DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2017v19n1p29-46
Rastros de memórias das práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro
II: um olhar para o livro de ocorrência
Tatyana Marques de Macedo Cardoso
Claudia Maria Costa Alves de Oliveira
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar as práticas disciplinares instituídas aos discentes do
Colégio Pedro II, no período em que essa instituição modelar de ensino foi fundada (1837). Será utilizado,
para essa pesquisa, o primeiro livro de ocorrência disciplinar, datado de 1858, finalizando em 1859.
Pretendemos responder a seguinte questão: de que maneira a disciplina imposta no Colégio Pedro II estava
de acordo com a normatização de condutas que deveriam ser seguidas como regras para a boa convivência
no ambiente escolar? Assim, incutir formas civilizadas de conduta pessoal e moral faziam parte de uma
cultura escolar e, por essa razão, buscamos compreender as práticas disciplinares utilizadas no Colégio
Pedro II que visavam formar “o bom cidadão”. Tal pesquisa permitirá alargar os conhecimentos acerca do
cotidiano escolar daquela instituição de ensino, além de contribuir para a memória institucional e para a
pesquisa em história da educação.
Palavras-chave: Colégio Pedro II. Práticas disciplinares. Livro de ocorrência.
Traces of memories of the disciplinary practices instituted in Pedro II School:
a look at the occurrence book
Abstract: This study aims to investigate disciplinary practices instituted to students of the Pedro II School, the
period in which this teaching model institution was founded (1837). Will be used for this research, the first
disciplinary occurrence book, dated 1858, ending in 1859. We intend to answer the following question:
how the discipline imposed on the Pedro II School was according to the norms of conduct that should be
followed as rules for coexistence in the school environment? So instill civilized forms of personal and
moral conduct were part of a school culture and for this reason, we seek to understand the disciplinary
practices used in Pedro II School aimed at forming "good citizen." Such research will extend the
knowledge of the everyday school life of that educational institution, and contribute to the institutional
memory and for research in History of Education.
Keywords: Pedro II school. Disciplinary practice. Occurrence book.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 1, p. 29-46, abr. 2017.
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CARDOSO, Tatyana Marques de Macedo; OLIVEIRA, Claudia Maria Costa Alves de. Rastros de memórias das
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
Escola, memória e cultura escrita: considerações iniciais
A escola é um lugar de memória. Ao atravessarmos as marcas do tempo, nos deparamos
com inúmeros vestígios reconhecíveis de sua história, tais como o papel pautado, o quadro-negro
e o giz, a entrada da escola com seu hall de circulação, os muros que a rodeiam, a arquitetura
escolar. Na direção do pensamento de Viñao Frago e Escolano (1998, p. 46), “o espaço-escola é
tambpm uma construção cultural e, portanto, histórica”. Os objetos, os espaços da escola, os
edifícios escolares falam, não são neutros e constroem relações com todos aqueles agentes que
vivem em um espaço comum, como afirma o autor José Maria Hernández Díaz. São
especialmente reveladores da preservação e manutenção de uma memória escolar, constituindo-se
em interessantes objetos da história e da etnografia escolar. “La etnografia de la escuela no es
más que el resultado de aplicar una práctica etnográfica y una reflexión antropológica al estúdio
de la institución escolar” (HERNÁNDEZ DÍAZ, 2002, p. 229). Os objetos, os edifícios e os
espaços escolares são dotados de significados que podem nos atrair, repelir ou interpelar. De
acordo com José Maria Henández Díaz (2002, p. 246),
La cultura de la escuela se expressa em las redes sociales que configuran la institución, y
casi siempre através de los elementos materiales y físicos que la convierten em referente.
De ahí la imprescindible consideración de la memoria de la cultura de la escuela, de su
historia, através también de su materialidade, del labirinto de sus objetos y lugares de
memoria que la perspectiva del trabajo etnográfico nos ayuda a ordenar, situar e
interpretar.
No processo de aculturação à vida escolar, e no próprio fluxo das lembranças, o primeiro
dia de aula tinha seu papel capital: o dia do uniforme novo, do caderno escolar em branco, dos
lindos lápis coloridos afiados como agulhas, enfim, o dia da circulação dos suportes e utensílios
da escrita escolar nas práticas cotidianas de sala de aula, bem como o dia da transformação da
criança em aluno. A entrada na escola marcava a iniciação no mundo do trabalho escolar, no
universo da cultura escolar. A cultura escolar pode ser definida, de acordo com Julia (2001, p.
10), como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e
um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos”. Ou seja, pela cultura escolar é possível perceber os procedimentos
utilizados e os conhecimentos ensinados ou aprendidos em uma determinada instituição escolar.
Para Viñao Frago (2008, p. 29), “a cultura escolar não reside apenas nos modos de fazer e pensar,
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CARDOSO, Tatyana Marques de Macedo; OLIVEIRA, Claudia Maria Costa Alves de. Rastros de memórias das
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
mas também em seus aspectos materiais, presentes na disposição e usos dos espaços e tempos,
nos objetos de uso corriqueiro, nos materiais didáticos e nos objetos produzidos pela instituição”.
O presente trabalho tem como objetivo investigar a disciplina imposta aos discentes do
Colégio Pedro II, no período em que essa instituição modelar de ensino foi fundada, em 1837.
Assim, utilizaremos para essa pesquisa “vestígios do passado”, objetos quase invisíveis que
guardam a memória da educação, como o primeiro livro de ocorrência disciplinar datado de
1858. Dada a natureza manuscrita dos livros de ocorrência disciplinar, podemos considerar que
tais livros se constituem como fontes histórico-educativas, pois revelam práticas escolares
pautadas na questão disciplinar e, constituem produtos, não só da cultura escolar, como também
da cultura escrita.
A história da cultura escrita é uma forma específica de história cultural que tem por
objetivo a interpretação das práticas sociais da leitura e da escrita.
Armando Petrucci (2002 apud CASTILLO GOMEZ, 2003, p. 96), afirma que:
[...] saber por qué razones se há hecho uso de la escritura en cada momento y sociedade,
conocer la distribución de las capacidades de escribir y de ler, las materialidades de lo
escrito, y los distintos lugares, espacios y maneras em los que se haga experimentado su
recepción y apropriación, en fin, las prácticas de la escritura y de la lectura, es uma
forma de hacer historia cultural.
A escrita é um eficiente suporte de memória que traduz maneiras de pensar, revela
valores, transporta o passado para o presente, ajuda a construir a realidade, inscreve o tempo e a
história e, aparece como um meio privilegiado de tomada de consciência. A escrita não seria um
mero instrumento intelectual, pois, transforma não só o modo, mas o conteúdo da comunicação
da mensagem. Segundo Antonio Castillo Gomez (1999), a cultura escrita aponta uma forma
distinta de organizar e pensar a realidade, em que “a estrutura do conhecimento foi alterada por
intenções de representar o mundo sobre o papel” (p. 121).
Na escola, a cultura escrita circula na rotina das lições e exercícios, sob a forma de
redações, cópias, definindo mecanismos pedagógicos, ocasionando trocas sociais e intercâmbios
entre os saberes. O material escrito produzido por docentes, discentes e funcionários se articulam
como dispositivos de controle, de produção da cultura escolar e de práticas escolares.
Portanto, escola, memória e cultura escrita se entrecruzam com a história da educação. Na
gama de objetos escolares - livros, cadernos, diários, cartas, mensagens, bilhetes, mobiliários,
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práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
fotografias, uniformes, etc. - presentes nas instituições de ensino residem testemunhos de uma
época, de uma cultura, que possibilitam compreender a especificidade de uma escola. No
presente trabalho, mergulharemos na história do Colégio Pedro II, trazendo à luz um objeto
pouco utilizado como fonte de pesquisa: o primeiro livro de ocorrência disciplinar, datado de
1858. Tal livro é destinado à escrita escolar dos inspetores, onde são revelados os castigos
aplicados aos discentes em razão de se manter uma “boa conduta” e um “bom comportamento”
no ambiente escolar. Reconhecer nos suportes de escrita escolar a maneira como os discentes
eram disciplinados em uma determinada época, mostra assim a importância da cultura escrita
gerada no interior da escola, mantendo viva a memória da educação e da instituição.
O Colégio Pedro II: suas origens
De acordo com Raja Gabaglia (1914), no primeiro anuário do Colégio Pedro II (CPII), a
verdadeira origem do atual Colégio Pedro II esteve ligada ao velho Seminário dos Órfãos de São
Pedro criado pela Provisão de 08 de junho de 1739 do virtuoso e ilustrado Bispo D. Frei Antonio
de Guadalupe. A Igreja de S. Pedro foi construída pelo mesmo Bispo para a irmandade dos
Clérigos e, portanto, é fácil compreender o motivo que levou o Bispo anexar-lhe um colégio onde
se ensinassem os rudimentos da religião e do culto. Este Colégio ficou conhecido pela
denominação de Seminário de S. Pedro e os alunos pela de Órfãos de S. Pedro. A denominação
de Seminário de São Joaquim veio a partir de 1766, quando o Colégio dos Órfãos de S. Pedro
mudou-se para a região da Rua do Valongo, através da doação de Manoel de Campos Dias. Este
local abrigava a capela consagrada a São Joaquim. O colégio foi transformado no Seminário de
São Joaquim, que funcionava no mesmo local onde fica atualmente o campus Centro do CPII, na
Av. Marechal Floriano, no Rio de Janeiro.
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práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
Figura 1 - Campus Centro-RJ, Colégio Pedro II
Fonte: PORTAL do Colégio Pedro II. Campus Centro. Rio de Janeiro: CPII, 2016. Disponível em:
<http://www.cp2.g12.br>. Acesso em: 05 jan. 2016.
A proposta de reorganização desse Seminário ocorreu na Regência de Pedro de Araújo
Lima, o Marquês de Olinda, sendo Ministro da Justiça e secretário de Estado dos Negócios do
Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos. Este converteu o Seminário em Colégio de Instrução
Secundária. Através de um decreto de 02 de dezembro de 1837, o Seminário foi batizado de
“Imperial Collegio de Pedro Segundo”. A data foi escolhida de propósito, por conta da data
natalícia do Imperador Pedro II, que completava, na época, doze anos de idade. De acordo com
Alves (2006, p. 184), “o grande responsável pela obra que transformou o antigo edifício do
Seminário de São Joaquim no imponente Imperial Collegio de Pedro Segundo foi o arquiteto
Grandjean de Montigny”, membro integrante da Missão Francesa vinda ao Rio de Janeiro em
1816, na época de D. João VI.
O decreto de 02 de dezembro de 1837 estabeleceu que no Colégio de Pedro II seriam
ensinadas as línguas latina, grega, francesa e inglesa, além de retórica e dos princípios
elementares de geografia, história, filosofia, zoologia, mineralogia, botânica, química, física,
aritmética, álgebra, geometria e astronomia. “O regime poderia ser de Internato e Externato, e o
pagamento dos honorários para os alunos pagantes seria fixado pelo governo. Segundo o mesmo
decreto, o governo poderia admitir gratuitamente até onze alunos internos e dezoito externos”
(BRASIL, 1837, p. 60). Esse documento oficializou a fundação da instituição de ensino e
permitiu as primeiras contratações dos profissionais que trabalhariam na instituição.
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Com o decreto de fundação, surge também o Regulamento do Colégio Pedro II, aprovado
em 31 de janeiro de 1838. A filosofia educacional e a proposta de ensino do Colégio Pedro II,
contida no Regulamento n. 8, de 31 de janeiro de 1838, obra do Ministro Vasconcelos, registra de
forma detalhada a estrutura organizacional e acadêmica da escola, envolvendo todos os
segmentos da instituição com as concepções morais que o fundamentavam.
Os diferentes estatutos, promulgados ao longo de todo Império, estabeleceram a rotina da
instituição, as atribuições dos funcionários, a distribuição das disciplinas pelas séries, bem como
o número de aulas semanais de cada uma. Em um dos capítulos (XVI), esse regulamento trata dos
castigos a serem aplicados ao seu corpo discente, com 09 artigos que abordam um conjunto de
prescrições explicitamente punitivas e corretivas (BRASIL, 1838). Destacaremos, a seguir, o art.
91 do regulamento n. 8:
Dos castigos: Art. 91 - Sempre proporcionados à gravidade das faltas, os castigos serão
os seguintes: 1º - Privação de uma parte, ou da totalidade do recreio com trabalho
extraordinário. 2º - Privação de passeio com trabalho extraordinário1 . 3º- Proibição de
sair. 4º - Prisão: a prisão será um lugar suficientemente claro, e fácil de ser inspecionado,
onde o aluno ocupar-se-á constantemente de algum trabalho extraordinário. 5º - Privação
de férias, em todo, ou em parte. 6º - Vestir a roupa às avessas. O aluno assim vestido
ocupará lugar à parte nas aulas, e salas de estudos; e não assistirá aos passeios, nem aos
recreios. 7º - Moderada correção corporal. 8º - Exclusão do Colégio (BRASIL, 1838, p.
75).
Diante do exposto, indagamos: quais eram as faltas passíveis de punição? O que era
considerado falta leve/grave? Em que momento a prisão deveria ser utilizada? Qual era a
moderada correção corporal adotada? Essas questões poderão ficar mais claras na próxima seção,
quando as ocorrências contidas no primeiro livro serão analisadas.
Se o perfil do CPII configurado pelos critérios do saber erudito, refletia o sistema de
valores político-culturais do projeto civilizador do Estado e o lugar da educação na sociedade
imperial hierarquizada e elitista, cabe-nos investigar como essa escola oficial representava o
espaço de formação do cidadão disciplinado e culto. Se a possibilidade de ascensão social se dava
através da valorização da instrução escolar, podemos imaginar que a questão disciplinar teve um
grande peso na formação desses alunos.
Ferrenho defensor de uma instituição modelo, o Ministro e Secretário dos Negócios da
Justiça, Bernardo Pereira de Vasconcelos afirmava que “a disciplina deveria pesar mais sobre os
1 Vide Art. 93. O trabalho extraordinario, anexo (sic) a alguns castigos, consistirá em copiar pedaços de prosa, ou
verso, indicados por quem houver imposto o castigo (BRASIL, 1838, p. 75).
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empregados, do que sobre os alunos da instituição, fáceis de conduzir quando a vigilância e o
respeito lhes assinala a estrada” (VASCONCELOS, 1950, p. 178). Ou seja, esses empregados
deveriam não só instruir, mas, sobretudo, educar a juventude, exercendo uma espécie de
“sacerdócio moral”. Assim, caberia à escola “educar”, o que incluía, para alpm dos conte~dos
destinados ao preparo intelectual, outros mais, destinados ao preparo físico e à formação moral
do cidadão.
A “mais perfeita educação da mocidade”, no Colpgio Pedro II, era presidida pela
formação do caráter. Como afirmou Vasconcelos, em seu discurso inaugural, a disciplina imposta
aos alunos visava a que “se arraigassem desde cedo na mocidade o horror ao crime, a aversão à
indolência, o cuidado desses deveres, o necessário hábito de mandar sem despotismo e obedecer
sem servilismo” (DÓRIA, 1997, p. 25). Reproduzir controlando a formação da mocidade, futura
boa sociedade imperial, era o intuito do educandário: esperava-se do aluno, ingresso e egresso,
uma disciplinarização do corpo e do espírito. Pressupunha um olhar não mais destinado a corrigir
falhas, mas, a evitar que fossem cometidas.
Livro de ocorrência: pistas de práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II
Para se discutir alguns elementos constitutivos das práticas disciplinares existentes no
cotidiano escolar utilizamos como objeto dessa pesquisa os Livros de Ocorrência Disciplinar.
Tais livros constituem-se em um instrumento institucional utilizado na escola, em sua acepção,
para registrar os acontecimentos que prejudicam o seu funcionamento, no que diz respeito as
condutas dos alunos. Segundo Moro (2003), esses livros, em sua origem, eram denominados
como “Livro Negro” ou “Livro Preto” devido ao caráter punitivo e ao temor dos estudantes em
ter o nome anotado em suas páginas e das consequências disciplinares. No senso comum ainda
costuma receber este nome, sendo que, a maior parte dos registros diz respeito a problemas
relacionados à indisciplina. No geral, o que parece ficar no imaginário social é que existe um
“Livro Negro” que é destinado aos registros em que há nomes de sujeitos que fizeram algo de
errado, que são devedores ou traiçoeiros.
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Figura 2 - Livros de ocorrência disciplinar
Fonte: COLÉGIO PEDRO II. Núcleo de Documentação e Memória
- NUDOM. Livros de ocorrências
disciplinares, de 03 de fevereiro de 1858 até 11 de abril de 1859. Fonte manuscrita. Rio de Janeiro:
CPII, 2016.
As ocorrências presentes no primeiro livro de ocorrência do Colégio Pedro II são anotadas
pelos inspetores, que são autores dos registros. A utilização desse tipo de instrumento de controle
visava garantir o bom funcionamento das aulas, para que todas as atividades acontecessem como
haviam sido previstas e, como um recurso utilizado pelas Direções dos estabelecimentos.
De acordo com Moro (2003), esses registros revelam como se configuravam as relações
interpessoais nas escolas, e principalmente, a importância da disciplina:
Vemos que a finalidade dos referidos livros era a de estabelecer normas e regras para o
bom funcionamento das escolas. Um dos pontos fulcrais ou primordiais, era a disciplina,
entendida como medida fundamental para o desempenho do processo de ensino-
aprendizagem (p. 5).
Segundo Ratto (2002), entre as principais finalidades dos livros de ocorrência destacam-
se: descrever e punir condutas que não condizem com as regras pré-estabelecidas pela escola;
comunicar e alertar aos pais atitudes inconvenientes de seus filhos - para que estes sejam
convencidos do erro e ajudem na conduta disciplinar -; e no caso particular de violências ou de
conflitos graves, assegurando a proteção da escola de forma cuidadosa, com tomadas de decisões
cabíveis diante dos problemas escolares.
Para embasar as análises que serão realizadas a partir das ocorrências contidas no livro,
será utilizado o teórico Michel Foucault (2013) como referencial, uma vez que o autor trata a
perspectiva da disciplina escolar como aquela que cria sujeitos dóceis, adaptáveis às relações de
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poder estabelecidas na sociedade. Nesse sentido, nenhum delito poderia escapar do controle da
equipe escolar, que deveria ser um ambiente regrado, livre de quaisquer desvios. Por isso os atos
de indisciplina eram registrados acuradamente e punidos com rigor.
Ao nos depararmos com os escritos contidos nos livros de ocorrências, surgiram algumas
questões: qual é a importância dos registros diários dos inspetores de alunos? Essa escrita era
secreta? Obrigatória? Onde guardavam esses livros? Podemos considerar esse tipo de escrita
como autobiográfica? Muitas questões ainda precisam ser desveladas e esse é o caminho da
pesquisa, que encontra-se em andamento. Porém, esses escritos mostram-se como grandes
tesouros para a história da educação e da instituição. Quanto à importância dos registros dos
inspetores, destacamos a necessidade de explicitar que registrar significa, segundo Ostetto,
Oliveira e Messina (2001), “responsabilizar-se por seus desígnios, seus projetos. É lançar-se para
frente. Ver-se e rever-se. É envolver-se com o resgate da sua palavra” (p. 25).
Com relação à escrita autobiográfica, Mignot, Cunha e Bastos
(2000) sublinham a
dimensão pedagógica dessa escrita, quando abordam que esta prática, desde o século XIX, era
incentivada por famílias, confessores e educadores, que estimulavam as anotações dos
conhecimentos mais importantes do dia por meio dos diários íntimos e da troca de
correspondências entre amigas. Esses livros de ocorrência se aproximam muito desse tipo de
escrita autobiográfica, e, até mesmo de um diário, visto que os inspetores responsáveis pela
consolidação das ocorrências narravam à sua maneira diversos episódios relacionados aos atos
indisciplinados praticados no Colégio Pedro II, de forma contínua, como uma das práticas
valorizadas pela escola.
O ato de escrever aparece a partir dos diferentes momentos de socialização dos sujeitos no
interior de uma instituição escolar. Tais registros podem resultar tanto da necessidade de exercitar
a liberdade como da obrigatoriedade de sua execução, ou seja, da procura de uma atividade
prazerosa e do autoconhecimento, ou, podem estar relacionados ao preenchimento e produção de
documentos administrativos. Cremos que o registro dessas ocorrências era mais burocrático,
devendo ser executado de forma obrigatória como um instrumento de controle. Curioso observar
que o primeiro livro de ocorrências, datado de 1858, seguindo até 1859, registra as ocorrências
dos alunos, nome a nome, indo desde o 7º ano até o 1º ano, enquanto que o último livro do século
XIX, datado de 1891 até 1898, nos revelam as ocorrências do dia. Valorizar o dia a dia de
inspetores, professores, alunos e funcionários de uma escola é de extrema importância, pois, tais
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escritos transmitem determinados modelos culturais, mostram diversos aspectos sobre os
processos pedagógicos, didáticos ou curriculares, falam dos alunos, das práticas pedagógicas,
enfim, de uma gama de possibilidades do cotidiano da instituição. Assim, tais suportes da escrita
escolar devem ser valorizados e preservados nos acervos escolares.
Diante de um rico material voltado para a história da educação, cabe-nos sistematizá-los.
Dessa forma, gráficos foram elaborados, assim como categorias para as ocorrências, com o
intuito de organizá-las. Alaridos, brigas, mau comportamento, não dar conta das lições: eis
algumas das categorias mais encontradas no primeiro livro de ocorrências, conforme gráfico
elaborado a seguir:
Gráfico 1 - Causas dos castigos em 1858-1859, no CPII
Fonte: Elaborado pela autora.
Como podemos observar, as causas dos castigos são muitas, e quatro delas tiveram um
percentual maior em relação às demais (13%): conversar na sala do silêncio, fazer alarido após
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saída do professor de sala de aula, mau comportamento e não dar conta de suas obrigações na
aula.
Essa primeira sistematização parece revelar aspectos que os inspetores consideram
importantes para o registro, isto é, o que esses educadores consideram como inadequado em
relação às atitudes dos alunos, seguindo as regras estabelecidas no educandário.
A aparelhagem da inspeção organizada permite observar as operações da arte de punir:
comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar e excluir (FOUCAULT, 2013). Por meio de
estratégias bem definidas, pode comparar professores, diferenciá-los segundo a produtividade,
gerar uma hierarquia definida por gratificações e prêmios concedidos aos serviços prestados com
distinção, homogeneizá-los por meios de coerção e excluir os que cometessem delitos. A
condição indispensável ao funcionamento do ensino, tomada na forma de artigos de lei, confere
legitimidade à vigilância, confirmando-a como parte dos mecanismos da disciplina.
Michel Foucault aproxima a noção de disciplina àquilo que se poderia designar por "teoria
geral do adestramento", colocando no centro de toda a problemática a ideia de docilidade. Afirma
que um corpo dócil é aquele que “pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2013, p. 132). Esta ideia permite-nos ver o corpo
como um elemento que é alvo e objeto de um poder que procura afirmar-se através da descoberta
e implementação de “processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do
corpo” (p. 132). Segundo este autor, a segunda metade do século XVIII assistiu a esta descoberta
do corpo como objeto de um conjunto de preocupações anatômicas, filosóficas, técnicas e
políticas, resultando no desenvolvimento de diferentes ciências ligadas ao Homem, que
apresentam como objetivo descobrir e conhecer cada pormenor do ser humano, de modo a que
fossem determinadas as melhores formas de atuar sobre ele.
A disciplina poderia assim ser vista como uma forma de produzir corpos dóceis e
submissos, profundamente ligada a uma organização do poder que seria o resultado da evolução
de uma multiplicidade de processos que se encontrariam muito cedo nos colégios, depois nas
escolas primárias, nos hospitais e no exército. Os indivíduos seriam assim objetos e instrumentos
do exercício de um poder que, através da sua ação disciplinadora, procuraria "fabricar"
indivíduos dóceis e úteis.
Foucault procura, portanto, colocar as disciplinas dentro de uma tática do poder
estabelecido que, através da minuciosa orientação dos mais ínfimos detalhes, procuraria o
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domínio e a submissão através de qualquer forma de treino. Desta forma, a educação escolar, ou
militar, seria uma maneira de pôr em prática esses mecanismos de controle. Por falar em controle,
será que os estudantes tinham acesso à essas ocorrências? Até o momento, não encontramos
pistas sobre tal conduta. Assim, não é possível saber quais as percepções e/ou concepções dos
alunos sobre elas.
O segundo gráfico foi elaborado tomando por base as penalidades aplicadas aos discentes
com relação as causas dos castigos:
Gráfico 2 - Penalidades aplicadas, 1858-1859
Fonte: Elaborado pela autora.
Com base no gráfico acima, podemos verificar que as penalidades em destaque são:
admoestações e privações do recreio, seguido de repreensões e retenções.
Ao entrecruzarmos as penalidades aplicadas com as causas dos castigos e, observando
também o regulamento n. 8, datado de 1838 (BRASIL, 1838), é possível vislumbrar pistas do que
era considerado falta leve ou grave. Inferimos que as faltas consideradas leves são aquelas
relacionadas as brincadeiras na aula, na ordem ou, nos corredores, emitindo sons/ruídos, tais
como: alaridos, gritos e conversas. Essas faltas relacionam-se com os três primeiros parágrafos do
regulamento, vinculadas as privações e proibições de sair. As faltas consideradas graves são, por
inferência, aquelas relacionadas ao desrespeito, seja ele de aluno para aluno ou de aluno para
funcionários da instituição, como também agressões físicas. Nota-se que para esse tipo de
comportamento (desacato ou briga), os discentes são punidos por meio da prisão.
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Até o presente momento da investigação, não foi localizado nenhum castigo em que
houvesse “moderada correção corporal”, conforme exposto no parágrafo 7, do art. 91 referente ao
primeiro regulamento da instituição (BRASIL, 1838, p. 75).
Também é possível notar com relação às penalidades, diferentes níveis na sua execução.
Admoestação, de acordo com o dicionário, significa uma “observação crítica com o intuito de
censurar”. É sinônimo de conselho, aviso dado a alguém que fez algo errado. Inferimos que as
admoestações estão num grau mais leve, enquanto que as repreensões estariam num grau acima,
onde a intensidade da censura seria mais intensa, seguida das retenções. As privações estariam
relacionadas a falta de algo que é necessário à vida. Neste caso, o recreio, que no ambiente
escolar é tido como o período de tempo em que os discentes desfrutam do lazer, do prazer.
É importante observar que apesar de não termos encontrado castigos corporais nas
ocorrências analisadas, localizamos castigos morais. Castanha (2009) e Lemos (2012) afirmam a
falta de consenso no século XIX sobre os castigos físicos, seja entre educadores ou na legislação
da instrução. A lei geral de ensino do Brasil, de 15 de outubro de 1827 (BRASIL, 1827),
estipulava as punições de acordo com o método de Lancaster, favoráveis a sanções morais. Como
descreve Lemos (2012, p. 248), “sempre dar preferência aos castigos morais, como os mais
próprios da educação dos homens livres. Sendo necessário empregar os castigos físicos os
professores usarão somente a palmatória, aplicada até uma dúzia de palmatoadas conforme a
gravidade da culpa”. Para os autores acima mencionados, a proibição de castigos violentos p
explicitada apenas no regimento interno das escolas da corte de 1855. Castanha (2009), Dalcin
(2005) e Fin (2008) descrevem como essa orientação foi introduzida na legislação das províncias
do Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso, que previa a manutenção da disciplina com base em um
sistema de prêmios e punições morais. Não foi diferente no Colégio Pedro II. Assim como os
castigos, os alunos também eram recompensados, com prêmios diversos.
Para Dalcin (2005), a própria separação entre punição física e moral é tênue. A violência
simbólica das penas vexatórias era tão efetiva quanto a dos golpes da tradicional palmatória, e
manteve o caráter doutrinário e disciplinador. Além disso, a transformação do discurso sobre as
formas de penalizar não se reverteu rapidamente em uma mudança sobre as práticas. De acordo
com a autora Veiga (2009), o abandono dos castigos corporais ocorreu no Brasil apenas no final
do século XIX, com a promoção de hábitos civilizados entre educadores e alunos.
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CARDOSO, Tatyana Marques de Macedo; OLIVEIRA, Claudia Maria Costa Alves de. Rastros de memórias das
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
De acordo com o regulamento do CPII, “vestir a roupa às avessas, ocupando um lugar à
parte nas aulas, e salas de estudos” p um exemplo de castigo moral. Mas, no primeiro livro de
ocorrência disciplinar não encontramos alunos trajando-se dessa forma. Porém, encontramos o
castigo “ficar de pp a estudar por 1h” por “fazer alarido na ordem”, que não deixa de ser um
castigo moral. O aluno castigado “sofre sozinho”, enquanto a desonra e a infkmia p~blica
marcam o sujeito socialmente. Os autores Júlia Varela e Alvarez-Uria nos indicam vestígios
sobre o processo de transformação proposto pelas instituições disciplinadoras e, ainda, os demais
mecanismos de formação educacional.
“A educação assume o papel de fabricar sujeitos
instruídos e cultos, mas também tem a função de inculcar-lhe a virtude da obediência, modelando
comportamentos” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1991, p. 13). Assim, quaisquer que fossem os
meios de transmissão de cultura,
“seus agentes deveriam atuar mais como um agente
disseminador de uma mentalidade moralizante que como um difusor de conhecimento” (PINAS,
2014, p. 126).
De acordo com Dallabrida (2002), desejava-se moldar a alma da juventude, produzindo
subjetividades, pelo controle do espaço, a escanção do tempo, a separação de alunos em classes e
grupos, a emulação e a individualização das carreiras escolares. “Aos alunos que fugissem da
normalização eram punidos por meio de castigos morais, tais como ficar de pé por alguns
momentos durante as aulas, ficar após as aulas fazendo cópias” (p. 3).
As cópias já estavam presentes no regulamento n. 8. O primeiro, segundo e quarto
parágrafos estão associados a trabalhos extraordinários, que estão relacionados ao trabalho de
escrita. Nas ocorrências analisadas, também encontramos esse tipo de castigo - “copiar 12 verbos
gregos por 1h”. Souza (2000) informa que a escola p~blica imperial tomou de empréstimo da
educação jesuíta, junto com a noção de classe de aula, com o papel dos exercícios e das
antologias, da emulação, da disciplina do silêncio, do domínio do corpo, da colocação em fileiras
- a repetição do exercício e da memória. “A pedagogia do exercício formou-se através do papel
atribuído aos manuais, aos trechos dos grandes textos a serem imitados, aos programas e práticas
que limitavam a diversidade de experiências e personalidades” (p. 90).
Diante do exposto, foi demonstrado, através do primeiro livro de ocorrência, algumas
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II. Tido como um instrumento de escrita, esse
livro revelou-se como um testemunho permanente dessa cultura, ressaltando a importância da
cultura escolar de uma época. Por meio dessa fonte de pesquisa, os inspetores relataram suas
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 1, p. 29-46, abr. 2017.
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CARDOSO, Tatyana Marques de Macedo; OLIVEIRA, Claudia Maria Costa Alves de. Rastros de memórias das
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
vivências na escola, permitindo-nos refletir sobre quais condutas, disposições e resultados eram
necessários aos alunos para sua boa inserção na escola e na sociedade. A leitura desses escritos
possibilitou-nos estabelecer uma conclusão que parece óbvia: a importância que se dava à
instrução por meio da formação do caráter do cidadão através da rígida disciplina.
Portanto, podemos inferir que a pedagogia petrossecundense se fundamentava na
concepção de educação como formação moral, somada à aquisição de uma cultura geral,
enciclopédica. Contemplava não somente os objetivos oferecidos pelo Colégio Pedro II, mas,
sobretudo, uma espécie de propedêutica à vida pública, adestrando o aluno para a assimilação e
prática da cultura escrita e do exercício retórico, indispensável ao trânsito social dos notáveis em
uma sociedade de analfabetos e escravos.
Considerações finais
Esse trabalho é fruto de um projeto em curso. Para trilharmos um caminho, precisamos de
dados e perspectivas teóricas que nos auxiliem a desbravar nosso objeto de pesquisa. Com
relação aos dados, onde encontrá-los? Seja nos arquivos ou nas bibliotecas, deparamo-nos com
uma imensidão de documentos, que podem estar organizados e disponíveis ou perdidos pelo
descuido intencional, sistemático e criminoso com que os acervos da história e memória da
cultura e da educação brasileiras vêm sendo dilapidados em nosso país. Grandes tesouros
permanecem escondidos numa vasta gama de documentação “perdida” em instituições p~blicas
ou privadas, aguardando o olhar atento do pesquisador. Criamos “pistas” que nos obrigam a
sucessivos mergulhos. A vontade de demonstrar que nem tudo foi contado (mas sem a intenção
de dar a última palavra) pode nos mobilizar na árdua tarefa de separar dados, estabelecer novas
estratégias de percurso e definir rotas a serem seguidas no dia após dia dos arquivos. Essas rotas
são arbitrárias e o que as desenha são as questões, os investimentos teóricos e a atitude que
incorporamos aos nossos hábitos de pensar e pesquisar o nosso objeto. Chalhoub (1989, p. 9)
afirma que “só analisando diferentes vestígios e procurando relacioná-los entre si é que se pode
eventualmente chegar a formar uma imagem una e coerente do objeto pesquisado”.
Propomos, neste texto, refletir sobre alguns dados que foram levantados por meio dos
registros dos inspetores no primeiro Livro de Ocorrência disciplinar, datado de 1858, com a
finalidade de abordar alguns elementos constitutivos das práticas disciplinares instituídas no
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CARDOSO, Tatyana Marques de Macedo; OLIVEIRA, Claudia Maria Costa Alves de. Rastros de memórias das
práticas disciplinares instituídas no Colégio Pedro II: um olhar para o livro de ocorrência.
Colégio Pedro II, ainda no século XIX. Ao observar e descrever o comportamento dos alunos, os
inspetores fizeram uso da escrita a respeito dos espaços e sujeitos escolares como forma de se
exercer um controle que, ao objetivá-los, os expõe a certo campo de visibilidade. O exercício de
escrita pode ser entendido como componente de uma maquinaria disciplinar, que descreve e dá
visibilidade a determinados sujeitos e aspectos que, neste caso específico, se refere às práticas
disciplinares adotadas no Colégio Pedro II, notadamente ao seu corpo discente e as ações dos
inspetores. Suas práticas estão inseridas em um observatório permanente no qual se pode
evidenciar a existência de uma rede de relações de poder, marcada pelo registro dos
procedimentos de disciplinamento que oscilavam entre as “premiações” e os “castigos”.
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Tatyana Marques de Macedo Cardoso
- Universidade Federal
Fluminense.
Niterói
|
RJ
|
Brasil.
Contato:
tatyana_marques@yahoo.com.br
Claudia Maria Costa Alves de Oliveira - Universidade Federal
Fluminense. Niterói | RJ | Brasil. Contato: cmcalves@yahoo.com
Artigo recebido em: 4 out. 2016 e
aprovado em: 12 abr. 2017.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 1, p. 29-46, abr. 2017.