DOI: http://dx.doi.org/ 10.22483/2177-5796.2018v20n1p73-89
Aulas régias: luz que emana do trono
Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti
Resumo: O presente artigo tem como horizonte reflexões sobre a reforma do ensino que aconteceu no século XVIII,
no reinado de D. José I (1750-1777), por meio do Ministro Marquês de Pombal, as aulas régias no Brasil.
Nesta perspectiva, aborda-se o ideário iluminista, no qual a atuação da Igreja deveria ser restritamente
vinculada aos aspectos referentes à religiosidade, enquanto unicamente o Estado engajar-se-ia na
implantação, consolidação e manutenção da educação da população. Em sequência, tratam-se das
estratégias para a manutenção, expansão e continuidade das aulas régias. Por fim, este estudo sinaliza que
compreender a atuação do Marquês como retrocesso do ensino significa negar a relevância das ideias
iluministas como objeto passível de análise.
Palavras-chave: Aulas régias. Reforma pombalina. Iluminismo.
Aulas régias: light emanates from the throne
Abstract: This present article has as horizon a reflection about the education reform in the XVIII century, during the
D. Jose I reign (1750-1777), by the minister Marquis of Pombal, the Aulas Régias (Govern-funded
Lessons), in Brazil. In this prospect it approaches the enlightenment ideology that church should be strictly
bounded religiosity matters while only the State engages the implementation, consolidation and
maintenance the nation's education. Sequentially it goes about strategies from Portuguese royalty to
maintenance, consolidation and continuity royals’ lessons. Concluding, this study signs understand the acts
of Marquis as a teaching setback meaning deny the relevant ideas of enlightenment as objects subject to
analysis.
Keywords: “Aulas rpgias” (Govern-funded Lessons). Pombaline reform. Enlightenment.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
73
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
Introdução
Inicialmente, para refletir sobre as aulas régias, realizei, em dezembro de 2016, um
levantamento com vinte alunos concluintes de um curso de licenciatura em Música - discentes
formandos que já cursaram a disciplina História da Educação - e vinte pedagogos atuantes nas
redes das escolas públicas da cidade Teresina - capital do estado do Estado do Piauí. A partir
desta sondagem, constatei que menos de 15% desses dois grupos possuem alguma noção da
reforma do ensino que aconteceu no século XVIII, em Portugal e em todas terras sob seu
domínio, implantada no reinado de D. José I (1750-1777), por meio do Ministro Marquês de
Pombal.
Em outra sondagem, realizada no Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, constatei que aquela plataforma
disponibiliza somente três artigos que os termos Aula Régia combinados aparecem no título. A
saber: o trabalho de Cardoso, publicado em outubro de 1999, na Revista História da Educação da
UFPel, a respeito da implantação e consolidação da reforma pombalina no Rio de Janeiro (1759-
1834) (CARDOSO, 1999); o estudo sobre as aulas régias e os salários dos professores de Minas
Gerais (1795-1800), escrito por Morais, Oliveira e Margoti, publicado no ano de 2012, na revista
Educação em Perspectiva (MORAIS; OLIVEIRA; MARGOTI, 2012), ; e a investigação mais
recente, de 2016, sobre as aulas régias no Estado do Grão Pará (1899), de Arriada e Tambara,
divulgado pela revista História da Educação (ARRIADA; TAMBARA, 2016).
Esses achados iniciais apontam um afastamento da História da Educação de um
importante e longo período da educação no Brasil colônia, que adentrou ao império. Juntamente
com as ideias de António Nóvoa (2004) sobre a relevância da História da Educação hoje,
conjecturo ser oportuno abordar as aulas régias, em primeiro lugar, para cultivar um saudável
ceticismo, uma consciência crítica que nos permita suspeitar das novidades e manter um
distanciamento criterioso diante dos modismos pedagógicos que, com tanta frequência, nos
assaltam nas temáticas sobre as salas de aula e que podem nos dominar. Em segundo lugar, para
fomentar a compreensão, a convivência entre as identidades múltiplas, aspectos que definem
memórias, tradições, sentimentos de pertença e filiações - de comunidades reais e imaginárias -
de distintas formas e no cumprimento de diferentes papéis em que nós, seres históricos, nos
integramos. Em terceiro lugar, para pensar os indivíduos, em si mesmo, como produtores de
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
74
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
história, o que nos permite reavaliar o nosso próprio lugar no curso dos acontecimentos; e,
finalmente, para explicar que não há mudanças sem história.
Já que os entendimentos sobre as aulas régias não são pujantes no âmbito acadêmico da
atualidade, faz-se necessário abordar algumas concepções historiográficas sobre este sistema de
ensino que teve início em todo Império Português, em 1759, com a reforma implantada pelo
Marquês de Pombal, que perdurou no Brasil até 1834, com a Lei de 12 de agosto - caracterizada
pela descentralização do sistema de ensino - e que continuou na Europa, mais especificamente,
em Portugal, até 1860.
A nomenclatura aulas régias refere-se ao modelo educacional imposto pelo governo real
português por meio da reforma pombalina, na segunda metade do século XVIII, interrompendo o
combate dos soldados de Cristo - os jesuítas - na terra dos papagaios - Brasil - (NEVES, 1978) e
em todos os demais espaços que estavam sob os domínios da coroa portuguesa, reestruturação
“cuja a intenção objetivava suprimir a formação religiosa e o duplo poder do qual eram investidos
os professores - padres jesuítas: catequizar e instruir” (OLIVEIRA; RAMALHO, 2002, p. 2).
Como sinaliza Cardoso (2011), na perspectiva do “despotismo ilustrado a palavra régio tem um
caráter ambíguo, porque ao mesmo tempo em que remete à figura do monarca, reiterando uma
tradição absolutista, que resiste período a fora, representa também um avanço que o termo traz,
pela contraposição à tradição de ensino por parte da Igreja” (p. 182).
Fonseca (2014), ao fazer um balanço sobre a história da educação brasileira no período
colonial, sinaliza que o distanciamento das aulas régias acontece pelo fato dos historiadores da
educação focarem suas pesquisas na escola e suas relações institucionais e sociais, em corpus
documentais constituídos com fontes produzidas pelas instituições responsáveis pela educação,
por estarem estas evidências muitas das vezes mais acessíveis, por serem de fácil manuseio nas
organizações administrativas para o gerenciamento do sistema escolar, principalmente, a partir do
período conhecido no Brasil como segunda república. O mesmo ocorre pela disponibilidade de
outros tipos documentais do século XX, tais como: jornais, revistas, fotografias, escritas intimas,
(auto)biografias, além de impressos escolares e didáticos de uma forma geral, que impulsionam
as pesquisas de períodos históricos mais recentes do Brasil. Também se destacam os atrativos
pela metodologia da história oral, bastante utilizada em estudos históricos de tempos menos
distantes.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
75
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
Podem-se ressaltar, também, as resistências dominantes entre os investigadores quanto a
uma dimensão não escolar da educação, necessária para a compreensão dos processos e das
práticas educativas fortemente presentes nos spculos anteriores à independência. “Tomá-las como
objeto de pesquisa exige a problematização de eventos educativos nem sempre muito visíveis,
para os quais o acesso se faz por meio de fontes de natureza diversificada, por vezes dispersa e
quase sempre manuscrita” (FONSECA, 2014, p. 17). A compreensão da escola como instituição
da atualidade, com prédios unicamente erguidos para a realização do ensino - com corredores,
pátios, salas de aula, muitos discentes, horário estruturado, pessoal de apoio e espaços específicos
como pátio externo, biblioteca e refeitório - foi inicialmente concebido somente no século XIX.
Os estudos sobre a educação no Brasil colonial também demandam profundo e proficiente
conhecimento sobre a complexa estrutura político-administrativa e jurídica do regime real
português e de seus domínios, “indispensável para a compreensão dos processos educativos
escolares e para a identificação e manuseio das fontes, presentes tanto no Brasil quanto em
Portugal” (FONSECA, 2014, p. 17)
Com as bolsas de doutorado - sanduíche e pleno - e pós-doutorado nas últimas duas
décadas, as investigações científicas sobre a educação no período colonial vêm crescendo
quantitativa e qualitativamente, principalmente, com a utilização de fontes que eram pouco
mobilizadas pelo campo da História da Educação no Brasil, documentos indispensáveis para
estudos do período focado neste trabalho, quando a atuação efetiva da escola ainda era frágil e a
concepção sobre a educação era mais abrangente do que a compreensão de escola ou de
escolarização. Ou seja, este crescimento, mesmo que ainda tímido, aconteceu, sobretudo, pelo
fato de muitos brasileiros terem oportunidades de uma aproximação acadêmica com as
universidades e acervos portugueses.
Nesta perspectiva, tornam-se importantes os estudos de práticas e de métodos educativos
a partir da consolidação das mobilizações de diferenciados e pouco convencionais corpus
documentais para o campo da historiografia da educação, numa perspectiva da Nova História
Cultural, além dos estudos das fontes oficiais tradicionalmente mais conhecidas, de âmbitos
governamentais, administrativos e fiscais. É indispensável considerar, neste contexto, a
“construção de problemas de pesquisa que enfocam grupos sociais específicos, suas relações
entre si e com outros e os efeitos que práticas educativas distintas puderam ter sobre eles e sobre
suas posições na sociedade colonial” (FONSECA, 2014, p. 17).
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
76
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
Considerando tudo isso, as questões que delineiam o horizonte deste texto são as
seguintes: de que maneira as articulações políticas e ideológicas fomentaram a reforma do ensino
no reino português no século XVIII? Como foram realizadas as medidas ordenadas pelos
soberanos portugueses para o afastamento dos padres da Companhia de Jesus e para implantação
das aulas régias? Para dar contornos ao presente trabalho, organizei este artigo em duas seções,
ambas chaves de entrada de pesquisa sobre o tema aulas régias. Estas partes do texto são notas de
escritas não acabadas, pois penso que o saber não é estático, fato que me leva a lembrar das
palavras de Larrosa (2001):
Notas de leituras, reflexões fragmentárias em forma de esboços, uma ideia. Visualmente
se parece com uma colagem ou, melhor, com um desses murais de cortiça nos quais se
vai cavando, com percevejos, diferentes papeizinhos em torno do assunto. Musicalmente
se pareceria a uma série de variações sobre um tema. Mas talvez, simplesmente, minhas
notas não sejam nada mais do que anotações preparatórias para o texto sobre uma
concepção da transmissão educativa, que até agora não fui capaz de escrever (p. 281).
Com o mesmo sentimento de Larrosa, minhas primeiras notas são sobre os aspectos
políticos e ideológicos que convergiram na motivação do reino português, no contexto da reforma
pombalina, para implantação das aulas régias, para o acolhimento dos ideais iluministas e para
expulsão dos padres da Companhia de Jesus das terras dominadas pela coroa. Na segunda série
de notas, ressalto o funcionamento das aulas régias, o controle do Estado, a crítica aos métodos
utilizados nas aulas dos padres jesuítas e os professores particulares que atuavam paralelamente
aos professores régios.
Secularização: medidas políticas na ação pedagógica
É impreterível colocar em baila as razões de uma transformação educacional, os motivos
que fomentaram a mudança oficial do ensino na totalidade do Reino Português por meio do
Alvará Régio da Reforma dos Estudos, de 28 de junho de 1759 (PORTUGAL, 1759a). Assim
como qualquer outra reorganização pedagógica, sabe-se que as transformações educacionais são
de cunho político, pois como elucida Libâneo: “a atuação política tem caráter pedagógico e a
atuação pedagógica tem caráter político” (2012, p. 37). Em outras palavras, tanto há nas ações
pedagógicas desdobramentos políticos, quanto há, na ação política, desdobramentos pedagógicos.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
77
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
No campo específico da História da Educação não foi diferente - melhor dizendo, não
tem sido -, contudo, há muitos que ainda se apegam a interpretações dualistas e tendenciosas,
para não dizer tambpm “romknticas”, sobre a educação no período do governo colonial e imperial
do Brasil. Por um lado, há os que consideram apenas os discursos dos republicanos que destacam
o “injusto” Pombal - que mobilizou a destruição da educação portuguesa, como um poderoso
gigante que criou um vazio educacional - contra os padres jesuítas. Esta ideia presente na
historiografia luso-brasileira, sobretudo, de cunho republicano, atribui a reforma em questão a
responsabilidade pelo atraso educacional do Brasil e de Portugal, até finais do século XIX. Por
outro lado, outros autores condecoram as reformas e as iniciativas pombalinas “em prol da
secularização da educação, a preocupação com o desenvolvimento científico por meio da reforma
da Universidade de Coimbra e as ações mais diretas pela imposição da língua portuguesa em todo
o Impprio” (FONSECA, 2014, p. 230). Portanto, faz-se necessária uma reflexão, pois reduzir a
atuação do Marquês ao retrocesso do ensino simboliza negar as proeminentes concepções
iluministas como propósito suscetível a análises e, ao mesmo tempo, acreditar em uma
emancipação dos proveitos dos soberanos para a preservação e continuidade da monarquia, e dos
atores sociais dominantes no Reino Português, exprime impugnar a integralidade à própria
História.
Sendo assim, faz-se imperativo a compreensão do momento histórico da implantação das
aulas régias. Muitas críticas a reforma pombalina - que afastou o trabalho de ensino jesuítico do
Brasil - partem de um entendimento no qual o processo educativo não era reputado como um
dever do Estado, no entanto, como uma responsabilidade da família e da Igreja. Segundo
Fernando de Azevedo (1943), durante os meados do século XVIII, com a forte influência das
ideias Iluministas, vários intelectuais intensificaram a discussão sobre a relevância da atuação do
Estado na educação.
Isso porque, na perspectiva do pensamento iluminista, a atuação da Igreja deveria ser
restritamente vinculada aos aspectos referentes à religiosidade, enquanto unicamente o Estado
engajar-se-ia na implantação, consolidação e manutenção da educação da população, tornando-a
útil ao império português. Para Boto (2010), a perspectiva iluminista da reforma pombalina, dos
estudos das primeiras letras à universidade, foi fruto de uma aposta de alguns intelectuais no:
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
78
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
[...] avanço do espírito humano e do conhecimento, no progresso dos povos e na
caminhada do gênero humano rumo a um indefectível percurso de aprimoramento - a
que chamava perfectibilidade -, O Iluminismo foi também um movimento de fé: fé na
razão, no futuro, na flecha de um tempo, no comércio entre os homens e, finalmente, fé
na educação. Admite-se ter sido a fé nessa racionalidade crítica que - transformava em
mística quase religiosa - firmou no Ocidente, para o bem e para o mal, o universalismo
do conceito de Humanidade. De todo modo, o espírito racional era e é universal (p. 282).
Entretanto, como Boto (2010) também destaca, Pallares-Burke (2001) questiona a boa-fé
dos líderes reais ao fazerem uso dos ideais dos intelectuais iluministas de outrora, pensando que
muitas decisões sobre as aulas régias, para implantação e organização das escolas do reino
português no século XVIII, não estão fundamentadas ingenuamente nos ideais iluministas,
porpm, sobretudo, numa estratpgia de dominação que denominou como história dos “dpspotas
esclarecidos”. Pallares-Burke (2001) entende que as medidas da esfera pública dos dominadores
portugueses foram de caráter despótico, com fins de usar a razão como pretexto para ilustrar o
brio, o poderio da coroa, do reino no velho mundo e na América Lusitana. Compreende que, em
tempos conturbados para a monarquia, num momento eminente de crise do sistema imperial,
acompanhado do fortalecimento das ideologias iluministas, a reforma do ensino constituía um
amplo conjunto de culturas, que trouxe para o lado do governo real renomados intelectuais do
período, para quem a educação é sinônimo de progresso e de aprimoramento de civilidade.
Isso pelo fato de ser neste contexto histórico, com a influência do Iluminismo, que a
concepção sobre a educação para todos com base na racionalidade começa a ganhar forma. É por
meio das aulas régias que se inicia um projeto e a vigência da escola pública no reino português.
Até então, mesmo que oferecido gratuitamente, os jesuítas cumpriam sua missão educacional
focalizando suas atividades na formação dos herdeiros das classes dominantes, geralmente,
constituídas pelos donos de terras. Vale ressaltar também que a ação pedagógica dos padres da
Companhia de Jesus era voltada conjuntamente para aos índios, porém com objetivos distintos da
prole dos abastados, uma vez que a educação que realizavam com os nativos era uma operação
missionária visando a captação de fieis servidores. Naquela conjuntura, os considerados
“selvagens” pelos leigos não serviam como escravos aos senhores portugueses (NEVES, 1978).
Considerando esta estrutura da sociedade brasileira do século XVIII, no contexto do reino
português, percebe-se que, dentre os excluídos do acesso à educação, estavam, principalmente, os
negros escravos, um grupo de pessoas desprovidas de todas as posses, além das mulheres, já que
a educação realizada pelos sacerdotes da Companhia de Jesus era exclusivamente para os
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
79
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
homens. As aulas régias foram, ao longo do tempo, uma ampliação do raio de ação educacional,
pois os professores régios, os docentes do rei, passaram a abarcar no seu ofício de ensinar alguns
negros e mulheres. Para Cardoso (2011), essa mudança profunda na estrutura educacional
representou um rompimento “com o pensamento escolástico e com uma tradição de spculos,
dando espaço para uma modernização que se pretendia com a criação de um Estado secular e
regalista, dentro de um projeto de reformismo ilustrado de constituição de um vasto e poderoso
impprio” (p. 180).
Sobre este rompimento do Império Português com a instituição católica Companhia de
Jesus, faz-se primordial sublinhar a fragilidade crucial dos soldados de cristo aos interesses do
reinado de D. José I, que abriu espaço à execução do Ministro Sebastião de Carvalho e Melo,
mais conhecido como o Marquês de Pombal; o apoio do papa à coroa portuguesa gerou um
desgaste dos jesuítas com o pontífice, o que acabou também afetando a relação da Companhia de
Jesus com a população, pois o povo ficou posicionado à favor do governo imperial e do mais
importante líder da Igreja de Roma. Nas palavras de Cardoso (2011),
[...] os jesuítas estavam sofrendo, naquele momento, rigorosa devassa por ordem do
próprio Papa Benedito XIV. Mesmo na América Portuguesa, os jesuítas já não contavam
com o apoio de importantes setores da população, devido a muitos atritos, especialmente
com as autoridades governamentais (p. 180).
Na época, espalhou-se pelo mundo católico um suposto atentado contra a família real
portuguesa e, como o Papa Benedito XIV perfilou-se com os que ficaram com a coroa, juntaram-
se as forças do trono e do mais poderoso homem que representava o altar divino contra os padres
jesuítas. Além disso, o povo, por influência de ambos os poderes - do estado e igreja -, passou a
olhar os sacerdotes da Companhia de Jesus com outros olhos, como “sacerdotes” suspeitos.
Esse contexto foi bastante favorável ao Ministro Marquês de Pombal, que trabalhava para
retomar a posição de Portugal como uma eminente potência dentre os outros reinos europeus e,
nessa direção, a ação jesuítica no campo educacional não era profícua às suas ambições
comerciais, pelo fato das instituições educacionais da Companhia de Jesus terem por objetivo
ministrar aulas vinculadas aos interesses da fé. Com a Reforma Pombalina, as aulas régias
direcionaram a educação ao serviço dos grandes interesses do reino português em busca da
modernização, por meio do Alvará de 28 de junho de 1759 (PORTUGAL, 1759a).
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
80
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
Antes da Reforma Pombalina, o governo monárquico não exercia um papel decisivo nos
âmbitos dos ensinos das primeiras letras, dado que as escolas onde se aprendia a ler, escrever e
contar ficavam a cargo da Igreja, mais especificamente, das congregações religiosas a escolha dos
próprios pais dos discentes. Cardoso (2011), ao fazer um mapeamento sobre a implantação do
ensino p~blico, sinaliza “o pioneirismo de Portugal em relação aos países do Ocidente, na
implantação de um sistema escolar estatizado” (p. 181). Depois da iniciativa do reino português
pela implantação das aulas régias se verifica, juntamente com os estudos de Cardoso (2011),
outras reformas que seguiram o modelo português na Europa, no sentido de instituírem a escola
pública, a saber, cronologicamente: Prússia, em 1763; na Saxônia, Polônia e Rússia, em 1773; na
Áustria, em 1774.
A experiência que Pombal trouxe do exterior - por ter sido ministro da Secretaria do
Exterior e da Guerra quando D. José I subiu ao trono da casa real, em 1750 - foi bastante
importante e ~til (BOTO, 2010). O Marquês “convivera durante anos com uma comunidade de
expatriados portugueses” (MAXWELL, 1996, p. 10) - grupo formado por muitas pessoas que
abandonaram as terras portuguesas por se sentirem alcançados, afligidos e molestados pela força
inquisitorial que representava o poder da igreja e o atraso das ideias iluministas - Além disso, o
ministro do rei possuía outra concepção relevante para o desenvolvimento do reino: as suas
inquietações contemplavam os anseios de uma gama de funcionários públicos e diplomatas
transeuntes por diferentes frentes organizacionais do reino, cidadãos que já tinham formulado um
pensamento comparativo da realidade do país com as estratégicas e técnicas mercantilistas
contemporâneas, que embasavam a robustez política por meio da riqueza econômica em outros
países da Europa daquele século (MAXWELL, 1996).
Por outro lado, para Azevedo (1962), a esfera política que fomentou a substituição do
modelo jesuítico para aulas régias, por meio da reforma pombalina, causou, no entendimento do
povo, uma profunda desarticulação no ensino. Em outras palavras, para parte da sociedade o “que
sofreu o Brasil não foi uma reforma de ensino, mas a destruição pura e simples de todo o sistema
colonial do ensino jesuítico” (AZEVEDO, 1962, p. 524).
Nesta outra perspectiva, o problema não foi somente um sistema ou tipo pedagógico que
se transformou ou se extinguiu. A crise na educação brasileira aconteceu pelo fato da expulsão
dos jesuítas não ser acompanhada de medidas simultâneas suficientemente eficazes tanto para
suavizar os efeitos morais da reforma quando para reduzir a extensão das lacunas do ensino que
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
81
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
foram criadas. Sendo assim, Azevedo (1962) aponta que, por um prisma - o olhar de um grupo da
população mais conservador - na implantação das aulas régias não se fez as devidas deferências
ao que já era realizado religiosa e pedagogicamente pelos padres jesuítas:
“a catequese, a
coeducação das raças, a defesa do gentio, a formação social e espiritual, o ensino, o aprendizado
e a sistematização do tupi” (p. 34).
Entende-se que a reforma responsável pela implantação das aulas régias não ocorreu de
maneira linear nos domínios do reino português. Ao contrário do trabalho dos jesuítas, que se
consolidou juntamente com os avanços do Brasil colonial, os direcionamentos da coroa
portuguesa por meio de Pombal foram marcados por eventos e etapas estanques num espaço de
tempo bastante longo, que teve início em 28 de junho de 1759 e que terminou oficialmente no
Brasil com a Lei de 12 de agosto de 1834. Por mais de sete décadas, tentou-se consolidar uma
prática pedagógica com ações pontuais.
As duas etapas são bastante demarcadas neste longo processo de implantação e
consolidação das aulas régias. O primeiro marco p o que dá início ao novo “sistema”, o Alvará,
com data de 28 de julho de 1759, que é ratificado com a Lei de 3 de setembro do mesmo ano
(PORTUGAL, 1759b), que expulsou os jesuítas de todo reino português, reconhecida
principalmente pela Reforma dos Estudos Menores, que abarcavam os estudos das primeiras
letras e as cadeiras de humanidades.
A segunda etapa aconteceu na implantação da Reforma dos Estudos Maiores, com a Lei
de 6 de novembro de 1772 (PORTUGAL, 1772), quando a coroa fez uma profunda intervenção
nos estudos específicos da Universidade de Coimbra. Esta legislação foi acompanhada de um
significativo ajuste com o objetivo de proporcionar sucesso efetivo aos alunos dos Estudos
Maiores por meio da base dos Estudos Menores, ratificando em alguma medida e consolidando as
deliberações assinadas desde 1759. Dessa maneira, demarcam-se os anos de 1759 e 1772, como
base na historiografia, como dois momentos, dois atos e uma só Reforma de Estudos, na qual
buscou-se a efetivação do novo sistema sob controle do governo real, as aulas régias.
Controle das aulas: professores e captação de recursos
As aulas régias, inicialmente, foram pensadas com a gratuidade do ensino, contudo, entre
os anos de 1759 e 1771 - em razão da Diretoria de Ensino dos Estudos ainda não realizar a gestão
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
82
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
financeira dos pagamentos dos professores - os docentes recebiam seus ordenados por meio das
Câmaras Municipais que, nestes primeiros anos da reforma do ensino, eram autorizadas a cobrar
das famílias dos alunos valores para tal fim. Problemas causados pela falta de pagamento dos pais
dos discentes eram constantes, uma vez que geravam uma forte oscilação na captação de
recursos, por consequência nos ordenados dos professores e na satisfação dos mesmos
(FERNANDES, 1994).
Assim, com o decorrer do tempo, a gestão dos estudos foi sendo deslocada, segundo
Fonseca (2013), passando sucessivamente pela Real Mesa Censória, Real Mesa da Comissão
Geral, sobre o Exame e Censura dos Livros, Universidade de Coimbra e até que, finalmente, foi
instituída, em
1972, a Junta da Diretoria Geral dos Estudos. Contudo, a administração
centralizada também não solucionou a problema do pagamento dos professores e, com o
transcorrer dos anos, a referida junta ficou bastante desgastada pela falta de recursos para gerir os
professores distribuídos por todas as terras governadas pela coroa.
Uma estratégia da Junta da Diretoria Geral dos Estudos para a manutenção, consolidação
e continuidade das aulas rpgias foi a criação do imposto alcunhado como “subsídio literário”, que
vigorou entre 1772 e 1843, visando a saldar os custos do ensino, principalmente, com os
pagamentos dos ordenados dos professores (MORAIS; OLIVEIRA; MARGOTI, 2012, p. 83). O
encargo era direcionado ao ensino das Primeiras Letras e Secundário, entretanto, rapidamente foi
constatado pelo Governo Real Português que os valores arrecadados eram exíguos para suprir as
demandas financeiras do novo modelo implantado, principalmente, para pagar os proventos e
direitos dos novos funcionários públicos, os docentes. Contudo, é relevante ressaltar que, a Carta
Lei de 6 de novembro 1772 (PORTUGAL, 1772) pela qual subsídio literário foi estabelecido -,
foi a origem do sistema público de ensino no Ocidente, no reinado de D. José I, pelas mãos do
Marquês de Pombal. O imposto era cobrado sobre as vendas de vinhos, vinagres, aguardentes e
carnes.
Inicialmente, as Juntas da Real Fazenda das Capitanias eram as instituições encarregadas
pelas realizações das arrecadações que formavam o montante do Subsídio Literário e, além disso,
também eram quem administravam os pagamentos dos professores, que, para receber seus
proventos, necessitavam apresentar evidências que provassem que desempenharam suas
atribuições com “bom” comportamento. Segundo os estudos de Moraes, Oliveira e Margoti
(2012), apesar dos mestres comprovarem constantemente a qualidade de sua conduta e reputação
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
83
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
nas aulas, parte significativa dos professores régios ficava bastante tempo com seu ordenado
atrasado, às vezes demoravam vários anos para receber. Este fato gerava muitos inconvenientes,
especialmente para aqueles que atuavam somente no magistério régio e, por consequência,
tinham ali sua única fonte de renda.
Muitos professores eram impelidos ao desgaste por necessitarem reivindicar por bastante
tempo às autoridades os seus proventos. O contexto financeiramente desfavorável levou muitos
docentes a complementar sua renda com outros ofícios e profissões, inclusive em cargos da
estrutura administrativa civil, eclesiástica e até mesmo militar. Apesar dos baixos ordenados, um
quantitativo expressivo de mestres permaneceu por longo tempo em mais de um emprego. Por
isso, eram constantes as reivindicações da sociedade,
“que reclamava de professores que
deixavam de comparecer às aulas para se ocuparem de outro ofício para melhor ganhar a vida”
(MORAES; OLIVEIRA; MARGOTI, 2012, p. 93).
Percebem-se, então, que existiam sérios problemas na implantação, manutenção e
consolidação das aulas régias, em consequência dos contratempos e embaraços de aspectos
financeiros, como os atrasos e baixos valores dos ordenados. Segundo Moraes, Oliveira e
Margoti (2012), a insatisfação dos docentes também se dava pelo fato do quantitativo dos
proventos serem distintos conforme a cadeira, a demanda de alunos e o volume populacional da
região.
Por causas das dificuldades que surgiram com as aulas régias, com o intuito de garantir a
homogeneidade do ensino, foi criado o cargo de diretor de estudos, com a função de monitorar e
controlar o processo de educação nas diferentes margens do Oceano Atlântico sob domínio da
coroa portuguesa, objetivando sinalizar qualquer problema ou insubordinação, pois cabia ao
diretor de estudos, em sua rotina de trabalho, visitar aulas no momento em que eram ministradas
e produzir relatórios com informações sobre o andamento do ensino na colônia e na própria sede
do reino português (OLIVEIRA; RAMALHO, 2002). Este controle era uma inovação, dado que
não havia vigilância e monitoria do Estado nas aulas ministradas pelos padres jesuítas da
Companhia de Jesus.
Dessa maneira, o novo modelo educacional, baseado nas aulas régias, foi ganhando
forma, sobretudo, na sua característica de unidade do ensino nos domínios do reino português.
Outro diferencial em relação ao trabalho realizado pela Companhia de Jesus - no qual um padre
ministrava matérias de diferentes campos do saber - era que na proposta pombalina havia
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
84
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
professores para lecionar as aulas de cada disciplina especificamente, dessa maneira, o docente
não se tornaria um “guru” capaz de agir na formação dos cidadãos do reino (OLIVEIRA;
RAMALHO, 2002). No nível inicial, nas Escolas Menores, eram ministradas as Aulas das
Primeiras Letras, com os conhecimentos pelo qual se aprendia a contar, ler e escrever - a língua
portuguesa, latina, grega, hebraica -, bem como, retórica e poética. Havia também as cadeiras no
nível secundário que era dividido em Humanidades, Filosofia e Ciências Naturais (CARDOSO,
2011).
Os candidatos desejosos de se tornarem professores das aulas régias eram examinados por
diferentes comissões, as provas dos concursos públicos variavam conforme a cadeira escolhida
pelo postulante. Aos selecionados por meio dos certames eram entregues uma nomeação
constando a cadeira e o tempo de habilitação. Havia três períodos de validade: um ano, seis anos
e definitiva. Os aspirantes que conseguiam apenas as habilitações provisórias necessitavam
requerer uma renovação de contrato assim que terminavam as validades dos documentos, pois
somente com suas licenças atualizados pelos diretores de ensino era possível continuarem
ministrando as aulas direcionadas e reguladas pela coroa. Geralmente, constavam nas
designações o local de atuação do professor e seus deveres relacionados ao cargo, assim como
seus privilégios e vantagens (FONSECA, 2014).
Por meio de algumas autoridades nomeadas pelo governo real - os diretores de ensino - a
instituição de controle das aulas régias era representada na colônia. Incumbidos pela coroa
portuguesa, por meio da Junta da Diretoria Geral dos Estudos, eles eram responsáveis pela
organização do ensino de uma maneira geral, nomeavam os candidatos professores aprovados nos
concursos públicos, propiciavam e renovavam as licenças para a atuação dos mesmos,
investigavam as denúncias oriundas da sociedade e gerenciavam as demandas.
Por meio do Alvará de 28 de junho de 1759, o soberano de Portugal decretou toda esta
reforma nos estudos, determinando que os sacerdotes jesuítas da Companhia de Jesus não se
prestassem ao ofício de ministrar qualquer aula e, de maneira semelhante, qualquer pessoa que
pretendesse utilizar os materiais produzidos por eles para ensinar. Em outras palavras, os
professores das aulas régias não deveriam utilizar os métodos dos jesuítas. Segundo Boto (2010),
o Alvará de 28 de junho de 1759 fundamenta-se na constatação de que havia uma caducidade na
totalidade dos campos dos estudos do Reino. Nesta perspectiva, o atraso e decadência do ensino
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
85
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
eram desdobramentos da utilização dos pouco claros, cansativos e enfadonhos métodos que os
sacerdotes jesuítas implantaram nas instituições comprometidas com seus ideais.
O desenho das aulas régias envolvia, então, um significativo afastamento das práticas e
dos materiais que o Marquês de Pombal entendia como o método antigo e ultrapassado que
deveria ser modernizado com termos simples, claros e de maior eficácia, como os que eram
praticados naquele período em alguns países da Europa. Assim, no projeto de ensino pombalino,
o diretor dos estudos também era responsável por não permitir o professor concursado,
funcionário do governo, a fazer uso dos métodos já utilizados nos domínios do reino de Portugal
nas escolas fundadas pela Companhia de Jesus.
No que se refere a localidade, com base na Lei 6 de novembro de 1772 (PORTUGAL,
1772), os professores deveriam atuar, preferencialmente, nas povoações maiores, locais que
atraiam um maior quantitativo de jovens, que muitas vezes abandonavam suas vilas e lugarejos
para capitanias mais urbanizadas e desenvolvidas. Sendo assim, havia outros mestres, nos
interiores, que atuavam informalmente por falta de representação da coroa. E, nos grandes
centros, além dos professores régios, atuavam professores particulares de ofícios.
Havia grupos de professores que ministravam as aulas régias nos lugares mais
desenvolvidos, entretanto, segundo Vasconcelos (2005), uma parte da elite resistia às reformas do
Império, optando por confiar seus filhos aos professores autônomos e ao ensino por meio de aulas
particulares. Estas famílias, que resistiam ao Alvará de 1759, acreditavam que deveriam eles
próprios controlar a formação dos seus descendentes e, com valores religiosos e menos
iluministas, apontavam uma lacuna de ordem moral oriunda do afastamento da ação dos padres
jesuítas na educação.
Estes professores, geralmente, ministravam suas aulas nas casas dos próprios alunos ou
então em lugares pelos quais eram responsáveis. Utilizam suas casas para ensinar e compravam e
produziam materiais específicos para o ensino, formulando um grupo de objetos que Bourdieu
(1998) chamou de capital cultural no estado objetivado. De acordo com inventários e testamentos
de docentes daquela época, levantados por Fonseca (2014), não era pequeno o acúmulo de
objetos dos que ministravam as aulas particulares, tais como: bancos adequados aos diferentes
tamanhos dos alunos, mesas de distintos modelos, estantes para dispor as bibliotecas, materiais
para o exercício da escrita, penas e respectivos tinteiros.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
86
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
Nos domínios portugueses, paralelamente as aulas régias, havia a instrução ministrada
pelos mestres, que eram as pessoas responsáveis pelo ensino dos ofícios considerados naquela
época como menos nobres, por serem mais mecânicos, como alfaiataria, carpintaria e pintura,
para os homens, e a costura e o bordado, para as meninas (FONSECA, 2014). Este tipo de ensino
também era realizado nas residências dos próprios mestres ou então nos seus locais de trabalho,
nas suas oficinas. Esta categoria de professor atuava, sobretudo, com crianças e jovens enviados
pelos asilos de órfãos e por famílias com escassos recursos, incluindo os filhos de escravos.
Principalmente para os meninos, esse tipo de formação era articulado com o processo de ensino
da leitura e escrita (FONSECA, 2014).
Em referência ao universo feminino, principalmente no século XIX, paralelamente ao
ensino pelas aulas régias ministradas às alunas - diferentes dos padres jesuítas que só atendiam
aos meninos e rapazes -, havia aqueles que ofereciam aulas particulares de francês, piano, corte e
costura, bordado e outras prendas domésticas. Isto conforme consta nos anúncios de jornais da
época, meio de comunicação pelo qual os professores ofereciam seus serviços para a elite
resistente a condução monárquica do ensino (VASCONCELOS 2005).
Considerações finais
Refletir sobre as aulas régias é interpretar os séculos XVIII e XIX, adentrar num ambiente
de desconstrução do ensino prioritariamente eclesiástico para uma perspectiva secularizada,
concebida pelos ideais iluministas que pretendiam alavancar a economia e a política do reino
português. Isso considerando que o império lusitano perdera sua envergadura dos tempos da
expansão marítima - na qual sinalizou para a Europa o caminho para as índias e que agregou
riqueza aos seus cofres com a dominação de terras que ainda não eram conhecidas pelas nações
europeias. Portanto, percebe-se que a mudança da responsabilidade do ensino, que era dos padres
da Companhia de Jesus, para o novo sistema educacional, baseado nas aulas régias, foi de caráter
político, com origem nos interesses dos soberanos do reino português e fundamentado nas ideias
dos intelectuais inspirados pelo Iluminismo.
Para tanto, os soberanos portugueses estabeleceram um sistema na pretensão de controlar
o ensino em todas as terras sob os domínios da coroa, sendo os professores das aulas régias
funcionários públicos, cidadãos - pagos com a arrecadação do imposto denominado subsídio
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
87
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
literário - que não poderiam utilizar os antigos métodos escolásticos dos jesuítas, inspecionados
pelos diretores de ensino. Entretanto, foi também o primeiro sistema estatizado de ensino, com
pretensões de gratuidade.
Finalizando, o sistema de ensino com base nas aulas régias que foi erguido por Pombal,
conforme a Lei de 1759, não pode ser entendido somente como uma imputação dos monarcas ao
dogmatismo da Escolástica, que seguia formando pessoas com um perfil não interessante para as
estratégias de manutenção monarquia. Por isso, este estudo sinaliza que é necessária uma
reflexão, pois compreender a atuação do Marquês como a destruição e retrocesso do ensino
significa negar as relevantes ideias iluministas como objeto passível de análise e,
simultaneamente, considerar a reforma do ensino como um direcionamento autônomo e ingênuo
em relação aos interesses de manutenção da monarquia e dos segmentos sociais dominantes no
Reino Português, significa negar um in totum a própria História.
Referências
ARRIADA, Eduardo; TAMBARA, Elomar Antonio Callegaro. Aulas régias no Brasil: o regimento
provizional para os proffesores de philosofia, rhetorica, grammatica e de primeiras letras, no estado do
Grão Pará (1799). História da Educação, Porto Alegre, v. 20, n. 49, p. 287-303, maio/ago. 2016.
AZEVEDO, Fernando de. A cidade e o campo na civilização industrial e outros ensaios. São Paulo:
Melhoramentos, 1962.
AZEVEDO, Fernando de. O sentido da educação colonial. In: A CULTURA brasileira. Rio de Janeiro:
Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1943. p. 289-320.
BOTO, Carlota. A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à
universidade. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010.
BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M.
A.; CATANI, Afrânio. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As Aulas Régias no Brasil. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS,
Maria Helena Camara. (Org.). Histórias e memórias da educação no Brasil. 5. ed. Petrópolis: Vozes,
2011. v. 1, p. 179-191.
CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As Aulas Régias no Rio de Janeiro: do projeto à prática 1759-1834.
História da Educação, Porto Alegre, v. 3, n. 6, p. 105-130, 1999.
FERNANDES, Rogério. Os caminhos do ABC. Porto: Porto, 1994.
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Educação na América Portuguesa: sujeitos, dinâmicas, sociabilidades.
História: Questões e Debates, Curitiba, v. 60, n. 1, p. 15-38, jan./jun. 2014.
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. As Câmaras e o ensino régio na América portuguesa. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 66, p. 229-246, 2013.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
88
MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Aulas régias: luz que emana do trono.
LARROSA, Jorge. Dar a palavra: notas para uma dialógica da transmissão. In: LARROSA, Jorge;
SKLIAR, Carlos (Org.) Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001. p. 281-295.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. 34. ed. São Paulo: Cortez, 2012. v. 1.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
MORAIS, Christianni Cardoso; OLIVEIRA, Cleide Cristina; MARGOTI, Suellen Cássia. Aulas régias,
cobrança do subsídio literário e pagamento dos ordenados dos professores em Minas Gerais no período
colonial. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 3, n. 1, p. 81-104, jan./jun. 2012.
NEVES, Luiz Felipe Baeta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1978.
NÓVOA, António. Por que a História da Educação? In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena
Camara (Org.). Histórias e memórias da educação no Brasil: séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Vozes,
2004. v. 1.
OLIVEIRA, Jose Pedro Garcia; RAMALHO, Betânia Leite. Aulas Régias na Capitania do Grão-Pará
(1759 - 1808). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: História e Memória
da Educação Brasileira. 2., 2002, Curitiba. Resumos... Curitiba: EdUFRN, 2002. p. 1-9
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Educação das massas: uma sombra no Século das Luzes. In:
VIDAL, D.; HILSDORF, M. L. S. (Org.). Tópicas em história da educação: Brasil 500 anos. São Paulo:
USP, 2001. p. 53-66.
PORTUGAL. Alvará régio de 28 de junho de 1759. Lisboa, 1759a. Disponível em:
<http://193.137.22.223/fotos/editor2/RDE/L/S18/1751_1760/1759_06_28_alvara.pdf>. Acesso em: 17
fev. 2017.
PORTUGAL. Alvará régio de 3 de setembro 1759. Lisboa, 1759b. Disponível em:
<http://193.137.22.223/fotos/editor2/RDE/L/S18/1751_1760/1759_09_03_alvara.pdf>. Acesso em: 17
fev. 2017.
PORTUGAL. Lei de 6 de setembro 1772. Lisboa, 1772. Disponível em:
<http://193.137.22.223/fotos/editor2/RDE/L/S18/1771_1780/1772_11_06lei.pdf>. Acesso em: 17 fev.
2017.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres: a educação no Brasil de Oitocentos. Rio de
Janeiro: GRYPHUS, 2005.
Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti
Universidade Federal do Piauí - UFPI | Departamento de Música e
Programa de Pós-graduação em Educação
Teresina | PI | Brasil. Contato: ednardomonti@gmail.com
ORCID 0000-0003-3513-3316
Artigo recebido em: 8 set. 2017 e
aprovado em: 8 jan. 2018.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 1, p. 73-89, abr. 2018
89