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DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n2p425-440
O Projeto Batuclagem e a educação ambiental por meio do brincar:
abordando o lúdico no Ensino de Ciências1 2
Luiz Henrique Portela Faria
Ana Maria Dietrich
Vivilí Maria Silva Gomes
Resumo: Este artigo visa analisar o uso de brincadeiras como instrumentos pedagógicos para o ensino de
ciências às crianças. Para isto, foram consideradas as estratégias pedagógicas do Projeto de Extensão
Batuclagem (PROEC-UFABC/2011-2016), que tem como base o ensino lúdico voltado à questão
ambiental. Inicialmente, discute-se o aspecto lúdico no ensino de ciências com base em Vygotsky,
Winnicott e Kishimoto. Adiante, apresenta-se os resultados da observação participante das oficinas do
Projeto Batuclagem, analisando-os segundo a perspectiva sociointeracionista. Dentre os resultados
obtidos, verifica-se a importância do brincar às crianças para o ensino de ciências, enquanto uma ação
que potencializa o desenvolvimento dos processos superiores, propiciando memória, atenção,
raciocínio lógico, expressão oral e corporal. Além disso, o brincar é um instrumento psicológico para
imitação da realidade, o qual se apropria de signos e símbolos da cultura humana, permitindo que a
criança empregue tais conhecimentos em situações socialmente construídas.
Palavras-chave: Brincadeiras. Ensino de ciências. Ensino-aprendizagem. Batuclagem.
The Batuclagem Project and the environmental education through play:
approaching the ludic on Science teaching
Abstract: This article aims to analyze the use of games as pedagogical tools for teaching science to children. For
this, we considered the pedagogical strategies used by the Batuclagem Extension Project (PROEX-
UFABC/2011-2016), which is based on the playful teaching focused to environmental issues. Initially,
it is discussed the ludic aspect on Science teaching based on Vygotsky, Winnicott e Kishimoto.
Forward, it presents the results of participant observation of the Batuclagem Project workshops, by
analyzing them according to the social-interactionist perspective. Among the results, it is verified the
importance to play to children for science teaching, as an action that potentializes the development of
superior processes, providing memory, attention, logical reasoning, oral and body expression.
Moreover, the play is a psychological tool for imitation of reality, which appropriates signs and
symbols of human culture, allowing the child to apply such knowledge on socially constructed
situations.
Keywords: Games. Teaching science. Teaching-learning. Batuclagem.
1 Reiteramos nossos profundos sentimentos de gratidão ao apoio da Universidade Federal do ABC e à equipe do
Projeto Batuclagem.
2 CAPES - Esta pesquisa foi financiada pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) por meio da Bolsa de Demanda Social da UFABC, dentro do período de 12 meses.
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educação ambiental por meio do brincar: abordando o lúdico no Ensino de Ciências.
Introdução: o Projeto Batuclagem enquanto uma iniciativa em educação ambiental para
crianças
O Projeto de Extensão Batuclagem e a magia das histórias, desenvolvido na
Universidade Federal do ABC (UFABC), foi criado a partir da iniciativa de professores,
funcionários e alunos da universidade, com o intuito de promover a sensibilização de crianças
às problemáticas ambientais por meio da arte, a respeito das práticas cotidianas de
preservação do meio ambiente.
O público-alvo do Projeto é composto por estudantes de 7 a 11 anos das escolas
públicas do Grande ABC Paulista, embora tenha se expandido a outros espaços, como creches
e ONGs da região. O projeto iniciou-se em 2011, como uma iniciativa em educação não
formal, tendo sofrido modificações em seu formato ao longo do tempo.
O objetivo do Batuclagem é estimular, de forma lúdica, a reflexão para mudança de
posturas quanto à reciclagem do lixo, uso racional da água, uso racional de energia, a poluição
do ar, a biodiversidade, e o lixo tecnológico.
A cada um dos temas citados adaptou-se uma história infantil clássica, tornando-as:
Chapeuzinho Verde; O Boto Cinzento e o encanto das águas; A formiguinha sustentável e a
cigarra trapalhona; A Bela Apodrecida e a poluição do ar; Acordei Curupira: a biodiversidade
na Amazônia; O vai e vem do arco-íris e o lixo tecnológico (DIETRICH; PETERSEN, 2014).
O Projeto Batuclagem se propõe a realizar oficinas de educação ambiental em
espaços formais e não formais de ensino3. Utiliza-se da contação de histórias, brincadeiras
tematizadas e outras estratégias metodológicas para cumprir os objetivos supracitados. O
aspecto metodológico na educação não formal requer muita atenção do pesquisador uma vez
que está diretamente ligado ao processo de ensino-aprendizagem. Eles estão muito mais
organizados ao redor da fala do que codificados na palavra escrita, havendo, portanto, grande
necessidade de sistematizá-los e analisá-los (GOHN, 1999).
Tendo em consideração que atividades de sensibilização pela arte constituem-se como
elementos facilitadores da aprendizagem infantil, este trabalho visa analisar as brincadeiras
infantis como ferramenta metodológica para o ensino de ciências aos estudantes dos anos
3 A educação formal, segundo Gohn (1999), é aquela que se efetiva no espaço territorial da escola por meio de
elementos como o currículo associado aos seus aspectos normativos e sua regulamentação, diferenciando-se
assim da educação não formal, cuja ênfase recai sobre a aprendizagem espontânea e na instrumentalidade do
professor enquanto mediador do conhecimento, a partir dos conhecimentos prévios dos educandos gerados a
partir de suas vivencias.
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iniciais do Ensino Fundamental, no contexto do Projeto de Extensão Batuclagem nas escolas
(ou do Batuclagem), à luz da teoria sociointeracionista de Vygotsky.
A observação participante das oficinas foi realizada como um meio para constituir o
trabalho empírico. O método de observação participante visa coletar dados no contexto
imediato em que estão sendo produzidos (MARCONI; LAKATOS, 2011). Foram registrados
e descritos os procedimentos metodológicos dos monitores, sobretudo, a partir da relação com
os alunos. Além disso, foi feita a análise do acervo documental do Batuclagem (composto
principalmente de documentos audiovisuais, fotografias e filmagens) e elaborados
questionários com
85 crianças participantes. Cabe ressaltar que esse acervo tem seus
documentos devidamente autorizados pelas partes.
A metodologia de observação participante foi escolhida para elaboração deste
trabalho, por ser considerada a mais adequada na compreensão deste estudo localizado. Foi
possível, por meio dela, apreender informações pormenorizadas, por meio da vivência do
contexto em que a oficina foi realizada. Desta forma, procurou-se registrar descritivamente as
ações referentes às estratégias aplicadas, a reação dos participantes, o envolvimento entre os
educadores do Projeto e os monitores das instituições, bem como o registro das condições do
local, horários, dentre outras anotações feitas, sobretudo, com relação às estratégias de ensino:
descrição da forma como se desenvolveram as brincadeiras, apontamento dos materiais
utilizados e o tempo destinado para o brincar.
O aspecto lúdico no Ensino de Ciências
A criança sempre está brincando, ela é um ser lúdico, mas a sua brincadeira tem um
grande sentido. Ela corresponde com exatidão à sua idade e aos seus interesses e
abrange elementos que conduzem à elaboração das necessárias habilidades e hábitos.
(Lev Semyonovich Vygotsky)
O brincar está para a infância tanto quanto a infância para o brincar. Ainda em tenra
idade, a criança brinca ao ouvir o chocalho ou tentando pegar os brinquedos. Numa fase
posterior, a criança brinca imitando os adultos, assimilando hábitos que serão vivenciados por
ela própria adiante. Com o passar dos anos, a criança se apropria de brincadeiras mais
elaboradas, entendidas por construtivas, pois vincula trabalho a ação criativa. Vygotsky,
dissertando acerca das brincadeiras construtivas, menciona que:
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[...] são vinculadas ao trabalho com materiais, ensinam com precisão e correção aos
nossos movimentos, elaboram milhares de habilidades mais valiosas, diversificam e
multiplicam as nossas reações. Essas nos ensinam a nos propormos determinado
objetivo e organizar os movimentos de modo a que estes possam ser encaminhados
para a concretização desse objetivo. Assim, as primeiras aulas de uma atividade
planejada e racional, de coordenação de movimentos, de habilidade para administrar
e controlar nossos órgãos pertencem a esse tipo de brincadeiras. Elas são
organizadoras e guias da experiência externa tanto quanto aquelas organizaram
experiência interior (VYGOTSKY, 2010, p. 121).
As brincadeiras convencionais são as principais em termos de auxílio no
desenvolvimento das funções superiores. Elas estão relacionadas à solução de problemas
bastante complexos do comportamento, exigindo atenção, astúcia e criatividade.
A obra de Vygotsky (2014a), entre outras, assume um papel fundamental com respeito
ao brincar. Para ele, definir o brincar como atividade que dá prazer às crianças é insuficiente,
porque existem outras experiências que podem ser mais agradáveis a elas. O que atribui ao
brincar um papel importante é o fato de que ela preenche uma atividade básica da criança, ou
seja, ela é um motivo para ação. A criança pequena, para Vygotsky, tem uma necessidade
muito grande de satisfazer os seus desejos imediatamente. Quanto mais jovem é a criança,
menor será o espaço entre o desejo e a sua satisfação.
Pode-se verificar no Projeto o uso de brincadeiras que possibilitam a imitação do
mundo dos adultos, bem como as que exigem mais atenção, astúcia e criatividade, chamadas
de convencionais na teoria vygotskyana. Além disso, o Projeto adaptou brincadeiras clássicas
infantis, como a brincadeira de ‘mímica’, ‘estátua’ e o ‘reizinho mandou’, que se tornou ‘o
lobo mandou’, com a intenção de potencializar a aplicação dos conteúdos veiculados durante
a contação de história.
Analisando o brincar enquanto um instrumento para o desenvolvimento humano,
Winnicott (1975) menciona que o brincar é essencial para a saúde física, emocional e
intelectual da criança. Para ele, “o brincar p por si mesmo uma terapia. Conseguir que as
crianças possam brincar é em si mesmo uma psicoterapia que possui aplicação imediata e
universal, e inclui o estabelecimento de uma atitude social positiva com respeito ao brincar”
(p. 83).
Os jogos e as brincadeiras ao serem bem vivenciados tornam-se profícuos mediadores
entre as crianças e seus relacionamentos, bem como com o mundo com o qual lidam. O
brincar pode contribuir, num futuro, para o equilíbrio e a eficiência do adulto. Conforme
escreveu Winnicott (1975, p. 88): “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo,
criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua criatividade integral: e é somente sendo
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criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”. Ou ainda: “É no brincar, e talvez apenas no
brincar, que a criança ou adulto fruem sua liberdade de criação” (1975, p. 89).
Em sua obra “O brincar e a realidade”, Winnicott (1975) propõe que o brincar está
numa área potencial, isto é, intermediária, entre a realidade interna e a externa do ser humano.
Conforme escreveu:
Minha reivindicação é a de que, se existe necessidade desse enunciado duplo, há
também a de um triplo: a terceira parte da vida de um ser humano, parte que não
podemos ignorar, constitui uma área intermediária de experimentação, para a qual
contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que
não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela
exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa
humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-
relacionadas (p. 12).
O Espaço Potencial
(WINNICOTT, 1975, p.
69) está situado entre o mundo
psicossomático e a realidade concreta da criança, isto é, nem dentro, nem fora dela, mas numa
área de intersecção que a equilibra e a harmoniza, pois propicia um viver criativo, único,
extremamente real para ela, apesar de imaginário. “A característica essencial do que desejo
comunicar refere-se ao brincar como uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma
experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (p. 84). E mais: “A
experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira”
(p. 159).
A intenção do projeto não é uma mera memorização de conceitos científicos, mas de
vivenciar sua aplicabilidade em situações-problemas criadas a partir das brincadeiras
adaptadas para este fim. Assim, na imitação da realidade por meio das brincadeiras, ou no faz
de conta, procura-se promover situações de ensino-aprendizagem na interação mútua.
Vygotsky nos assinalou que uma das funções básicas do brincar é permitir que a
criança aprenda a elaborar e resolver situações conflitantes que vivencia no seu dia a dia. E
para isso, ela lançará mão de capacidades como a observação, a imitação e a imaginação. É
através da imitação que a criança constrói conceitos fundamentais para o desenvolvimento da
autonomia. Autonomias emocionais, físicas e cognitivas. É imitando o adulto que a criança
aprende a falar, internaliza valores, conceitos e papéis sociais (VYGOTSKY, 2000).
Concordando com Vygotsky, Tizuko Kishimoto, professora da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, em entrevista a respeito da Importância do Brincar,
menciona que a brincadeira serve de mediador para apreensão de cultura humana. Além disso,
a brincadeira potencializa a afetividade, o desenvolvimento do corpo e formas de
representação de si mesmo (KISHIMOTO, 2010).
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Através da imitação representativa a criança vai ampliando sua percepção social ao
lidar com regras e normas do grupo. Desenvolve a capacidade de interação e aprende a lidar
com o limite e para tanto, os jogos com regras são fundamentais, principalmente a partir dos
seis anos de idade aproximadamente. Neste sentido, o uso de artefatos que simulem a
realidade torna-se um importante instrumento para o desenvolvimento da criatividade infantil,
conforme diz Kishimoto (1994, p. 109):
Pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à criança um substituto dos
objetos reais, para que possa manipulá-los. Duplicando diversos tipos de realidades
presentes, o brinquedo metamorfoseia e fotografa a realidade, não reproduz apenas
objetos, mas uma totalidade social. A realidade representada sempre incorpora
algumas modificações: tamanho, formas delicadas e simples, estilizadas ou, ainda,
antropomórficas
Cabe destacar que o brincar é algo que se aprende a partir da interação social. Em cada
cultura as formas de brincar são diferentes, por isso, a criança deve conviver em sociedade,
em família, com outras crianças ou com adultos para que aprenda a brincar conforme a
sociedade em que está inserida, adquirindo cultura lúdica. Por cultura lúdica entende-se o
cabedal de conhecimento específico de crianças que brincam (KISHIMOTO, 2010).
O brincar é uma oportunidade para que a criança se desenvolva em suas faculdades e
aprenda. Por meio das brincadeiras, a criança pode estimular sua curiosidade, tomar
iniciativas e tornar-se mais autoconfiante. As brincadeiras potencializam descobertas e
invenções, auto-realização e confrontações. Permite o desenvolvimento do pensamento e
linguagem, proporcionando aprendizagem.
Descrição e análise das brincadeiras nas oficinas de educação ambiental do Projeto
Batuclagem
As oficinas do Projeto escolhidas como objeto deste estudo, foram as que ocorreram
entre os anos de 2014 e 2015, em instituições assistidas pelo Projeto Mesa Brasil. Em 2015,
ano da realização das observações participantes foram realizadas dez oficinas, sendo duas ao
mês, de julho a novembro. Cada oficina de Educação Ambiental tem duração de duas horas e
contempla uma média de vinte e cinco crianças (pelo menos as oficinas observadas entre
setembro e novembro). Os locais são variados: salas de aula, salões sociais, anfiteatros,
quadras esportivas etc.
A oficina possui um cronograma prévio de atividades a serem realizadas, iniciando-se
sempre com a contação de histórias, seguida das brincadeiras (enquanto estratégias de ensino
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para aplicação dos conceitos científicos mencionados durante a contação) e a criação de
instrumentos musicais a partir de materiais reciclados.
Figura 1 e 2 - Arte-educadoras contando a história da Chapeuzinho Verde
Fonte: Acervo do Projeto Batuclagem (2015).
No espaço onde ocorre a contação de história, os monitores (também denominados
arte-educadores) cumprimentam os estudantes. Um “bom-dia” caloroso p a resposta esperada
e, normalmente, ouvida. Eles apresentam-se às crianças. Estas já estão eufóricas e curiosas
para saber o que acontecerá naquele momento.
Inicia-se a contação de história: os ouvintes ficam sentados no chão e os contadores
permanecem em pé. Por volta de vinte minutos depois, com a conclusão da contação, inicia-se
uma série de gincanas, envolvendo as brincadeiras adaptadas para cumprir uma finalidade
pedagógica: criar situações em que as crianças possam fazer contato com os conceitos
científicos mediados pela contação.
Há diversas brincadeiras na oficina, das quais quatro foram selecionadas para este
artigo. O lobo mandou é a primeira delas. Similar ao Reizinho mandou, na qual o condutor da
brincadeira dá ordens (levantar o braço; sentar no chão; pular com um pé só etc.) e cabe, aos
que estão brincando, obedecê-las. Desta forma, caso a ordem dada não for precedida pela
expressão “o lobo mandou”, esta não era para ser feita. E se fosse obedecida, então, as
crianças deveriam sair e aguardar até que a última criança que permanecesse, ganhasse, e
então a brincadeira fosse reiniciada.
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Figura 3 - Brincadeira O lobo mandou
Fonte: ONG Pequeno Cidadão. Acervo do Projeto Batuclagem. São
Bernardo do Campo, 16 set. 2015.
Por um lado, esta brincadeira propicia diversão, prazer e o lazer. Também agrega a
capacidade de trabalhar os reflexos, o elemento inesperado, a iniciativa e a atenção dos
participantes. Permite o desenvolvimento de raciocínio lógico, expressão oral e corporal, pois
exige coordenação motora e percepção auditiva e visual da criança.
Esta brincadeira, por outro lado, tem um elemento que identificamos como nocivo à
educação cidadã dos estudantes. Percebe-se que, o que a ela está propiciando é uma
obediência cega às ordens recebidas. Todavia, não se deixa de considerar que há uma ênfase
também com relação ao desenvolvimento da atenção daqueles que participam dela, uma vez
que no momento de discernir quando se deve obedecer ou não, deve-se prestar atenção às
ordens precedidas pela expressão “o lobo mandou”. No entanto, caso essas ordens não sejam
cumpridas, as crianças são punidas, sendo colocadas para fora da brincadeira.
Maria da Glória Gohn (1999) defende a participação sociopolítica, isto é, a formação
do indivíduo na interação com outro para uma mudança social. Receber ordens e executá-las
sem pensar, sem questionamento, sem refletir se devem ou não ser aplicadas é ir contra o
conceito fundamental de cidadania, uma vez que o indivíduo se torna uma máquina e não um
cidadão consciente de seus direitos e deveres.
Vygotsky afirma que o significado psicológico das brincadeiras corresponde com
exatidão aos interesses infantis para elaboração de suas habilidades e hábitos posteriores. As
brincadeiras, desta forma, “contribuem para que a criança assimile ativamente aspectos da
vida e organize a sua experiência interior neste sentido” (2010, p. 121). Sendo assim, qual o
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tipo de comportamento será assimilado por estes estudantes que vivenciam uma brincadeira
que fomenta o recebimento de ordens e sua execução sem reflexão?
Vygotsky destaca, entretanto, que sendo várias as mediações recebidas e essas nem
sempre coincidentes, o sujeito é ativo, ou seja, ele tem condições de confrontar as várias
mediações feitas e se decidir por uma delas. Assim, não necessariamente as crianças adotarão
comportamentos sujeitos a ordens e, em outras situações, poderão vivenciar a possibilidade de
reflexão.
A toca do coelho é outra brincadeira utilizada durante as oficinas do Projeto e consiste
em dividir as crianças em trios. Duas delas, por sua vez, ficam com os braços esticados para
cima com as palmas das mãos juntas, formando a toca de coelho. A terceira criança
permanece no centro da toca, tornando-se o coelho.
Outras crianças fazem o papel de coelhos sem tocas. Assim, com o sinal de um dos
arte-educadores, os coelhos que possuem tocas devem sair delas e procurar outras, enquanto
que aqueles que estavam sem tocas, da mesma forma, devem tentar arrumar uma para si. Os
coelhos que não conseguem entrar numa toca devem responder uma pergunta referente à
história. As perguntas eram:
1. Qual a fruta favorita do Lobo?
2. Em que lugar a vovó se escondeu?
3. O que a Chapeuzinho estava levando para a vovó?
4. O que o Lobo fazia que cheirava mau?
5. Como estava o rio?
6. O que é reciclar?
7. O que é reduzir?
8. O que é reutilizar?
9. O que o Lobo montou na floresta?
10. Quais são as cores para cada tipo de material?
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Figura 4 e 5 - Brincadeira Toca do Coelho.
Fonte: ONG Pequeno Cidadão. Acervo do Projeto Batuclagem. São Bernardo do Campo, 16 set. 2015.
Cabe destacar que se trata de perguntas de memorização, muito embora não seja
objetivo do Projeto fazer com que os participantes decorem respostas. Percebe-se, entretanto,
que o ato de responder questões se tornou uma espécie de castigo para quem não encontrasse
sua toca. Ou seja, quem não fosse rápido o suficiente para encontrar um espaço para si tinha
que “pagar” respondendo uma questão que envolveria exclusivamente sua memória quanto à
história contada.
Deve-se considerar, além disso, que nem todas as crianças haviam memorizado as
informações específicas que foram a elas questionadas e, neste sentido, que foram
constrangidas a afirmarem publicamente “eu não sei”, ou permaneciam em silêncio (algumas
rindo - demonstrando o quanto estavam envergonhadas pelo modo de falar ou gesticular,
tentando esconder-se; outras visivelmente constrangidas, mantendo a seriedade e procurando
deixar de ser o centro da atenção pública).
Uma versão diferente deste jogo didático, que poderia trazer mais cooperação e auxílio
mútuo para o momento de responder as questões, seria alcançada com uma mudança nas
regras. Os trios poderiam ser agrupados em duas equipes. A brincadeira aconteceria
normalmente, mas no momento em que fosse exigida a resposta do estudante - resposta que
ele poderia não saber responder - ele consultaria sua equipe para, então, trazer a resposta.
Em educação não formal as situações devem ser construídas coletivamente. As
próprias regras devem ser erigidas pelo grupo, na participação comunitária, vindo a ser
estabelecidas segundo a vontade daqueles que estão envolvidos com o processo. Neste
sentido, o projeto não fomenta a autonomia dos estudantes, pois a oficina é organizada
previamente e aplicada segundo prescrito pelos educadores.
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Vygotsky (2014b), ao escrever sobre desenvolvimento e aprendizagem, defende que é
necessário haver um nível de dificuldade maior do que o aprendiz consegue realizar sozinho,
para que, por meio do auxílio do educador, possa haver a superação da dificuldade
apresentada. Isto também se aplica à questões de memorização. Então, ao invés de apenas
oferecer as questões concernentes à memorização da história, era necessário oferecer também
elementos que potencializasse a lembrança do ocorrido: contar parte da história anterior,
lembrar as consequências do uso do objeto que se faz menção, por exemplo. No caso da
memorização de conceitos, considerando que estudantes até a pré-adolescência, segundo
Vygotsky, não os desenvolve senão por meio da aplicabilidade deles, a brincadeira - enquanto
instrumento de memorização - deve oferecer situações em que estes conceitos possam ser
úteis, na função em que se prestam a atender a necessidade humana.
Há também a brincadeira de mímica. As crianças recebem uma palavra referente à
história e tinham que gesticular para as demais crianças, sem utilizar a fala para isto. Quem
acertasse, teria o direito de vir fazer a próxima mímica.
A linguagem é, para Vygotsky (2008), o signo por excelência. É a principal ferramenta
para organização do pensamento, além de servir como meio fundamental para mediar as
relações humanas e os processos superiores do pensamento. A brincadeira de mímica
apropria-se da linguagem gestual e dos signos comuns aos participantes para expressar os
conceitos trabalhados pelos arte-educadores por meio da contação de história.
Além disso, permite o desenvolvimento da criatividade e de outras linguagens para
expressar no que se pensa. É uma brincadeira que estimula sentimentos, criatividade, atenção
e percepção audiovisual. Da mesma forma, desenvolve memória, cognição e expressão
corporal.
Segundo os arte-educadores envolvidos no Projeto do ano de 2015, foram escolhidas
vinte palavras4 relacionadas à história contada. Esta brincadeira, segundo eles, tem a função
de ajudar as crianças a memorizar os detalhes da história. Do ponto de vista teórico, as
palavras escolhidas para esta brincadeira podem se tornar signos de referência para a história
contada e a mímica delas possibilita ao participante um referencial para as situações nas quais
elas foram empregadas na história.
4 Palavras chaves: vovó; cesta; goiaba; banana; garrafa pet; floresta; reciclagem; capa (chapeuzinho); livro;
caçador; armário; casa da vovó; uva; água; lixeira; flor; música; caneca; mãe; planeta; reduzir; reutilizar.
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O que se percebe é que as palavras referentes aos conceitos em educação ambiental
(reciclagem, reduzir, reutilizar) impuseram uma dificuldade maior tanto para aquele que a
gesticula quanto para os que procuram acertar a palavra. Isto porque os conceitos científicos
são desenvolvidos na infância a partir da sua aplicabilidade (VYGOTSKY, 2014b). E, por
falta de conhecimento prévio sobre estes conceitos, além da ausência da sua aplicabilidade em
situações cotidianas, os estudantes tiveram mais dificuldades em apresentá-los, embora as
crianças estivessem na faixa etária de 7 a 11 anos, as quais já se tem a expectativa no tocante
à educação formal por se tratarem de conteúdos previstos nesse nível de ensino.
A brincadeira de estátua também tem um formato diferente. Enquanto a Chapeuzinho
permanece de costas, as crianças podem tentar pegá-la e se ela virar de frente para as crianças,
todas devem permanecer paradas como verdadeiras estátuas, caso contrário, são
desclassificadas. Este jogo trabalha a atenção e a coordenação motora. Não há uma conexão
direta com os temas trabalhados na oficina, mas potencializa o desenvolvimento motor da
criança, uma vez que exige a permanência dela numa mesma posição por um período. Além
disso, propicia a atenção ao inusitado e o trabalho corporal.
Segundo a perspectiva de Vygotsky p um tipo de brincadeira classificada como “faz de
conta” que ajuda no desenvolvimento da abstração infantil. Entretanto, não há qualquer
elemento da realidade cotidiana dos estudantes envolvida com ela, não necessitando, portanto,
da imitação do mundo dos adultos, que é, para ele, um fator preponderante para o
desenvolvimento superior infantil, muito embora, uma vez que cada brincadeira corresponde
aos interesses da idade em que ela se manifesta, exigindo habilidades específicas desta idade
correspondente, ela tem sua valia. Neste sentido, Vygotsky categoriza este tipo de brincadeira
como dentre aquelas que elaboram tanto a habilidade de deslocar-se no meio quanto de
orientar-se nele (VYGOTSKY, 2010).
Há ainda outra brincadeira: divide-se o número de crianças em três grupos. Cada um
destes grupos é representado por um animal - formigas, coelhos e onças. As crianças são
pintadas como onças ou coelhos, ou recebem uma tiara que simula as antenas das formigas -
lembrando que o “faz de conta” privilegia o processo de desenvolvimento da abstração
(VYGOSKY, 2014a).
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FARIA, Luiz Henrique Portela; DIETRICH, Ana Maria; GOMES, Vivilí Maria Silva. O Projeto Batuclagem e a
educação ambiental por meio do brincar: abordando o lúdico no Ensino de Ciências.
Figuras 6 e 7-Brincadeira que ensina a criança conceitos como separação de lixo
Fonte: Escola Estadual Carlina Caçapava de Melo. Acervo do Projeto Batuclagem, Santo André, 2011.
Pede-se que cada grupo pegue um tipo específico de material que está no chão (que já
foi anteriormente colocado na sala, estrategicamente escondido) e os jogue nas latas5
correspondentes - plásticos na lata vermelho; papel na lata azul; metal no amarelo; e vidro no
verde. Cada grupo (representado por seu animal) deve cuidar de uma parte da limpeza
(coelhos pegam os papéis, formigas pegam os metais, as onças pegam os plásticos e os arte-
educadores pegam os vidros) e, neste sentido, inclusive, os arte-educadores também são
responsáveis por um tipo de material. Ganha os grupos que conseguirem colocar todos os
dejetos espalhados no seu lixo correspondente. Nesta brincadeira, não apenas um grupo
vencedor, mas todos podem ser.
Esta brincadeira, segundo a concepção de Vygotsky, se encaixa nas chamadas
brincadeiras convencionais, pois além de organizar tanto a experiência interna quanto a
externa, vincula-se a resolução de tarefas mais complexas. Um desafio é apresentado aos
grupos: encontrar o lixo correspondente à cor da sua lata e depositá-lo nela. A mediação
ocorre naturalmente: os estudantes que sabem as cores da separação de lixo auxiliam os
colegas do seu grupo que não o conhecem. E, imitando a realidade, aprendem a colocar cada
lixo em sua devida lata pela cor (FARIA, 2016).
Em toda a tarefa-brincadeira se insere como condição obrigatória a habilidade de
coordenar o seu comportamento com o comportamento dos outros, de colocar-se em
uma relação dinâmica com outros participantes, de atacar e defender-se, de
prejudicar e ajudar, de prever o resultado do seu desenrolar no conjunto global de
5 Estas latas de tinta foram customizadas e produzidas para o Projeto Batuclagem a fim de simular a separação de
lixo. Foram encapadas com papel autoadesivo com as cores correspondentes da separação de lixo, pelos
próprios arte-educadores.
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FARIA, Luiz Henrique Portela; DIETRICH, Ana Maria; GOMES, Vivilí Maria Silva. O Projeto Batuclagem e a
educação ambiental por meio do brincar: abordando o lúdico no Ensino de Ciências.
todos os participantes da brincadeira. Esse tipo de brincadeira é uma experiência
coletiva viva da criança e, neste sentido, é um instrumento absolutamente
insubstituível de educação de hábitos e habilidades sociais (VYGOTSKY, 2010, p.
122).
Vygotsky (2010) defende que brincadeiras como esta auxiliam na elaboração e no
polimento de formas delicadas no convívio social. Resulta na elaboração de habilidades para
uma orientação social adequada, pois ao subordinar o comportamento às regras
convencionais, esta brincadeira se torna uma estratégia para o ensino de um comportamento
racional e consciente.
No conceito de educação não formal de Gohn (2015), está previsto o ensino de direitos
e deveres coletivos, que incentiva a participação em agrupamentos sociais. Considerando que,
as brincadeiras infantis imitam a realidade dos adultos, os grupos formados pelas formigas,
coelhos e onças são prefigurações dos agrupamentos sociais, com relação aos interesses em
comuns e identificação social. Desta forma, uma vez que esta brincadeira fomenta uma
participação coletiva, de auxílio mútuo, na resolução de um problema em comum daquele
grupo ou em prol de um mesmo objetivo, torna-se um instrumento de incentivo à cultura
política.
Considerações finais
As brincadeiras são, enquanto jogos pedagógicos, capazes de auxiliar no
desenvolvimento do educando, privilegiando sua atenção, disciplina, coordenação motora,
iniciativa, sociabilidade, enfim, diversas características que propiciam o desenvolvimento
humano. Jogos e brincadeiras simulam a realidade e permitem que crianças se posicionem
frente aos seus desafios, tornando-se autônomos em seu processo de aprendizagem. Além
disso, facilita interação social, tornando o compartilhamento de experiências culturais numa
experiência única e deleitosa.
As brincadeiras são profícuos mediadores de conceitos científicos segundo a teoria de
Vygotsky e dos demais autores supracitados, pois lidam tanto com o universo lúdico das
crianças quanto com os seus instrumentos superiores. A criança vive em seu próprio universo.
Este trabalho teve como objetivo analisar as brincadeiras infantis como ferramenta
metodológica para o ensino de ciências aos estudantes dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, no contexto do Projeto de Extensão Batuclagem nas escolas do grande ABC
Paulista, à luz da teoria sociointeracionista de Vygotsky.
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educação ambiental por meio do brincar: abordando o lúdico no Ensino de Ciências.
Os resultados da presente investigação indicaram que os instrumentos pedagógicos do
Projeto Batuclagem são eficazes no ensino de ciências para crianças e adolescentes até 13
anos. A brincadeira traz conhecimento com entretenimento, permitindo que situações
coletivas sejam vivenciadas pelos participantes e, por meio da interação social, o
conhecimento pode ser compartilhado com o outro. O brincar amplia as relações humanas, o
desenvolvimento da autonomia do indivíduo e a vivência necessária para que o participante
pratique o que ouviu através da simulação da realidade que as brincadeiras propiciam.
Destaca-se que o trabalho desenvolvido nas oficinas ministradas pelo projeto em
espaços formais e não formais de ensino envolvendo as brincadeiras promoveu por meio da
arte uma maior sensibilização por parte das crianças em relação às questões ambientais,
estimulando-as no processo de conscientização e conservação dos recursos da natureza de
forma lúdica e de revisão das suas práticas em relação ao tema trabalhado.
Por fim, o brincar propicia as funções superiores com relação à imaginação, memória,
atenção. Exigem das crianças respostas novas a cada instante, coordena suas atitudes a partir
de normas sociais estabelecidas por elas mesmas, sociabilizam-nas em relações que
promovem qualidades sociais.
Referências
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chapeuzinho verde e outros contos. Santo André: UFABC, 2014.
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formal: análise do Projeto Batuclagem (UFABC). 2016. 233p. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Universidade Federal do ABC, Santo André, 2016.
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do terceiro setor. São Paulo: Cortez, 1999.
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2011.
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VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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Luiz Henrique Portela Faria
Universidade Católica de Santos | Doutorando no Programa de
Pós Graduação em Educação
Santos | SP | Brasil. Contato: luizhpfaria@gmail.com
ORCID 0000-0001-5882-0827
Ana Maria Dietrich
Universidade Federal do ABC | Centro de Engenharia,
Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas
Santo André | SP | Brasil. Contato: anamdietrich@gmail.com
ORCID 0000-0002-8096-8905
Vivilí Maria Silva Gomes
Universidade Federal do ABC | Centro de Matemática,
Computação e Cognição - CMCC
Santo André | SP | Brasil. Contato: vivilee.gomes@gmail.com
ORCID 0000-0003-2285-0201
Artigo recebido em: 12 out. 2017 e
aprovado em: 15 jan. 2018.
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