflexivos para a
compreensão da profissão. Apontaram que, embora no início tenha se apresentado como uma
atividade cansativa e obrigatória, a técnica de registrar as ações, processos, dilemas e saberes
vivenciados cotidianamente, permitiu repensar situações, conflitos e ideias que passavam
despercebidos em outros momentos.
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Foi incrível registrar um acontecimento em uma semana buscando refletir sobre ele e uma semana depois
eu refletir que aquela maneira de encarar aquela situação não foi sensata e, muito menos, correta. Hoje
mesmo peguei para ler o que tinha escrito a um mês atrás e percebi o quanto determinadas situações não
me incomodariam como me incomodaram naquele momento. Acho que o objetivo é esse mesmo fazer a
gente pensar e repensar sobre o que estamos fazendo, o que queremos com a nossa e qual a melhor
maneira de resolver nossos problemas diários (Profissional 18).
Outro fator importante como processo de formação apresentado pelas profissionais foi o
compartilhamento de experiências com os pares. Saber dialogar e respeitar as ideias, os
posicionamentos e os apontamentos do outro, embora não tenha sido tarefa fácil, foi um exercício
de construção coletiva. O grupo apontou o quanto foram estimuladas a falarem, a se colocarem
frente as situações propostas, a discutirem os textos, a participarem de forma mais dinâmica das
oficinas, a perderem a timidez frente as colegas mais expressivas. O estímulo à “voz das
professoras” foi fundamental para que construíssemos a coletividade e o cooperativismo do
grupo.
É importante enfatizar que os saberes dessas professoras foram valorizados em todas as
ações propostas. Nunca partimos do princípio de que iríamos ensinar conhecimentos a
inexperientes, muito pelo contrário, sempre aprendemos mais do que ensinamos, pois o diálogo e
a troca de experiências foram marcantes na construção do grupo. Portanto, os saberes da
experiência foram somados a novos saberes estimulados pelas leituras e pelas ações do Projeto ao
longo dos 18 meses. Neste sentido, as professoras revelaram que puderam sentir os reflexos
dessas aprendizagens no cotidiano escolar. Os estímulos a novos projetos, atividades voltadas
para o desenvolvimento integral da criança, a interação família-escola, a parceria e o respeito
com os colegas de trabalho, a possibilidade de novas brincadeiras e metodologias e uma maior
atenção a fatos e situações que eram despercebidas e que passaram a se tornar de grande
importância para um trabalho cotidiano de qualidade.
Sentia a necessidade de mudar, de buscar, de fazer coisas novas. Me sentia revigorada. Sentia vontade de
quero mais, de aprender e reaprender coisas que estavam esquecidas, adormecidas, apagadas de minha
memória (Profissional 1).
Para as licenciandas participantes, as possibilidades de inserção no campo contribuíram
para a superação da dicotomia existente entre teoria e prática e, nesse sentido, um instrumento
valioso para a formação reflexiva, autônoma, crítica e transformadora da realidade social.
Perspectivas profissionais e políticas
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Os encontros proporcionaram às profissionais a reflexão sobre o “ser professor”. A
importância do compromisso ético, político e profissional e, principalmente, a necessidade de
reconhecimento do papel social e profissional das professoras de creche para a educação. Neste
sentido, as ações proporcionaram momentos de reflexão e pesquisa sobre o ambiente de trabalho,
as propostas e projetos da escola e, em maior âmbito, a compreensão sobre como a política vêm
trabalhando e se responsabilizando pela formação dessas profissionais. Os discursos foram
unânimes em apontar que são poucos os cursos de formação continuada e, quando ocorrem,
geralmente, são mais voltados para atividades práticas do que para reflexões teóricas
compromissadas com a transformação social. Neste sentido, as falas revelam o descaso com esse
nível de ensino e a efetivação de uma política de assistência e pragmatismo que subestima a
capacidade intelectual e profissional das professoras da creche.
Frente a essas constatações é importante ressaltar que essas profissionais trazem uma
experiência de ações e práticas bem sucedidas estimuladas por motivações próprias que mesmo
frente ao descaso e à falta de reconhecimento desenvolvem um trabalho de seriedade e
compromisso com os pequenos. A maior prova disso foi o convite à universidade e a necessidade
de parceria ao longo desses
18 meses e a solicitação da continuidade do Projeto com a
perspectiva de ações futuras como a criação de um grupo de estudos quinzenais. Essa foi uma
conquista resultante de um grupo compromissado, reflexivo e estimulado que não só
compreendeu que a construção da identidade profissional está marcada por um processo de
desenvolvimento contínuo e pela busca de conhecimentos e engajamento político como também
pela autonomia, coletividade e, consequentemente, pela profissionalização docente.
O grupo ainda aponta a necessidade da participação em eventos, da organização de
eventos na escola, da elaboração de um documentário e de um livro com relatos de experiências.
Esse é o sentido do nosso trabalho e de uma pesquisa colaborativa em que todos têm o seu lugar e
o coletivo luta por um projeto comum.
Para as profissionais da universidade, a parceira entre universidade e rede deve relevar à
sociedade os limites e os alcances das pesquisas realizadas nas escolas, bem como reforçar a
importância das possibilidades e oportunidades de articulação entre ensino, pesquisa e extensão
de serviços à comunidade nas universidades, especialmente para os cursos que formam
professores.
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A escola deve ser tomada como campo de formação e aprendizagens. A parceria estabelecida com as
professoras em exercício faz com que seja possível perceber de maneira mais próxima os dilemas, os
desafios e as perspectivas do cotidiano de trabalho. Ao retirarmos essas profissionais de seu espaço as
vozes se silenciam e a dificuldade de expressarem suas opiniões, crenças e projetos futuros é bem maior
(Pesquisadora 2).
Algumas Considerações e Reflexões
Os resultados apresentados confirmam os pressupostos elucidados por Nóvoa (1992) e
Tardif (2002), de que a construção da identidade profissional se dá longo da carreira e trajetória
de vida do sujeito. Nesse exercício de construção e ressignificação da identidade profissional é
preciso que haja mudanças que, além de depender dos professores e da sua formação, também
dependem da transformação das práticas pedagógicas na sala de aula e investimentos em projetos
desenvolvidos no interior da escola. Neste sentido, defendemos a parceria entre universidade e
rede visando à construção de processo complexo que necessita de tempo para refazer identidades
e, principalmente, para que o indivíduo se acomode em relação às inovações e assimile as
mudanças.
Acreditamos ser necessário e urgente declararmos, formalmente, importância o
estabelecimento de uma política de formação continuada como uma das prioridades das políticas
educacionais nacionais, buscando fontes de financiamento de longo alcance com fundos
nacionais e organismos internacionais, envolvendo as sociedades científicas e profissionais e os
conselhos educacionais locais e regionais no encaminhamento dos programas de formação
continuada.
É preciso, contudo, criar fundos de apoio para a realização de projetos de pesquisa na
escola a serem desenvolvidos pelos professores fortalecendo o reconhecimento da escola como
espaço de formação continuada (BARROSO, 1997). Embora seja possível concordar que a escola
seja o lugar ideal para o desenvolvimento desse tipo de formação, também é possível perceber
que a efetivação de tal trabalho só será viável se os personagens principais dessas instituições
(Diretores, Coordenadores e Professores) tiverem os mesmos objetivos dos profissionais da
universidade em relação às mudanças e à melhoria do trabalho escolar. Caso contrário, qualquer
esforço que se faça nesse sentido (programas, projetos, políticas) estará fadado a se tornar mera
perda de tempo.
O trabalho colaborativo gerou um imenso prazer ao grupo. Buscamos trabalhar coletivamente,
reflexivamente e eticamente, primando pela identidade de cada participante respeitando a identidade
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pessoal e profissional de cada uma. Misturamos gostos, imagens e cheiros da infância de cada uma.
Resgatamos lembranças, desafetos, brincadeiras, espaços, famílias. Costuramos tapetes entrelaçados com
choros, desabafos inquietações e perspectivas. Escutamos músicas, brincamos nas oficinas, trocamos
informações, ouvimos colaboradores, ouvimos o grupo, ouvimos as nossas vozes interiores. Permitimos que
todas falassem, reclamassem, concordassem e discordassem do que liam, ouviam, assistiam e sentiam.
Escrevemos histórias, elaboramos painéis, organizamos eventos, chamamos a comunidade. Enfim
trabalhamos na escola, pela escola, para a escola, “com a escola” e aprendemos mais do que ensinamos e
acreditamos que é assim que se escreve uma nova fase das pesquisas na área de formação de professores
numa perspectiva compartilhada que toma a escola como um campo de formação enriquecedor tanto para
a formação inicial quanto continuada de professores (Pesquisadora 1).
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ONOFRE, Márcia Regina; MARTINS, Andressa de Oliveira. Formação em serviço: uma parceria entre creche e
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Márcia Regina Onofre - UFSCar - São Carlos. São Carlos | SP |
Brasil. Contato: mareonf@yahoo.com.br
Andressa de Oliveira Martins - UFSCar - São Carlos. São Carlos |
SP | Brasil. Contato: martinsandressa27@yahoo.com.br
Artigo recebido em: 22 out. 2015 e
aprovado em: 24 jan. 2017.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 2, p. 329-346, ago. 2017.