Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre
possibilidades de escapes frente aos mecanismos de controle do Estado
Carlos Eduardo Ferraço
Resumo: Trata-se de artigo que tem como objetivo problematizar os currículos-docências-menores tecidos em redes
nas escolas, como possibilidades de resistência e de escape aos mecanismos de controle do Estado, como a
proposta de constituição de uma Base Nacional Comum Curricular para as escolas brasileiras. Apostando
na potência das pesquisas “com” os cotidianos e buscando nos situar em meio aos fenômenos fronteiriços,
interessa-nos evidenciar, com as teorias-práticas-imagens-narrativas produzidas pelos praticantes das
escolas, pistas que ajudem a reforçar e dar visibilidade à dimensão teórico-político-ético-epistemológica
dos cotidianos escolares. Sem desconsiderar a importância das análises realizadas no âmbito do texto
governamental, defendemos a importância de, com nossas investigações, ampliar a criação de movimentos
curriculares em meio às multiplicidades e aos processos de diferenciação vividos no dia a dia das escolas,
por entender que também são nesses fenômenos fronteiriços que as vidas se inventam.
Palavras-chave: Currículo. Cotidiano. Resistência. Fronteira.
Curriculum-teaching-smaller and researches with school everyday: on
possibilities of escape in front of the mechanisms of control of the State
Abstract: This is an article aiming to problematize the minor teaching curricula woven in school networks as
possibilities of resistance and escape to the control mechanisms of the State such as the proposal to
establish the Brazilian National Common Curricular Base for schools. Betting on the power of research
"with" everyday life and seeking to place ourselves in the midst of borderline phenomena, with practical
narrative theories produced by school actors, we are interested in highlighting clues that help reinforce and
give visibility to the theoretical-political-ethical-epistemological dimension of school everyday life.
Without disregarding the importance of the analyzes carried out within the scope of the government text,
we defend the importance of, along with our investigations, expanding the creation of curricular
movements in the midst of the multiplicities and the processes of differentiation experienced in school
everyday life because we understand that life is reinvented in these borderline phenomena.
Keywords: Curriculum. Everyday life. Resistance. Borderline.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 3, p. 529-546, dez. 2017.
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FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre possibilidades
de escapes frente aos mecanismos de controle do Estado.
1 Introdução: ou sobre nossa aposta nos currículos-docências-menores
Em nossas pesquisas “com” os cotidianos das escolas (FERRAÇO, 2003, 2016) temos
buscado problematizar (REVEL, 2004) as redes de saberes-fazeres (ALVES, 2001) tecidas pelos
sujeitos praticantes (CERTEAU, 1994), em meio às multiplicidades (DELEUZE, GUATTARI,
1996) de docências-currículos1 que acontecem nesses cotidianos, a partir das teorias-práticas
(FERRAÇO, 2011) criadas por educadores e estudantes com as imagens-narrativas que eles
produzem em suas tentativas de realização dos ditos currículos-docências, mas não só.
[...] A discussão do currículo nunca acaba. Já participei de muitos momentos de formação desde quando a
prefeitura tinha sua própria lista de conteúdos até agora com a base. E quer saber? Não dou muita bola
para essas coisas. Faço meu trabalho na sala e pronto. Já sei o que ensinar em cada ano...
Mas, se você não participa, não se atualiza dizem que você é tradicional, que você ficou no tempo...
Mas eu me atualizo (rs). Me atualizo na própria sala de aula. Estou sempre conversando com meus alunos
para saber o que eles têm de interesse. Eles me trazem coisas superinteressantes, que motivam eles na
minha disciplina. Quer atualização melhor? A vida atualiza você! Os alunos atualizam você!
Mas tem a cobrança da secretaria. Usam a tal assessoria às escolas para saber se você está dando conta
do conteúdo. Monitoram o que você está fazendo. Agora com a base vai ser isso o tempo todo...
Isso pra quem pede assessoria. E quando eles aparecem de surpresa na escola digo que estou muito
ocupada. A ideia é não dar muito papo, senão eles crescem pra cima de você. Pra mim isso é que é
currículo, você ficar de antena ligada ao que os alunos estão dizendo2.
Nesse sentido, faz-se necessário destacar nosso objetivo de cartografar processos que
envolvem as imagens-narrativas e as teorias-práticas que são afetas às docências-currículos, as
quais, ao mesmo tempo em que estão sujeitas aos mecanismos de controle presentes nos espaços
estriados impostos pelo Estado nas escolas a partir, por exemplo, da tentativa de realização de
uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a diversidade de escolas brasileiras, também
pressupõem possibilidades de escapes, isto é, de invenção de táticas-estratégias e de artimanhas
1 Estamos considerando que “docências” e “currículos” são processos que se tecem em complexas redes e, por isso,
não podem ser pensados dicotomicamente, nem hierarquicamente. Por isso, nossa opção por escrever com hífen e,
ainda, alternando os termos.
2 No decorrer do texto traremos trechos das nossas conversas com os praticantes, sem a intenção de representar,
descrever, interpretar ou explicar o que acontece nas escolas. Nosso objetivo é usar as conversas como possíveis
disparadores na produção de diferentes sentidos, ou ainda, de efeitos de realidade sobre os acontecimentos
curriculares cotidianos. Também não identificamos quem e quando falou, pois entendemos as conversas como
tecido oral, sem proprietários individuais.
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desviacionistas (CERTEAU, 1994) nos espaços lisos que irrompem nos cotidianos dessas escolas
por dentro dos referidos espaços estriados3.
Ou seja, estamos partindo da ideia de que ao mesmo tempo em que as imagens-narrativas
que criam as teorias-práticas afetas aos currículos-docências reforçam os mecanismos de
controle-opressão do Estado, também estariam sendo produzidas possibilidades de transgressões
e de burlas desses mecanismos, em meio às multiplicidades que caracterizam esses processos.
Como argumentam Deleuze e Guattari (1996), as multiplicidades seriam a própria realidade, não
pressupondo nenhuma unidade, totalidade ou, ainda, a identificação ou remissão a um sujeito,
tomado em sua subjetividade-individualidade.
[...] As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se
produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das
multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações,
que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações
sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de
realização, que é o rizoma
(por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de
composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as
atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização’(DELEUZE;
GUATTARI 1996, p. 8).
Nesse sentido, não assumimos “possibilidades de escapes” e “mecanismos de controle”
como oposições, mas como traduções e hibridizações complexas
(BHABHA, 1998), que
acontecem com as intensas trocas entre os espaços lisos e estriados nas escolas. Como defendem
Deleuze e Guattari (2007, p. 180), “[...] os dois espaços só existem, de fato, graças às misturas
entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço
estriado p constantemente revertido, devolvido a um espaço liso”.
Ainda pensando com Deleuze e Guattari (2007), vamos entender que uma das funções
fundamentais do Estado estaria, então, na tentativa de “[...] Estriar o espaço sobre o qual reina, ou
utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado” (p. 59),
tendo como referência os embates entre as máquinas de guerra e os aparelhos do Estado.
[...] Note-se que a guerra não está incluída nesse aparelho. Ou bem o Estado dispõe de
uma violência que não passa pela guerra: ele emprega policiais e carcereiros de
preferência a guerreiros, não tem armas e delas não necessita, age por captura imediata,
‘agarra’ e ‘liga’, impedindo qualquer combate [...]. Quanto à máquina de guerra em si
mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho do Estado, exterior a sua soberania,
anterior a seu direito: ela vem de outra parte (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p. 12).
3 De modo geral, os espaços estriados incluem as normas e os modos de organização-controle, coengendrados aos
espaços lisos, que se referem às multiplicidades e aos movimentos de expansão.
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Para os autores (2007), essa condição de exterioridade da máquina de guerra em relação
aos aparelhos de Estado faz com que ela só exista nas suas próprias metamorfoses, nos seus
próprios movimentos e deslocamentos, e não como uma entidade fixa e dada a priori, deixando
evidente que “[...] A máquina de guerra p de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma
outra origem que o aparelho do Estado” (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p. 13).
[...] Mais uma vez, estamos discutindo currículo nas escolas, agora por conta da base. A ideia é de se ter
uma referência comum para todos e eu acho isso muito importante.
Por que? Você não acha que nos já sabemos o que é preciso ensinar?
Mas tem professor que não está nem aí. Ensina o que dá na cabeça dele. E aí como o aluno fica quando,
por exemplo, muda de escola?
Mas tem algum professor que não ensina o que está na cabeça dele? Quem? Acho que não! Não tem como
ser um robô que só faz o que é mandado. Ninguém é robô. Exemplo, eu até planejo tudo de acordo com
aquele assunto e tal, mas chega na hora as coisas não acontecem como planejei. E eu vou fazer o que?
Nada, porque isso pra mim é que é currículo, você ter liberdade de ir de acordo com o que acontece.
Mas, se você não tiver um norte, um objetivo você fica perdido e acaba não cumprindo seu conteúdo e nisso
a base vai ajudar muito. Vai ajudar a você saber se está fugindo do que precisa ser ensinado.
Conta outra. Quando você entra na sala você não tem ideia do que te espera, do que pode acontecer. Você
não consegue não se deixar afetar. Pelo menos eu não consigo.
A dimensão de exterioridade da máquina de guerra é, segundo Deleuze e Guattari (2007),
confirmada pela epistemologia, deixando pressentir que existiria a perpetuação de uma ciência
menor, ou nômade que acontece por dentro de uma ciência maior ou do Estado. Com isso, tendo
como referência nossas pesquisas, poderíamos pensar na BNCC como tentativa de realização de
uma ciência maior associada, nesse caso, a um currículo maior, e as redes de saberes-fazeres
cotidianas como expressões de uma ciência nômade ou menor caracterizando, desse modo, um
currículo menor. Para Deleuze e Guattari (2007, p. 24-25):
[...] Há um gênero de ciência, ou de tratamento da ciência, que parece muito difícil de
classificar, e cuja história p difícil de seguir. Não são ‘tpcnicas’, segundo a acepção
costumeira. Porpm, tampouco são ‘ciências’, no sentido rpgio ou legal estabelecido pela
História [...]. As características de uma tal ciência excêntrica seriam as seguintes: 1)
Teria inicialmente um modelo hidráulico, ao invés de ser uma teoria dos sólidos; [...] 2)
É um modelo de devir e de heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao
idêntico, ao constante.
Quando discorrem sobre as ciências régia e nômade, os autores
(2007) também
evidenciam que a ciência do Estado sempre busca impor sua forma de soberania às invenções da
ciência nômade, só retendo dela aquilo de que pode apropriar-se, por isso, “[...] O mais
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importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade exerce uma pressão
sobre a ciência do Estado, e onde, inversamente, a ciência do Estado se apropria e transforma os
dados da ciência nômade” (p. 27). Para Deleuze e Guattari (2007, p. 27):
[...] Estamos diante de duas concepções de ciências, formalmente diferentes; e,
ontologicamente, diante de um só e mesmo campo de interação onde uma ciência régia
não para de apropriar-se dos conteúdos de uma ciência nômade ou vaga, e onde uma
ciência nômade não para de fazer fugir os conteúdos da ciência régia.
Gallo (2003, 2007) amplia essa discussão ao propor o conceito de “educação menor” que,
segundo ele, possibilitaria pensar o processo educativo comprometido com a singularização e os
valores libertários, a partir da busca por um devir-Deleuze na educação. A educação menor não
seria uma educação inferior, mas uma educação que uma minoria constrói dentro da educação
maior, de modo a se constituir como forma de resistência, de insubmissão, de subversão, uma
versão menor da educação dentro de uma versão maior.
[...] Esses dias eu estava vendo a propaganda da base na televisão. Que enganação. Aqueles jovens de
classe média interessadíssimos em saber se vão poder estudar essa ou aquela matéria (rs)... Como se
estivessem com medo de não ter mais esse ou aquele conteúdo...
Verdade! Você falando, não tinha visto por esse lado. É como se eles estivessem muito preocupados com o
currículo e quisessem garantir que todas as disciplinas fossem dadas.
Por exemplo, na minha sala que tem muito jovem trabalhador de periferia o interesse é muito maior pelos
assuntos relacionados ao que pode ajudá-los a sobreviver, a conseguir um trabalho e até mesmo a diversão
e lazer do que se isso tem a ver com essa ou aquela matéria.
Partindo, então, das três características propostas por Deleuze e Guattari (2003) a serem
observadas para que pudéssemos identificar uma literatura menor, a saber, “desterritorialização
da língua”, “ramificação política” e “valor coletivo”, Gallo (2003) desloca essa discussão para o
campo educacional ao questionar: Como poderíamos conceber uma educação maior, instituída
pelo Estado, e uma educação menor, máquina de resistência, produzida nas ações cotidianas? Ao
tentar responder essa questão, o autor (2003, p. 78) infere que:
[...] A educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação,
dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação nacional, pensada e produzida pelas cabeças bem-pensantes a serviço do
poder. A educação maior é aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se presente,
fazer-se acontecer. A educação maior é aquela dos grandes mapas e projetos.
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Uma educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos
instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como a toca
do rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas
estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém
ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de
singularização e de militância.
Como já antecipado, podemos pensar, então, a BNCC como uma forma de educação
maior no campo do currículo, um “currículo maior” expresso em termos de uma macropolítica
idealizada por burocratas e sustentada por uma perspectiva empresarial4; e os saberes-fazeres dos
praticantes das escolas como fluxos, como redes de “currículos-docências menores” tecidas em
meio às ações micropolíticas cotidianas. Mais uma vez, com Deleuze Guattari
(2007),
entendemos essas formas de educação não como oposições, binarismos, mas como planos lisos e
estriados que se interceptam, que se hibridizam e se transformam continuamente.
Assim, mesmo considerando a força impositiva nos cotidianos das escolas de diferentes
textos prescritivos oficiais, que buscam fechar os sentidos do que p “o currículo”, interessa-nos
cartografar e problematizar o que Deleuze e Guattari
(2007) entendem por
“fenômenos
fronteiriços”, isto p, aqueles espaços-tempos e acontecimentos onde as ciências nômades, os
currículos-docências-menores, as redes de saberes-fazeres cotidianas exercem pressão sobre as
ciências do Estado e, inversamente, as ciências do Estado, a educação maior, os currículos
prescritivos como a BNCC buscam se apropriar, capturar e transformar as ciências nômades.
Ou seja, interessa-nos cartografar e problematizar os usos, as traduções, as fronteiras, as
negociações, os entre lugares, as composições, os hibridismos que são produzidos com as
prescrições, mais não só, de modo a potencializar a ideia de currículo como acontecimento, como
criação cotidiana, como fluxo que não se deixa capturar, nem traduzir por completo porque é da
ordem do devir.
[...] Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de
justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou
ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intermutáveis. A questão 'o que tu
devéns?' é particularmente estúpida. Porque à medida que alguém devém, aquilo que
devém muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem
de assimilação [...]. Uma conversa, poderia ser isso. Simplesmente o traçado de um devir
[...]. Os devires são o que há de mais imperceptível. São atos que só podem estar
contidos numa vida e expressos num estilo (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 12-13).
4 A esse respeito sugerimos a leitura dos seis dossiês publicados nas revistas Teias (UERJ), E-Curriculum (PUC-SP)
e Espaço do Currículo (UFPB), publicados nos anos de 2015 e 2016.
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Propomos, assim, pensar currículo buscando romper com a possibilidade de sua
representação fixa/definitiva, indo ao encontro de sua condição de fluxo, de redes, de
nomadismo, de composições e deslizamentos, de minoridade e campos de disputas de sentidos,
fazendo vazar toda e qualquer possibilidade de um significado fixo ou de um determinismo
conceitual como pretende a BNCC.
Pensamos em currículo como fluxo e não apenas como forma, ou produto que pode ser
objetificado e comercializado. Apostamos na ideia de currículo como intensidades produzidas em
meio às relações de poder que se colocam nos planos lisos e estriados dos cotidianos das escolas.
Nesse sentido, interessa-nos a constituição de um campo problemático que emerja com as
questões que, como sugerem Deleuze e Guattari (2007) se situem no entre dos fenômenos
fronteiriços, isto é, nos entre-lugares, nos limites, nas fendas, nas fissuras, nos movimentos de
hibridização e de tradução, nos intermezzos, no ...e...e..., nos vazios e nas brechas que acontecem
nesses cotidianos.
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-se, intermezzo. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a
conjunção ‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o
verbo ser [...]. É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas
adquirem velocidade. ‘Entre’ as coisas não designa uma correlação localizável que vai
de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma ‘e’ outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas
margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 37).
A nosso ver, são nessas situações fronteiriças que os escapes acontecem. Sem
planejamentos nem idealizações ou projeções porque são da ordem do acaso, do caos e do
acontecimento. Para Deleuze e Guattari (2007, p. 34), não faz sentido perguntar sobre o sentido
do acontecimento, pois o acontecimento é o próprio sentido.
Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o
acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele
que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do
acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista
daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento
tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um
estado de coisas, sendo impessoal e pré- individual, neutro, nem geral nem particular,
eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente senão o do instante móvel que o
representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que convém chamar de
contra-efetuação (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 177).
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2 Campo problemático: ou sobre nossa aposta nas pesquisas com os cotidianos
Como já apontado, os processos experienciados nos cotidianos das escolas durante nossas
pesquisas nos forçaram a pensar (DELEUZE, 2006) os currículos-docências-menores como
expressões dos movimentos de nomadismo, resistência e escape em relação às tentativas de
homogeneização e de padronização decorrentes da ideia de que é possível se ter uma base
nacional comum para os currículos que se diferenciam nos cotidianos das escolas brasileiras.
[...] Que curiosidades você tem, mas não tem coragem de perguntar?
Como é minha irmã que nunca vi? Como nós conseguimos enxergar? Como o cérebro funciona? Como se
pode sentir tesão pelo mesmo sexo? Como saber se estou pronta para transar? Como se faz uma bomba de
fabricação caseira? Como se formata um PC? Como se usa a camisinha feminina? Dar o ânus dói? Perder
a virgindade dói? Masturbação dá espinha no rosto? Por que a água é molhada? Por que a gente não
consegue ver os outros planetas? Por que a nuvem é branca? Por que algumas mães abandonam seus
filhos? Por que algumas pessoas roncam? Por que as mulheres sofrem tanto com menstruação, gravidez,
aborto, amores? Por que as religiões são tão diferentes das outras? Por que dizem que cabelo branco é
bom e enrolado ruim e cabelo de negro demora a crescer? Por que existem pessoas brancas de cabelo
ruim? Por que existe só o dia da consciência negra e não o da consciência branca, parda ou morena? Por
que meninos negros não gostam de namorar meninas negras? Por que o cabelo fica branco quando
envelhecemos? Por que o homem resolve virar gay? Por que o pênis fica duro? Por que o sol não cai? Por
que rimos? Por que sentimos calafrios quando descemos a montanha russa? Por que tem estrela no céu?
Por que temos que casar com uma só pessoa? Posso fazer sexo com 13 anos? Qual é a temperatura exata
do sol? Qual é o prazer de matar? Qual o cheiro de uma formiga? Quando as pessoas morrem para onde
vão as almas? Quantos dentes têm uma baleia? Transar menstruada pega filho? Sobre gay, lésbica, travesti
e hermafrodita.
Para tanto, foi necessário investir em outra atitude de pesquisa que pudesse considerar no
lugar da representação, da regularidade e da estabilidade previstas e idealizadas na proposta da
BNCC, as dimensões de acaso e caos nos cotidianos como potências para a constituição do plano
de imanência e, por efeito, de nosso campo problemático, pois, para Deleuze e Guattari (2001, p.
68), "[...] O plano de imanência toma do caos determinações, com as quais faz seus movimentos
infinitos ou seus traços diagramáticos".
Clareto (2011) nos ajuda nessa discussão quando problematiza as relações entre pesquisa,
conhecimento e verdade na produção de um campo problemático. Ao destacar a existência de
uma narrativa da modernidade que produz um modelo de mundo das formas onde conhecer
significa representar, ou seja, ter acesso às verdades que constituem esse mundo, a autora nos dá
pistas para que possamos questionar uma imagem de pesquisa-bolha que se pauta pela busca de
verdades ao se lançar no mundo das luzes produzindo inteligibilidades em uma narrativa que
descreve a criação da bolha como lugar do conhecimento verdadeiro, da certeza e da segurança.
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Para Clareto (2011, p. 18-19), de acordo com esse modelo:
[...] Fazer pesquisa é buscar conhecimentos, é produzir conhecimentos, sempre se
pautando por regras estabelecidas pelo método investigativo. Assim, a pesquisa é regida
por uma questão que pede resposta ou um problema a ser resolvido. O que garante o
sucesso da empreitada é o uso correto do método que se estabelece, a priori, como
condição de se atingir a verdade daquela investigação. Morte do mistério, da dúvida.
A pesquisa assim planejada quer destruir o labirinto onde prevalece o caos das águas
quentes-frias-claras-escuras, as incertezas e os acasos operando sempre com o “ou”: ou privilegia
as águas sempre-frias ou sempre quentes, ou sempre claras ou sempre translúcidas. Como
observa a autora
(2011, p.
19),
“[...] De preferência águas sempre-claras, translúcidas.
Transparência total. E sempre-quentes. Conforto total”.
No entanto, mesmo sendo formados e, na maioria das vezes, reforçando e sendo guiados
pelo modelo de pesquisa-bolha-lugar da segurança, a autora nos força a pensar: Mas, e os
processos que, em nossas pesquisas, resistem ao modelo representacional, escapando das nossas
previsões? E os acontecimentos cotidianos que são da ordem do acaso, do caos, do incontrolável,
da multiplicidade e do que escapa? Mais uma vez, Clareto (2011, p. 19) nos ajuda ao ponderar
que:
[...] A representação se presta a esta categorização: ela purifica, reduz as formas uma
identidade. Mas existe aquilo que resiste à representação e insiste em uma condição de
“e”: águas-quentes-e-frias-e-claras-e-escuras. Multiplicidade. Conflito. Agito na
tranquilidade da bolha. Implosão da bolha?.
As ponderações de Clareto (2011) vão ao encontro de nossas apostas de pesquisas com os
cotidianos, na medida em que substituem o “ou” dos binarismos e das dicotomias pelo “... e ...e
...e” que, como já dissemos, nos forçam a não ficar acomodados a uma representação confortável
dos currículos-docências-menores que acontecem nos cotidianos das escolas e, com isso,
estimulando-nos, como sugerem Deleuze e Guattari
(2007), a nos situar em meio às
multiplicidades e aos fenômenos fronteiriços, porque é ali que os acontecimentos adquirem
velocidade.
[...] Destituída dessa imagem de segurança, de busca da verdade, como a pesquisa se move? Pelo menos
três possibilidades. Uma, continuamos presos à imagem da bolha e a perseguimos como a um ideal [...].
Duas, ficamos à deriva neste mar indecifrável, selvagem, que não se submete à bolha nem à imagem da
bolha [...]. Três, a pesquisa se move no movente da pesquisa e se propõe não a resolver problemas, mas a
problematizar; não se propõe a representar o mundo, mas inventá-lo. O que isso implica? Implica, talvez,
na constituição de valores outros, de uma ética outra que se constitua na imanência das águas quentes-
frias-claras-escuras. Sem imagens. Com o intempestivo. Sem representações. Com a multiplicidade.
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Defendemos, então, uma aposta de pesquisa que possa fluir no fluxo das águas quentes-
frias-claras-escuras dos cotidianos escolares, que possa assumir as multiplicidades desses
cotidianos e seus praticantes como produtores de imagens-narrativas-teorias-práticas curriculares,
potencializando a dimensão ético-político-epistemológica dos acontecimentos das escolas. Só
assim será possível perceber as possibilidades de escapes frente aos mecanismos de controle da
BNCC, uma vez que é nessa dimensão das micropolíticas cotidianas, isto é, dos planos lisos onde
são produzidas as máquinas de guerra e os currículos-docências-menores que esses escapes,
burlas, transgressões acontecem.
Ainda pensando com Clareto (2011), ao romper com o modelo de pesquisa que se propõe
a solucionar problemas, seria preciso ir em direção a uma intenção metodológica que favoreça a
criação de movimentos de resistência, de máquinas de guerra pela sustentação do campo
problemático afeto às multiplicidades e ao intempestivo. No nosso caso, buscamos nos esquivar
não só das representações-clichê5, frequentes nas pesquisas solucionadoras de problemas mas,
sobretudo, das conclusões prescritivas que, pretensamente, cumpririam a função de aprimorar as
falhas e as ausências detectadas com a realização da pesquisa.
[...] A pesquisa como solucionadora de problemas costuma proceder por caminhos que
colocam o método em sua centralidade: bases teórico-metodológicas são evocadas para
constituir aquilo que se chama de questão a ser investigada. Há que se ter uma questão
para se realizar uma investigação [...]. Empreendimento investigativo que carrega a
questão como estandarte e as bases teórico-metodológicas como suporte do estandarte
[...]. Há uma busca por apontar caminhos, soluções, prescrições ou, no mais dos casos,
críticas a situações vivenciadas em um campo empírico (CLARETO, 2011, p. 21).
Assim, na constituição do nosso campo problemático, a intensidade dos movimentos e dos
fluxos caóticos vividos com a realização de nossas pesquisas nos/dos/com os cotidianos6 impôs a
necessidade de questionar não só os modelos de pesquisa herdados das ciências cartesianas mas,
sobretudo, colocar sob suspeita as amarras conceituais decorrentes de alguns desses modelos que
insistem em reduzir os cotidianos das escolas a lugares de implantação, reprodução ou
representação das políticas educacionais governamentais.
5 Nas obras de Deleuze, a discussão do clichê aparece com mais intensidade em: Francis Bacon: lógica da sensação
(2007), A imagem-tempo (2007) e A imagem-movimento (2009). Nas obras que escreveu com Guattari, essa
discussão aparece em: O que é a filosofia? (1992) e no v. 3 de Mil platôs (2008).
6 Para um maior aprofundamento do tema sugerimos a obra Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas
lógicas das redes cotidianas (ALVES, 2001).
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de escapes frente aos mecanismos de controle do Estado.
Como argumenta Clareto (2011), o sentido atribuído a "problemático" não se refere à
"resolução de problemas", a algo "defeituoso" nem a "resultado duvidoso", mas se aproxima do
pensamento deleuziano de acontecimento que vai de dando junto a encontros. Problemático como
o que resiste ao modelo hegemônico, como aquilo que se metamorfoseia e se hibridiza e não se
deixar nem nomear nem capturar em sua complexidade.
[...] O campo problemático é resistência: aos processos instituídos de pesquisa, aos
modos-bolha de existir. Resistência precária submersa nas águas múltiplas. Resistência:
existência monstruosa, híbrida. [...] Existência no labirinto das águas. Experiência no
labirinto. Sem saída. Sem entrada. Só entre.
[...] O problemático, enquanto
acontecimento que se dá por meio de encontros, é estar nas águas. Não águas abstratas
tratadas abstratamente, mas cada água em sua complexa multidão. Cada água em sua
singularidade. Acontecimento. Inigualável, inequiparável. Singularidade. Invenção de si
e do mundo (CLARETO, 2011, p. 223).
Com os dados produzidos nas pesquisas, pudemos observar nas escolas movimentos de
resistência, de burlas, de escapes e de aposta nas multiplicidades desviantes, que produzem linhas
de fuga ou de desterritorializações em meio aos usos que estudantes e educadores fizeram dos
currículos prescritivos, mesmo com todas as tentativas de orientação-controle por parte das
secretarias de educação municipal e estadual e, inclusive, de alguns colegas das escolas
pesquisadas.
No entanto, por se tratar de movimentos que se tecem em meio às tensões entre os
espaços lisos e estriados e por entre a complexidade das redes cotidianas dos saberes-fazeres
curriculares, também foram observadas práticas de afirmação dos modelos instituídos, isto é, das
linhas de segmentaridade ou de estratificação que afirmavam práticas prescritivas e, com isso,
defendiam modelos adequados e coerentes de se trabalhar com as propostas curriculares.
3 Fenômenos fronteiriços: pistas sobre possibilidades de escape
Como já observado, durante a produção dos dados fomos acompanhando nas escolas
movimentos de escape frente aos mecanismos de controle do Estado, a partir da produção dos
currículos-docências-menores, que insurgiam por entre os usos que os praticantes faziam dos
documentos curriculares prescritivos. Com isso, pensamos na possibilidade de trazer, nesse
momento, pistas que pudessem mostrar alguns movimentos da cartografia realizada e, por efeito,
das situações que favoreceram a produção de possiblidades de escapes nos cotidianos das escolas,
em meio aos planos lisos e estriados que, como já dito, se hibridizavam, se traduziam e se
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FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre possibilidades
de escapes frente aos mecanismos de controle do Estado.
revertiam incessantemente. Assim, dentre as principais apostas e/ou movimentos realizados que
conseguimos cartografar destacam-se:
a) A problematização dos acontecimentos no lugar de analisá-los
Ao falar dos trabalhos de Foucault nos anos 80, Revel (2004. p. 67) o percebe como um
autor “[...] Fundamentalmente interessado pelos processos de subjetivação e pela redefinição de
um modelo ptico no quadro do que ele nomeia de uma ‘ontologia crítica da realidade’”. Ao
tentar, então, entender a noção de problematização na obra do autor, Revel (2004, p. 81) conclui
que os temas da descontinuidade e da diferença geram no autor um último tipo de análise, que só
é tematizado nos últimos anos de sua pesquisa, mas que já se faz presente em filigrana no texto
de 1970 consagrado a Deleuze. Trata-se da noção de problematização. Para a autora (2004, p. 81-
84),
[...] Com efeito, nos dois últimos anos de sua vida, Foucault utiliza cada vez mais o
termo ‘problematização’ para definir sua pesquisa. Por problematização ele não entende
a re-apresentação de um objeto preexistente nem a criação pelo discurso de um objeto
que não existe, mas o ‘conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz algo
entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento [...].
A problematização é, portanto, a prática da filosofia que corresponde a uma ontologia da
diferença, ou seja, o reconhecimento da descontinuidade como fundamento do ser.
A partir de Foucault, problematizar os acontecimentos cotidianos em nossa pesquisa
significou tentar superar, na produção dos dados, qualquer pretensão de uma busca metódica por
explicações ou soluções para os referidos acontecimentos e, sobretudo, para os currículos-
docências-menores que emergiam nas práticas-teorias-narrativas-imagens produzidas pelos
praticantes. De fato, nossa atitude de pesquisa buscou privilegiar a instauração de uma distância
para que a crítica pudesse ser feita, assumindo os currículos-docências-menores em sua condição
de multiplicidade, reconhecendo suas descontinuidades e provisoriedades.
b) As conversas como dispositivos que nos permitem pensar com e não sobre
A atitude de pensar com o Outro nos levou à pista deixada por Certeau (1994, p. 50), em
termos do uso que ele fazia das conversas em suas pesquisas, assumindo-as como “[...] práticas
transformadoras de situações de palavra, onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura
um tecido oral sem proprietários individuais”. Giard (1996), ao se referir a esse uso, destaca a
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FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre possibilidades
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preocupação que ele tinha em, ao conversar com os sujeitos ordinários, tentar estabelecer uma
condição de empatia fora do comum, ao mesmo tempo em que não dedicava uma atenção
diretiva. Sempre encorajando as pessoas a se colocarem, buscava escutá-las atestando a riqueza
das palavras ditas.
Esta busca por estabelecer uma proximidade com o Outro na pesquisa não resulta em uma
abordagem centrada no indivíduo, mas vai ao encontro do que se passa “entre” as pessoas, isto p,
privilegia as relações que se estabelecem com os encontros, dedica especial atenção ao que é
tecido entre elas. Mais uma vez, o “...e ...e ...e”. Ou seja, não nos interessou pensar “para” ou
“sobre” os sujeitos praticantes e os acontecimentos cotidianos, mas “com” eles.
c) Os encontros como possibilidades de nos forçar a sentir-pensar
No texto “Um gosto pelos encontros” Orlandi (2014), partindo das discussões de Deleuze,
infere que todo encontro ordinário está exposto à possibilidade de uma reviravolta instantânea
que pode projetar tudo para fora dos eixos. Como pondera o autor (2014, p. 3):
[...] É como se a própria vida se sentisse abalada por esse vinco em que uma experiência
ordinária é dobrada junto a outra, a extraordinária. Pressentimos que a efetiva
complexidade da experiência dos encontros depende do que se passa nessa dobra, razão
pela qual é preciso buscar sua explicitação. Cada um sente e exprime a seu modo essa
ocorrência simultânea de linhas divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados
experimentam seu próprio vínculo como sendo aquilo que os lança num tempo fora dos
eixos.
Falar de encontros como possibilidades de agenciamentos coletivos não significa ficar no
âmbito dos encontros físicos, isto é, dos encontros entre os praticantes das escolas pesquisadas,
mas implica pensar em todo e qualquer tipo de encontro com objetos, ideias, sentimentos, sons,
cores, textos, discursos, imagens e, inclusive, pessoas, uma vez que, como nos ajuda a pensar
Orlandi (2014), a experiência provocada pelo encontro depende do que se passa na dobra, onde
os “juntados” experimentam seus vínculos. Para Orlandi (2014, p. 7):
[...] A cada instante, um problemático alvoroço de encontros vai percutindo o meio da
nossa imersão vital. Dentre as redes de linhas que nos ligam à experiência dos encontros,
duas delas gozam de um privilégio do qual filósofo algum pode livrar-se. Trata-se de
sentir e pensar. Quando Deleuze peneira conceitualmente os encontros que o tocam,
notamos que ele elabora uma singular conexão entre sentir e pensar. O que o atrai nessa
nova elaboração? O que o atrai é aquilo que determina seu destino, sua fortuna, seu fado,
sua sorte na história da filosofia: a problemática das diferenciações complexas
implicadas nos encontros. As conexões produtivas entre sentir e pensar são decisivas
nessa nova problemática.
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FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre possibilidades
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Nesse sentido, uma das apostas metodológicas mais potentes da cartografia realizada,
além das conversas, foi exatamente a possibilidade de encontrar com os acontecimentos e com os
sujeitos sem qualquer prejulgamento ou idealização que pudesse criar expectativas. Dar-se ao
encontro com o Outro, em sua permanente condição de abertura para a novidade do mundo, foi
extremamente significativo no sentido de nos forçar a pensar e a com-fabular possibilidades de
escapes.
d) As traduções-hibridizações como marcas dos currículos-docências-menores
Outra pista importante da cartografia realizada refere-se ao pressuposto de que, com seus
múltiplos e diferenciados modos de usar os textos curriculares prescritivos nos cotidianos, os
praticantes das escolas produzem práticas-teorias-discursos-narrativas que têm como marca
fundamental o hibridismo.
Ou seja, além de se constituírem como também autores de teorias-práticas curriculares, os
praticantes das escolas imprimem a marca do hibridismo em suas produções, inclusive nas
possibilidades de escape, à medida que ressignificam, recontextualizam, traduzem, criam
deslocamentos ou fazem vazar outros sentidos para os textos dos documentos governamentais.
Por isso, para qualquer uma dessas situações, não há originalidade nem autenticidade, isto
é, todos esses discursos, todas essas teorias-práticas-narrativas-discursos se tecem, se hibridizam
nos cotidianos escolares, não havendo uma autoria nem única nem localizada sendo, assim,
impossível de serem identificadas-classificadas em suas características próprias.
Faz-se necessário, aqui, trazer a noção de hibridação usada por nós para falar dos
currículos-docências-menores e suas possibilidades de escape. Em uma entrevista concedida a
Rutherford
(1996), ao argumentar sobre sua ênfase na ideia de diferença cultural, em
contraposição à ideia de diversidade cultural, Bhabha associa à ideia de diferença as noções de
tradução e hibridação. Entendendo que o ato de tradução cultural nega o essencialismo de uma
dada cultura antecedente, original ou originária, e ainda, que todas as formas de cultura estariam
sempre em um contínuo processo de hibridação, o autor (1996, p. 36) infere que:
[...] Para mim a importância da hibridação não é ser capaz de rastrear os dois momentos
originais dos quais emerge um terceiro, para mim hibridação p o ‘terceiro espaço’ que
permite a outras posições emergir. Esse terceiro espaço desloca as histórias que o
constituem e gera novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, que são
inadequadamente compreendidas através do saber recebido [...]. Mas a importância da
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FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo-docência-menor e pesquisas com os cotidianos escolares: sobre possibilidades
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hibridação é que ela traz os vestígios daqueles sentimentos e práticas que a informam, tal
qual uma tradução, e assim põe em conjunto os vestígios de alguns outros sentidos ou
discursos. O processo de hibridação cultural gera algo novo e irreconhecível, uma nova
área de negociação de sentido e representação.
Com a noção de hibridação de Bhabha (1998), vamos entendendo que os currículos-
docências-menores produzidos pelos praticantes não são nem sínteses nem outras teorias
curriculares que oporiam aos discursos que os antecederam. As hibridações realizadas entre os
discursos sobre currículo que circulam nas redes, trazem vestígios, pistas, indícios dos sentidos
desses discursos anteriores, também híbridos, ao mesmo tempo em que ao deslocá-los produzem
outros discursos. Por isso, como afirma o autor (1998), eles são, concomitantemente, novos e
irreconhecíveis. Deslocam documentos, textos, programas, propostas, histórias que os
constituíram. Subvertem princípios, metas, objetivos que os embasaram, ao mesmo tempo em
que preservam um pouco de cada uma dessas coisas.
e) As teorias-práticas cotidianas como políticas de currículos-docências-menores
Outra pista fundamental refere-se ao fato de que as teorias-prática-narrativas-imagens
curriculares cotidianas, inventadas pelos sujeitos praticantes das escolas, além de hibridizadas,
traduzidas e negociadas nas complexas redes de saberes-fazeres são, também, expressões de
políticas de currículo.
Esta atitude têm nos levado a buscar uma noção de política mais complexa do que aquela
sistematizada pelos documentos governamentais. De fato, se é urgente perceber que as práticas
são, também, teorias, e vice-versa, (também por isso escrevemos teorias-práticas ou práticas-
teorias) é também urgente perceber que elas são, sobretudo, políticas. A esse respeito, Veiga-
Neto (1996, p. 170) pondera que:
[...] Nossas construções e nossos entendimentos do que seja a realidade se dão
necessariamente numa dimensão política. Tudo sendo resultado de acordos discursivos,
tudo é político. O ser humano não é um ser biológico e social e econômico e psicológico
e político; isso p, não há uma dimensão política ‘ao lado’ das demais dimensões. O
político não é uma dimensão a mais, senão que o político atravessa constantemente todas
as demais. Isso se dá de tal maneira que até o acesso que temos a nós mesmos está
determinado pelo político. Eu não posso ser um sujeito social sem ser um sujeito
político; eu não posso ser um sujeito ético sem ser um sujeito político; eu não posso ser
um sujeito epistemológico - isso é, eu não posso nem mesmo pensar ou falar sobre o
mundo ou sobre mim mesmo - sem ser um sujeito político.
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Entender as práticas-teorias curriculares cotidianas também como políticas de currículo
implica não só questionar as dicotomias excludentes herdadas pela educação do discurso
hegemônico da ciência moderna, tais como, sujeito/objeto, teoria/prática, quantidade/qualidade,
entre outras, mas, implica, sobretudo, colocar sob suspeita toda e qualquer proposta de fazer com
que a prática se torne política. Alves (2010, p. 49), partindo de Certeau (1994), infere que:
[...] Para começar precisamos dizer que não existe, nas pesquisas com os cotidianos,
entre os in~meros grupos que as desenvolvem, a compreensão de que existem ‘práticas e
políticas [...] uma vez que entendemos que as políticas são práticas, ou seja, são ações de
determinados grupos políticos sobre determinadas questões com a finalidade explicitada
de mudar algo existente em um campo de expressão humana. Ou seja, vemos as
políticas, necessariamente, como práticas coletivas dentro de um campo qualquer no
qual há, sempre, lutas de posições diferentes e, mesmo, contrárias. Desta maneira, não
vemos como ‘políticas’ somente as ações que são mais visíveis. Os grupos não
hegemônicos, em suas ações, produzem políticas que, muitas vezes, não são visíveis aos
que analisam ‘as políticas’ porque estes foram formados para enxergar, exclusivamente,
o que é hegemônico com o que aprenderam com o modo de pensar hegemônico.
4 (In)conclusões
Por fim, concluímos que as pistas aqui provisoriamente esboçadas como possibilidades de
identificar alguns movimentos de escape frente aos mecanismos de opressão do Estado se
constituem, como já dito, em meio à realização de uma aposta de pesquisa que busca dar
visibilidade e potencializar a dimensão teórico-político-ético-epistemológica dos cotidianos das
escolas.
Ou seja, sem desconsiderar a importância das discussões e análises que são realizadas no
âmbito do próprio texto governamental, defendemos a necessidade de, com nossas pesquisas,
fortalecer os movimentos de resistência e de escape que acontecem na microfísica dos cotidianos
escolares, nos diferentes espaços-tempos intersticiais das escolas, nas tensões que emergem com
seus planos de imanência e nas multiplicidades daquilo que é vivido no dia a dia, por entender
que também são nesses fenômenos fronteiriços (DELEUZE; GUATTARI, 2007), que a vida se
reinventa.
Ao discutir “Locais da cultura”, Bhabha (1998, p. 20) nos ajuda nessa defesa quando
entende que “[...] e na emergência dos interstícios - a sobreposição e o deslocamento de domínio
da diferença - que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationnes], o interesse e o
valor cultural são negociados”.
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Para Bhabha (1998, p. 27), muito próximo do que pensa Deleuze, é exatamente nesses
interstícios, nas fronteiras que as coisas começam a se fazer presentes em um movimento
ambivalente, uma vez que “[...] O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’
que não seja patê do continuum do passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural”.
Por isso, insistimos na aposta de uma pesquisa que possa compor com os cotidianos das
escolas assumidos em sua dimensão político-epistemológica. Por isso nossa defesa da condição
de autores de teorias-práticas curriculares para os praticantes dos currículos, pois, como defende
Bhabha (1998, p. 29) “[...] e o espaço da intervenção que emerge nos interstícios culturais que
introduz a invenção criativa dentro da existência”.
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Vitória | ES | Brasil. Contato: ferraco@uol.com.br
Artigo recebido em: 14 set. 2017 e
aprovado em: 1 out. 2017.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 19, n. 3, p. 529-546, dez. 2017.