DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2017v19n3p631-650
Onde estava a chave? Relatos tardios (e quase perdidos) de conversas
cotidianas em uma escola na floresta
Rodrigo Barchi
Resumo: A Escola Bosque do Amapá, Módulo Regional do Bailique, foi inaugurada em 1998, com a intenção de
promover um ensino que buscasse na floresta e nos saberes da população local, os conhecimentos que
construíssem o currículo e as práticas pedagógicas da escola, de forma a fortalecer a autonomia da
comunidade e desenvolver economicamente a região sem a necessidade de estabelecer uma relação
predatória com o meio ambiente. Durante minha estadia na Escola Bosque no ano de 2001, estabeleci uma
série de conversas cotidianas com seus professores e professoras, especialmente aqueles(as) que não eram
originários do Bailique, e esse texto constrói uma série de narrativas ficcionais, mas baseadas em situações
reais, a partir dessas conversas e relatos, dando destaque às suas impressões, esperanças, desilusões,
saudades, alegrias, tristezas e posicionamentos políticos, sociais e culturais.
Palavras-chave: Escola Bosque do Amapá. Bailique. Cotidiano escolar. Conversas cotidianas. Educação ambiental.
Where was the key? Late stories (and almost lost) of daily talks in a school in
the forest
Abstract: The School “Bosque do Amapá”, Regional Module of Bailique was open in 1998 in order to promote an
education that searched for knowledge in the forest and in the local population to build the school
curriculum and pedagogical practices in a way to strengthen the community autonomy and economically
develop the region without the need to establish a predatory relationship with the environment. During my
stay at Bosque School in 2001, I established a series of daily talks with teachers, especially the ones that
were not from Bailique. And this text builds a series of fictional narratives, but based on real situations
from these talks and stories focused on their impressions, hopes, disillusions, homesickness, happiness,
sadness and political, social and cultural position.
Keywords: The school “Bosque do Amapá”. Bailique. School life. Daily talks. Environmental education.
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Por que só agora?
Após estar confinado durante doze horas no barco de passageiros que liga Macapá até o
Arquipélago do Bailique, a visão que tive ao chegar à Vila Progresso e à Escola Bosque do
Bailique foi extremamente deslumbrante. Aliás, toda a paisagem do trajeto é magnífica: o rio, a
floresta, as aves, os insetos e as eventuais comunidades ribeirinhas, quando não as palafitas
isoladas.
À noite, a lua cheia reinava soberana e inconteste. Apesar do cheiro de óleo diesel e a
fumaça tomarem conta de todo o ambiente do barco, o céu azul turquesa durante o dia, e
multicolorido, com os tons vermelho, amarelo e rosa ao final da tarde, impediram qualquer
sensação de incômodo.
Fui pela primeira vez ao Bailique, em novembro de 2000, e participei da Terceira Semana
de Cultura e Ciência da Escola Bosque do Amapá, onde foram expostos para a comunidade,
representantes do governo estadual, cientistas, estudantes e até alguns turistas, os trabalhos
realizados pela “Bosque” (como era geralmente chamada pelas pessoas que trabalham e estudam
ali), juntamente com a realização de gincanas, minicursos e apresentações teatrais e musicais.
Foi nessa viagem ao Bailique que conheci Paulo Roberto Sposito, o Palhaço Magnólio,
um dos mais notáveis educadores ambientais brasileiros, cujo trabalho com o Projeto Saúde e
Alegria e o Gran Circo Mocorongo, desde o final dos anos 80, foi responsável por levar
conhecimento e conscientização sobre saúde e meio ambiente à centenas de populações
ribeirinhas na região amazônica. Ele trabalhava junto com Marcos Reigota e Nilson Moulin como
consultor em educação para o Governo do Estado do Amapá, e seu passamento ao final do ano de
2016 foi uma das razões pelas quais estou trazendo este texto a público.
Eu tinha pouco mais de 20 anos naquele momento, e aprendi com ele, especialmente, a
importância de não perder nem a seriedade, nem a alegria no trabalhado educativo, sendo
necessário que a educação saísse de sua alcunha extremamente formal para que pudesse
conseguir o estabelecimento de um diálogo aberto, franco e construtivo com os educandos e
educandas. O Magnólio me acompanhou na maior parte das atividades que realizei no Amapá em
minha primeira estadia, e influenciou muito as leituras minuciosas que eu faria posteriormente
sobre a relação entre educação e cultura em Paulo Freire.
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Esse texto, portanto, é em primeiro lugar, uma homenagem póstuma a esse magnífico
educador, ambientalista e militante político e social que foi Paulo Roberto Sposito, o palhaço
Magnólio.
Na segunda vez que estive no Bailique, em agosto de 2001, fui acompanhar o início do
semestre letivo, e pude observar um pouco do cotidiano não extraordinário - como foi da
primeira vez, em que fui durante um evento - dos professores, funcionários e estudantes da
escola. Eu era um aluno de graduação em Geografia na Universidade de Sorocaba, e havia
conseguido, a partir da ajuda de Marcos Reigota e sua presença na consultoria em Educação
Ambiental do Estado do Amapá naquele momento, uma estadia, que considero quase que um
intercâmbio, e me possibilitou estar durante várias semanas no Estado do Amapá.
Fui acompanhar os trabalhos do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá, ou
PDSA (MOULIN, 2000; LEONELLI, 2000), o qual, entre os anos de 1995 e 2002, buscou
implantar em todo o Estado, as orientações da Agenda 21. Esse texto é também um relato das
impressões e conversas que tive durante minha estadia, como estudante “intercambista”, no
Estado do Amapá durante o PDSA.
Trago, em forma de narrativas ficcionais
(REIGOTA, 1999), alguns discursos de
professores e professoras com quem conversei e convivi durante minha segunda estadia na
“Bosque”. Todas e todos tiveram seus nomes alterados, principalmente por causa da
esporadicidade com a qual as conversas e situações ocorreram, além de manter o anonimato,
mesmo tendo tanto tempo passado, e provavelmente mais nenhum deles(as) estar trabalhando por
lá. Após a viagem, não consegui manter o contato com mais nenhum deles, e não consegui nem
encontrá-los(as) nas redes sociais, para ter notícias e/ou atualizações de seus trabalhos.
Este texto estava guardado há cerca de quinze anos, e resolvi trazê-lo à tona como forma
de resgate das experiências e das posições sociais, políticas, pedagógicas e ecológicas de alguns
educadores que estavam naquele momento exercendo o trabalho educativo naquela escola.
Baseado principalmente nos trabalhos de Mary Jane Paris Spink (SPINK, 1999), Peter Spink
(SPINK, 2008) e Vera Menegon (MENEGON, 1999), considero que os fragmentos que aqui
apresento a partir das conversas que tive com os professores e professoras da escola, mesmo que
tardios, são de vital importância para apresentar um pouco dos temores, esperanças e dificuldades
do trabalho no cotidiano escolar nos extremos do Brasil.
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A escola na floresta
O Bailique é um arquipélago marítimo-fluvial, e seu território faz parte dos limites do
município de Macapá, sendo um distrito da capital amapaense. Hoje são pouco mais de sete mil
habitantes, distribuídos em mais de 40 comunidades espalhadas pelas oito ilhas: Bailique, Franco,
Brigue, Faustino, Curuá, Parazinho, Meio e Marinheiro. A maior comunidade do Bailique é a
Vila Progresso, ao lado da qual foi construída a Escola Bosque do Bailique, em 1998, sendo um
dos maiores expoentes do PDSA (AMAPÁ, 1999; LEONELLI, 2000; MOULIN, 2000).
Seu método socioambiental foi elaborado pelos idealizadores da Escola Bosque, José
Mariano Klautau de Araújo e Dula Maria Bento de Lima, onde a história, a geografia, a tradição
e os conhecimentos locais serviriam, constantemente, para a construção do currículo e da
metodologia de ensino (AMAPÁ, 1997a, 1997b, 1997c, 1997d, 1997e, 1997f, 1997g). Todas as
madeiras utilizadas para a construção da escola foram retiradas do próprio Bailique (AMAPÁ,
2000), assim como a maior parte da mão de obra.
A mudança na governança do Estado fez com que toda a proposta fosse praticamente
abandonada, fazendo com que o currículo escolar se submetesse à centralidade das propostas
promovidas Secretaria de Educação do Estado, prejudicando o projeto inicial que buscava a
construção de uma autonomia curricular e pedagógica para a escola. Enquanto que a reportagem
de Roberta Bencini (1998) enaltecia o trabalho e os prêmios ganhos internacionalmente pela
escola, atualmente lamenta-se a falta de continuidade do trabalho, como relatado na reportagem
realizada pela revista Nova Escola, em abril de 2015:
No Bailique, o cenário anterior ao projeto voltou. Habitantes abandonam as ilhas.
Saberes tradicionais, como o de carpintaria naval, são esquecidos. Pouco a pouco, a falta
de manutenção e a força da natureza levam adiante a melancólica tarefa de apagar os
vestígios do projeto que poderia ter transformado a Educação da região. A arquitetura
original, com coberturas de palha à moda das ocas waiãpi, deu lugar a telhados de
amianto, incompatíveis com o clima quente e úmido. A cena de alunos sentados em
carteiras enfileiradas dentro de salas abafadas substituiu o contato direto com a natureza
de que fala a reportagem de 1998 em NOVA ESCOLA. Não acontecem as lições
planejadas embaixo das árvores ou na horta da instituição - hoje vazia - e à beira do rio.
O auditório com infraestrutura completa, à disposição para eventos que receberiam
pesquisadores, está subaproveitado. E a louça fabricada especialmente para os hóspedes
do Hotel Escola Bosque, ornamentada com o logotipo da instituição, hoje é usada apenas
nas raras festas da própria escola. Por lá, não há muito o que comemorar (RATIER;
SALLA; SEMIS, 2015).
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Quando estive por lá em 2001, a Escola Bosque desenvolvia o trabalho ainda de acordo
com a proposta inicial, mas, como exponho adiante, já havia alguns problemas, que seriam
intensificados com a ruptura do programa e, consequentemente, o fim da autonomia pedagógica
da escola nos anos seguintes. No entanto, naquele momento, havia, aparentemente, o zelo do
Governo do Estado e da comunidade, que depositavam na escola a esperança da possibilidade de
evitar o êxodo de jovens em direção à Macapá ou outros estados. Além de fortalecer a economia
local, sem a necessidade de estabelecer uma dinâmica predatória para tal empreitada.
Fui acompanhar o início das aulas do segundo semestre letivo do ano de
2001.
Obviamente que fiquei espantado, estarrecido (num bom sentido) e admirado com o trabalho
realizado na escola pela comunidade, cujas principais atividades estavam ligadas ao extrativismo
vegetal, à pesca, à engenharia naval, à produção de fitoterápicos e ervas medicinais, e às
pequenas roças e criações de animais. Além, claro, de estar constantemente maravilhado pelo
esplendor da floresta e do rio.
Mas também, naquele momento, a primeira vista considerei a Escola Bosque do Bailique
um tremendo “elefante-branco”, devido à discrepkncia entre o espaço ocupado pela escola e por
sua arquitetura, que se sobressaíam demasiadamente ao espaço ocupado pelas casas, cujos
formatos, em sua grande maioria, estavam mais próximos aos casebres encontrados nos bairros
mais pobres de Macapá naquela época, que beiravam o Igarapé das Mulheres e o Igarapé das
Pedrinhas. No entanto, aquela sensação de disparidade se dissiparia exatamente no momento em
que entrei nas salas de aula da escola, pequenas e quentes.
A Escola Bosque do Bailique foi construída com o apoio da UNICEF (AMAPÁ, 2000), e
seria a primeira de cinco a ser implantadas no Estado do Amapá. Na verdade, a primeira a ser
inaugurada foi a Escola Bosque da Ilha de Santana, a qual nunca entrou em real funcionamento, e
que hoje tem sua estrutura completamente deteriorada e em ruínas, sendo ainda alvo de enclaves
judiciais.
Entre os anos de 1998 e 2002, foi crescente o fluxo de viajantes para a região, como
políticos, jornalistas, cientistas, professores e, assim como eu naquele momento, estudantes
intercambistas, que enfrentavam muitas vezes a grande maresia do rio Amazonas para pesquisar,
trabalhar, ou simplesmente passear. Geralmente são pequenos barcos de trinta metros de extensão
por menos de quatro de largura, o qual, inacreditavelmente (para alguém que até então nunca
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havia enfrentado 13 horas dentro de uma embarcação daquelas), faz uma viagem de cento e
oitenta quilômetros, distância que separa Macapá do Bailique.
Minha rede havia ficado ao lado da pilastra do barco, bem perto ao motor. Se eu não tive
problemas de enjoo devido ao “estômago forte”, não posso dizer a mesma coisa do meu sono,
impossibilitado pelo barulho do motor, pela fumaça do óleo queimando e pelas pancadas que a
rede dava na pilastra do barco, devido ao ininterrupto balanço. Na manhã seguinte, meu braço
estava cheio de hematomas. No entanto, a imagem da floresta, do céu durante o dia, da lua cheia
à noite e a própria Escola Bosque fazem com que eu ainda lembre com enorme nostalgia toda
essa situação.
Para sustentar o grande fluxo de viajantes naquele período, estava sendo erguido, a meio
caminho entre a Escola Bosque e a Vila Progresso, o Hotel da Escola Bosque, que possuía uma
arquitetura semelhante, e os mesmos princípios de utilização de mão de obra e material da região
para sua construção. Além disso, naquele momento estavam sendo concluídos mais dois módulos
da escola para juntar-se aos outros seis em funcionamento.
Das facas às bazucas
Ao caminhar com o Leonardo pelo hotel em construção, ele me mostrava onde seriam os
quartos, o restaurante, os salões de reuniões e conferências, e me explicava os porquês de uma
obra tão grande no meio da floresta, justificando os efeitos que podiam causar no ambiente da
região, e todos os cuidados que haviam sido tomados para que os impactos não fossem tão
significativos.
A entrada do hotel estava distante aproximadamente uns cinquenta metros da margem do
rio, e se adentrava na floresta cerca de quatrocentos metros, os quais eu e o Leonardo tivemos que
caminhar sobre as estruturas de madeira que eram mais finas que a largura de nossos pés.
Chegamos ao fundo do hotel - depois de eu quase ter caído em um igarapé após perder o
equilíbrio - onde havia uma grande clareira aberta para a construção do último módulo.
O Leonardo foi diretor da Escola Bosque desde sua inauguração, e eu havia o conhecido
na primeira vez em que estive lá. Ele me forneceu toda a estrutura necessária para o meu retorno
ao Bailique, além de ter permitido minha livre circulação e integração à escola.
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Para essa segunda estadia no Bailique, ao sair de Macapá, iríamos tomar o barco
“Albatroz”, que sairia da doca do Perpptuo Socorro às quinze horas do ~ltimo sábado do mês de
julho, quando muitas pessoas estariam regressando ao arquipélago devido ao início das aulas. No
entanto, aquele barco começou a encher de gente, e as histórias e notícias de barcos superlotados
que afundavam nos rios amazônicos começaram a povoar minha cabeça...
Eu e o Leonardo resolvemos esperar o barco da madrugada, o “Micleice”, que partiria às
três da manhã, levando os professores da “Bosque”. O Albatroz, com capacidade para transportar
quarenta passageiros e redes, estava já carregando mais de uma centena de pessoas, fazendo com
que eu desistisse, e que também a Capitania dos Portos impedisse o barco de continuar a viagem,
dez minutos depois que ele havia partido do porto.
Formado em Agronomia pela Universidade Federal da Bahia, Leonardo aceitou o convite
de dirigir a Escola Bosque do Bailique um pouco depois de ter abandonado o curso de Mestrado
em Educação e Agronomia. Durante uma de nossas conversas no barco, afirmava enfaticamente
que, ao contrário do que ocorria (e ainda ocorre) em muitas escolas públicas em todo o Brasil
(inclusive em Macapá), ele não era obrigado a usar de um autoritarismo no qual muitos diretores
e diretoras baseiam seu trabalho para manter as escolas “em ordem”.
Mas às vezes, era obrigado a tomar medidas drásticas, para não permitir que algumas
situações degringolassem para a violência e a barbárie. Foi o caso do menino que havia
esfaqueado o colega durante a festa junina de 2001, como consequência de uma briga por
namorada, sendo assim, o primeiro aluno a ser expulso da escola.
Esse foi um dos motivos pelos quais o Leonardo, no segundo dia de aula após as férias de
julho, convocou uma reunião em todos os períodos, um pouco antes do intervalo, com todos os
alunos e professores presentes. Conversou com os alunos de um modo calmo e tranquilo, sem
nenhum momento se alterar ou levantar a voz, mas com uma convicção e seriedade que fez com
que todos que estivessem ali ouvissem com extrema atenção, nem se manifestassem durante sua
arguição.
Leonardo falou bastante sobre a questão da violência na escola, e anunciou que estava
sendo cancelado, por um bom tempo, o uso de talheres de metal pelos alunos, que estavam os
levando embora e transformando em armas: “Em pouco tempo, vocês vão acabar trazendo
metralhadoras Uzi, canhões, mísseis balísticos...”, dizia ele, tentando quebrar o gelo e
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descontrair um pouco mais a reunião, arrancando diversas gargalhadas dos presentes. Anunciou
ainda a criação de uma caixinha de denúncias anônimas contra a violência na escola.
Entre outros, anunciou a obrigatoriedade do uniforme, para garantir a segurança dos
alunos e alunas, e também abordou a questão do serviço militar para os jovens que completariam
dezoito anos, pois estes teriam que ficar em Macapá por alguns dias, e ficariam isentos das faltas.
Mas de todos os tópicos abordados pelo Leonardo nas reuniões, houve um que considerei
extremamente agravante. Quando foi inaugurada, a Escola Bosque tinha previsto que a merenda
seria regionalizada e servida, além dos intervalos entre as aulas, também durante a hora do
almoço. Além disso, as refeições seriam fartas, fornecendo todas as calorias e nutrientes
necessários para os alunos e alunas: arroz, feijão, carne, açaí, farinha de mandioca, salada e os
sucos típicos da região.
De seis mil reais disponibilizados mensalmente para a merenda na época de inauguração,
a escola passou a receber três mil reais e, a partir daquele momento - agosto de 2001 - a verba
não passaria dos oitocentos reais. Explicava ele que a falta de recursos era geral no Estado, e não
havia previsão de mudança. A crise econômica brasileira de 1999 ainda fazia sentir seus efeitos, e
a merenda no Bailique também estava sendo afetada. Das refeições que eram antes servidas, os
lanches passaram a ser constituídos, na grande maioria das vezes, de bolachas e sucos.
Além da função de diretor, Leonardo trabalhava junto à coordenação da escola, na
orientação aos professores e professoras, e tentava resolver algumas questões estruturais, como a
situação do fornecimento de água e energia elétrica, que conforme eram ajustados na escola,
também modificavam toda a rede de distribuição para as cento e cinquenta casas da Vila
Progresso.
Rádios e farmácias
Aliás, cento e cinquenta casas foi o número que me deu o Sabá, quem conheci durante a
reunião da manhã. Enquanto o Leonardo falava, ele arrecadava assinaturas para que a Rádio
Comunitária do Bailique fosse reaberta, já que havia sido fechada pela Agência Nacional de
Telecomunicações por supostas irregularidades e ilegalidade.
O Sabá era um dos moradores mais ativos da região, nascido no próprio Bailique, e era
diretor da Rádio Comunitária local, a qual prestava serviços e dava diversas informações aos
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bailiquenses. Mas devido à realização do “Bailique Verão” - uma série de eventos realizados pela
Prefeitura de Macapá durante o verão amapaense, que incluía shows, concursos, gincanas e
outras atividades - no qual foi a Rádio Comunitária a responsável pela animação, algum morador
descontente e incomodado com o barulho do evento, contatou a Anatel para denunciar as virtuais
irregularidades.
Ele também me contou um pouco da história da região do Bailique, e das suas
comunidades com mais de cem anos, que era o caso do Buritizal - a primeira a ser registrada
oficialmente - e também a do Franquinho.
Ao contrário dos irmãos, que lidavam com a construção naval, ele trabalhava na
construção civil, e mostrava muita preocupação com o crescimento de serviço que tinha pela
frente, pois cada vez mais pessoas estavam se alojando na Vila Progresso, e temia que essa
situação pudesse prejudicar o equilíbrio ecológico na região.
E, apesar da inauguração da Escola Bosque, em 1998, com inúmeras famílias voltando ao
Bailique na época, e devido à própria escola desenvolver naquele momento os cursos de
carpintaria naval, o Sabá comentava que havia cada vez menos pessoas trabalhando na área, pois
os mais jovens não estavam se interessando pelo ramo, o que foi confirmado por duas
funcionárias da escola que estavam ao nosso lado durante a conversa.
Quem havia me indicado para conversar com o Sabá para saber um pouco mais sobre o
Bailique havia sido o Anderson. Formado em Biologia na cidade do Rio de Janeiro, trabalhou em
alguns lugares pelo Brasil antes de chegar ao Amapá e ao Bailique. Solteiro, assim como era a
maioria dos professores da Escola Bosque - ao contrário das professoras, que eram na maioria
casadas - não se incomodava muito em ter que ficar isolado durante vinte e cinco dias por mês na
região do Bailique.
Ao contrário, estava encantado pela floresta, o que se notava cada vez em que um animal
surgia perto da escola, ou avistávamos uma planta diferente em nossas caminhadas pelas palafitas
que ligavam os módulos da escola. Gritava em voz alta, para todos ouvirem: “Isso p Amazônia!”,
e sempre repetia sobre a grande alegria em estar na Escola Bosque. Era professor e também
trabalhava como projetista de alguns empreendimentos, como o Projeto “Farmácia da Terra” -
que desenvolvia ervas medicinais - e também o canteiro de mudas de árvores nativas.
Conheci o Anderson na Biblioteca da Secretaria do Meio Ambiente do Amapá, em
Macapá, enquanto eu estava agendando, uns dias antes de minha ida ao Bailique, uma visita
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à Escola Família Agrícola do Carvão (REIGOTA, 2000), na cidade de Mazagão Velho, a qual,
apesar da preocupação com o meio ambiente desde sua fundação, tem uma proposta pedagógica
bem diferente da Escola Bosque, desde a construção do seu currículo, sua metodologia de
trabalho - que adotou a Pedagogia da Alternância - passando pela arquitetura, pela captação de
recursos e o cotidiano dos professores e professoras.
Assim como outros professores que tinham residência em Macapá, mas passavam vinte e
cinco dias por mês na
“Bosque”, o Anderson via o seu vínculo com o Bailique como
“passageiro”, alvejava outros voos e fazia de sua estadia ali apenas uma experiência, já que, no
próprio projeto original da escola, a preferência era contar apenas com professores e professoras
da região em seu corpo docente.
A guia
Passageira também era a estadia da Daniela. Formada em magistério, fazia quase onze
meses que estava trabalhando no Bailique, ministrando aulas de primeira a quarta série do Ensino
Básico. A Daniela foi a primeira professora que conheci durante a viagem, enquanto ainda
estávamos esperando a partida do barco, na Doquinha do Perpétuo Socorro, em Macapá. Ela me
contava sobre sua vontade de fazer o curso de Pedagogia, em Sobral, no Ceará, mas estava
tentando convencer alguém a ir junto, pois não queria ir sozinha.
A Daniela foi, em muitos momentos, minha principal guia no Bailique, especialmente
quando caminhávamos pela Vila Progresso. Ela conhecia quase todas as alunas e alunos da
escola, e ao andar em sua companhia pela comunidade, me sentia andando com uma celebridade,
devido à sua grande popularidade, inclusive entre não alunos(as) da escola. Isso sem contar os
inúmeros olhares de espanto em minha direção, pois quem seria aquele estranho rapaz de cabelos
longos e barbas caminhando ao lado da professora...
Talvez por ser uma pessoa não originária da comunidade, mas estando já há um bom
tempo por lá, ela naquele momento era a professora ideal para me contar as impressões
“estrangeiras” sobre a Escola Bosque e o Bailique. Desde largar a família em Macapá, aos
dezoito anos, logo após ter completado o magistério; as saudades dos parentes e dos amigos de
infância e juventude; dormir em um alojamento no meio da mata ao lado de pessoas até então
desconhecidas e a partir disso conviver com elas, além do acolhimento da comunidade.
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A Daniela havia me apresentado dezenas de pessoas, mas duas delas foram especialmente
marcantes, e quero fazer o devido registro aqui.
Em primeiro lugar, sua amiga Jéssica, com quem se formou e também ministra aulas no
Ensino Básico da “Bosque”. Seu pai era considerado uma das pessoas mais importantes da
história recente da Vila Progresso e de todo o Bailique, devido ao seu ativismo pela melhoria das
condições da comunidade, cuja ~nica escola na vila tem seu nome: “Cláudio Luis Santos
Barbosa”. Em sua casa, quase no fim da vila - a uma distância de quase três quilômetros da
Escola Bosque - quase todos os cômodos estava ocupados pelos livros de Filosofia e Ciências
Humanas do irmão, também professor da Escola Bosque - mas que não estava no Bailique
durante minha estadia - e pelas inúmeras peças artesanais que ela fazia com penas, conchas,
sementes, folhas e qualquer outro tipo de material que pudesse achar na floresta.
E em segundo lugar, sua tia Luciana, uma das moradoras mais antigas do Bailique, Dona
Luciana nos contou que, entre outras coisas, havia aprendido a ler e escrever com os pais, já que
na época de sua infância não havia tantas escolas no Bailique, e que conhecia o Arquipélago
quase inteiro, pois viajava com o marido quando este fazia grandes trajetos. Após a morte dele,
Dona Luciana não quis mais sair muito de casa, tanto que ainda não conhecia a Escola Bosque.
Por temer que seus alunos começassem prematuramente sua vida sexual, pois, assim
como em outros lugares, no Bailique já havia muitas meninas sendo mães aos onze e doze anos,
Daniela me contou que muitas vezes sentia-se “careta” diante de seus alunos e alunas. Isso
porque geralmente era surpreendida em sala de aula com perguntas e comentários sobre os quais
ela não esperava que fossem feitas por crianças daquela idade, entre sete e dez anos, e que tinha
que fazer um grande esforço para não se aprofundar demais no assunto, mas também não deixá-
los sem as informações necessárias.
Eu lhe disse que iria sentir-se realmente “careta” com as abordagens dos alunos de quinta
à oitava série do Ensino Fundamental, faixa etária com a qual eu trabalhava naquele momento
como professor eventual em uma escola pública de Sorocaba. Expliquei que, principalmente com
os professores jovens, como eu era naquele momento, as abordagens iam desde cartas de alunas e
alunos apaixonadas pelos(as) docentes, passando por pedidos de ajuda para tentar ficar/namorar
com determinado alguém, dúvidas sobre questões amorosas e ou sexuais, situações de violência
doméstica, entre outras ocorrências do gênero.
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Ainda trocamos algumas experiências pedagógicas (apesar de sermos jovens docentes
com pouco tempo de trabalho), e conversamos, entre outros assuntos, sobre ecologia e racismos.
Enquanto eu ouvia sobre alguns casos que ela me contava sobre o preconceito que muitos colegas
homossexuais sofriam em Macapá, ela ouvia abismada sobre alguns encontros desagradáveis que,
na época, eu e alguns amigos punks e headbangers havíamos tido com neonazistas.
Pensamento e indolência
Enquanto a Daniela afirmava que se preocupava com cada palavra que dizia aos alunos e
alunas, o Maurício não se intimidava em passar para sua turma uma entrevista do cartunista
Ziraldo, o qual estava tão irritado com a situação brasileira na época do governo FHC, que não
hesitou em soltar alguns bons palavrões. O Maurício, para reproduzir toda a raiva e indignação do
cartunista, não pensou duas vezes em repetir suas palavras integralmente, enquanto lia a
entrevista.
Formado em Letras pela Universidade Federal do Amapá, ele lecionava Literatura para
classes do Ensino Médio e, em suas aulas, usava as mais diversas obras de autores(as)
brasileiros(as) para explicar a situação na qual se encontrava o Brasil e o mundo.
Conversávamos, nos períodos entre aulas, sobre diversos assuntos, como o seu ecletismo
- e o meu radicalismo - musical, onde ele ficou desorientado quando comecei a explicar sobre os
diversos estilos de música extrema dos quais eu gostava, e ele nunca tinha ouvido falar. Ele ainda
me contava sobre seus planos de viagem pelo mundo, e que estava juntando grande parte do
dinheiro que ganhava como professor na “Bosque” para passar uma temporada na Europa ou nos
Estados Unidos.
Quem também lecionava Literatura e Língua Portuguesa era o Antônio, que dava aulas
para turmas de quinta à oitava série, hoje sexto ao nono ano. Ao acompanhar uma de suas aulas,
notei o ótimo relacionamento que ele tinha com os alunos e alunas, e o grande respeito dos(as)
jovens enquanto os professores e professoras davam suas aulas. Reparei essa situação não
somente na aula do Antônio, mas também ao acompanhar as turmas do Maurício e do Anderson.
No entanto, especificamente a aula que acompanhei do Antônio era a primeira da manhã,
e a classe estava bem sonolenta, depois de um longo mês de férias. E aí eram necessárias algumas
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chacoalhadas: “Por favor queridos, acordem, não me envergonhem na frente do Rodrigo, senão
ele irá falar mal de nós lá no sul...”
Após ter distribuído alguns livros à turma, ele pedia para que os alunos e alunas
escolhessem um texto, lessem em voz alta e depois fizessem para a classe uma reflexão sobre o
que haviam entendido da leitura. Só que, naquele momento da manhã, nem oito horas ainda,
ainda era difícil qualquer exercício.
Perguntei ao Antônio, após a aula, se a minha presença na classe estava inibindo a
participação dos jovens, ou se era uma questão de timidez: “Nem uma coisa, nem outra, Rodrigo.
O problema deles p a grande preguiça de pensar”. Disse-lhe, naquele momento, que esta questão
não era exclusiva de seus e suas estudantes, nem um problema específico do Amapá, mas que
também encarava a mesma situação entre meus alunos e alunas.
O Antônio dizia que, como professor, sentia a obrigação de incentivar os alunos e alunas à
leitura. Para isso, afirmava que talvez tivesse que ficar mais tempo dentro de sala de aula, e não
trabalhar tanto ao ar livre, como sugeria a coordenação da escola. Por considerar a Língua
Portuguesa mais especificamente teórica do que as outras nas quais era possível um contato
maior com o ambiente natural, como Geografia, Ciência e Artes, sair muito com os(as) estudantes
poderia dispersar ainda mais sua atenção.
Saudades das famílias
Sobre a preguiça de pensar, também reclamava a Mirela. Professora de Sociologia,
Psicologia e História da Educação para estudantes do magistério da Escola Bosque, ela estava
com um machucado muito grande em uma das pernas, pois durante o Bailique Verão havia caído
em um buraco entre as madeiras da passarela. Quando caminhava com o Leonardo pelo Hotel
Escola Bosque, percebi que esse era um risco real.
Nas aulas que pude presenciar, ela discutia Vygotsky e Piaget sobre o desenvolvimento
cognitivo da criança, e relatava aos seus alunos e alunas sobre sua trajetória de vida. Por ter tido a
primeira filha aos dezessete anos, não pôde prestar uma atenção mais minuciosa às suas fases de
desenvolvimento.
Brincava com a turma dizendo que desejava ter outro filho para “usar de cobaia” em suas
observações. Durante nossa breve conversa, me contou Mirela, depois da aula, que a turma da
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noite era ainda mais participativa que a turma da manhã - que já era muito entusiasta e dialógica
- e que, frequentemente, se não controlasse o ímpeto das discussões, muitas vezes ficava sem
falar devido à empolgação das alunas e alunos.
Mirela havia deixado suas filhas em Belém, e falava muito sobre a saudade que sentia,
reclamando demais da distância. Também me dizia que a sua estadia no Bailique seria passageira,
e assim que terminasse sua pós-graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Amapá,
ela se desligaria da Escola Bosque.
Como já haviam me dito o Maurício e o Anderson, a Mirela me contou sobre a relativa
decepção que os professores e professoras acabavam tendo ao trabalhar na Escola Bosque, pois
os representantes da Secretaria de Educação do Estado apresentavam a escola de uma maneira
que não condizia à realidade, tanto em relação à estrutura, quanto aos recursos e às possibilidades
de concretizar aquilo que os idealizadores da escola haviam pensado.
Mesma coisa foi me dita pela Maria, professora de Artes. Formada pela Universidade
Federal do Amapá, estava adiantando as suas aulas, pois teria que retornar e ficar uns dias a mais
em Macapá, pois havia acabado de se formar e queria participar de todos os eventos da
formatura.
Durante uma de suas janelas de aula, Maria me relatou sobre os inúmeros problemas que
teve ao chegar ao Bailique, desde a alimentação - que em alguns dias consistiu unicamente de
arroz, feijão e macarrão - até a possibilidade de não ficar no alojamento da escola e, portanto,
não contar com a ajuda dos professores no caso de alguma emergência.
Estar no alojamento, apesar da falta de privacidade, era essencial em situações em que
houvesse algum problema grave, como o caso contado por ela - e confirmado pelos colegas - de
um professor que havia tido convulsões e febre. Se não estivesse no alojamento e contasse com o
apoio dos colegas, algo pior poderia ter acontecido.
Tambpm contava que, ao chegar à escola, teve que “bater o pp” e insistir para que suas
aulas não fossem somente práticas - como havia recomendado a coordenação - mas que também
houvesse o estudo da teoria da Arte e sua relação com as outras áreas do conhecimento.
Comemorava que o seu pedido havia sido aceito.
E ela exercia essas aulas teóricas com afinco, preocupada com a construção do
conhecimento sobre artes pelos alunos. Na aula em que presenciei, ela fez uma longa explanação
sobre o folclore, e as diversas dimensões da história das artes. No entanto, sua aula não durou
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muito tempo, pois os alunos e alunas, que em grande parte eram adultos que trabalhavam durante
o dia, quiseram ir embora mais cedo, devido ao receio da energia elétrica acabar antes que
chegassem a suas casas.
Tanto a Maria quanto a Mirela, reclamavam que, devido às aulas do período noturno se
encerrarem dez e meia da noite, e a energia elétrica acabar as onze - devido aos geradores
movidos a óleo diesel - não era possível, durante à noite, nem estudar, e muito menos preparar as
aulas para o dia seguinte. Somente quando havia jogos de futebol de times grandes de São Paulo,
do Rio de Janeiro ou do Pará, a luz acabava próximo à meia-noite.
Assim como a Mirela, a Maria era mãe de duas meninas, deixadas em Macapá. Ela ainda
me contava da grande vitória que foi conseguir se formar, pois como o curso de Artes, naquele
momento, não tinha boa estrutura na Universidade Federal do Amapá, havia situações nas quais
os próprios estudantes tinham que procurar professores para lhes dar aulas. Criticou longamente
também o Governo Federal e o então presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual, segundo
ela, havia dado uma declaração sobre a necessidade de retirar o ensino de Artes das escolas
públicas. Pergunto-me o que estaria pensando Maria, hoje, sobre a mudança do Ensino Médio
proposta pelo Governo Temer...
Assim como a Maria, a professora Andressa era recém-chegada à Escola Bosque do
Bailique, estando ali há pouco mais de dois meses, e que ainda estava criando vínculos com os
alunos e alunas, além de estar se familiarizando com a comunidade. Professora de Língua
Portuguesa, dizia que apesar das saudades da família e da distância do Bailique em relação à
Macapá, era bem melhor estar trabalhando ali do que em alguma escola particular na região
urbana.
Antes de ir ao Bailique, a Andressa havia lecionado em uma grande rede de ensino
nacional que tem uma unidade na cidade de Macapá. Ela afirmava que os alunos e alunas do
colégio, por serem filhos(as) da elite macapaense, se julgavam no direito de maltratar e
desrespeitar professores(as) e funcionários(as) do colégio. No entanto, apesar de toda a pompa da
instituição, sua saída foi justamente por falta de pagamento.
Na “Bosque” ela não obrigava ningupm a ficar em sala de aula, mas pedia para os que
ficassem não perturbasse e/ou atrapalhassem a aula, e que também participassem ativamente das
suas discussões e propostas. Dizia-me a Andressa que conseguia manter as salas cheias devido às
diversas atividades que promovia, entre as quais estavam a criação de histórias, fábulas, contos,
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narrações, montagem de jornal estudantil, e até a descrição escrita e desenhada dos professores e
professoras da escola. Descrições que, obviamente, não mostrava a ninguém e guardava a sete
chaves dos colegas de trabalho, apesar dos inúmeros e encarecidos pedidos.
Diferenciava a turma da manhã com a turma da tarde, dizendo que os jovens vespertinos
eram mais ativos, e destacava, falando sobre mim, que a vinda de visitantes à escola despertava,
muitas vezes, mais a atenção dos alunos e alunas, do que dos próprios viajantes. Quem era a
pessoa, de onde vinha, e quais eram seus interesses na escola.
E onde estava a chave? ...
Outro professor que era recém-chegado à Escola Bosque era o Sérgio. Ele havia acabado
de se formar em História pela Universidade Federal do Amapá, e também estava há pouco mais
de dois meses na escola. No barco, conversamos longamente sobre a importância de pensadores
brasileiros como Milton Santos, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda, e também sobre as
diferenças entre uma universidade pública federal no norte do país e uma universidade particular
tradicional no interior do estado de São Paulo.
Contava-me orgulhosamente que, além de ter acabado de concluir sua monografia, havia
ganhado uma bolsa por outro trabalho que estava desenvolvendo a respeito da era Vargas e sua
repercussão no norte do Brasil, e que pretendia continuar essa temática em uma futura pós-
graduação.
Sua docência no Bailique estava sendo a primeira experiência na educação, e além de
superar a falta de maior prática pedagógica, ainda estava criando vínculos com os alunos e
alunas, e também com a comunidade. Seu estilo era bastante formal, e me dizia que, para ensinar
História, era necessária essa formalidade e também um amplo domínio do assunto a ser tratado.
Mostrava grande seriedade ao trabalhar com o absolutismo e as monarquias europeias, tentando
constantemente fazer uma ligação direta com a história brasileira e a formação do país.
Mas assim como na aula do Antônio, os alunos e alunas não estavam muito animados(as)
e participativos(as), devido, também, ao horário do início das atividades. Ainda era muito cedo, e
o Sérgio tentava constantemente animar a turma, fazendo uns breves intervalos para contar
alguma situação engraçada e acordar os jovens. Também comentava após a aula que um grande
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problema das classes era a preguiça de pensar. No entanto, como forma de quebrar o gelo e as
angústias do Sérgio, disse-lhe que, às sete da manhã, até eu não estava muito disposto a pensar.
Durante a semana em que fiquei no Bailique, fiquei acampado no alojamento da Escola
Bosque. Além dos professores dos quais já escrevi, havia alguns ainda que não haviam chegado,
e também alguns outros com os quais não tive oportunidade de conversar ou acompanhar as
aulas, devido às muitas atividades durante aquele período. Entre eles estava o casal Marcos e
Flávia (ele era professor de Literatura e ela de Educação Infantil), a Talita (que havia trocado o
trabalho de carcereira para dar aulas de Matemática), o Sanchez e a Juliane (ambos de Ciências) e
a Rosa (também de Matemática).
Um professor que estava praticamente morando no alojamento era o Alcir, cujo pequeno
espaço era tomado de livros e da sua ampla coleção de cartões telefônicos. Vivendo da
aposentadoria que ganhava do Governo de Pernambuco, mandava todo o dinheiro que recebia
como professor de Geografia na Escola Bosque, para o filho que cursava medicina na Bolívia.
O Alcir já estava lá quando chegamos e teve, assim como os outros homens, que dividir o
alojamento coletivo com as mulheres na noite de nossa chegada. O alojamento feminino estava
trancado, e ninguém na escola sabia onde estava a chave. Todos tiveram que se apertar no
alojamento masculino. Para minha sorte, como muitos professores não haviam chegado, sobrou
uma rede para mim, na qual eu fiquei todos os dias de minha estadia. A busca da chave se tornou
uma verdadeira caça ao tesouro, mas ela foi encontrada somente no dia seguinte, quando as
merendeiras abriam a cozinha e a encontraram.
De alojamentos, justiça e esquecimento
Compartilhar o aperto em um alojamento coletivo talvez fosse o menor dos problemas
comparado à obrigatoriedade de ficarem vinte e cinco dias por mês em um rincão tão isolado
quanto o Bailique. Apesar de telefones públicos disponíveis, sua sonoridade era péssima, e o
custo da ligação era muito caro. Não havia celulares largamente disponíveis ainda, e a internet
custava a funcionar. Além disso, em qualquer situação de emergência, a viagem até Macapá era
muito longa, e os barcos saíam no máximo três vezes por dia. Portanto, esses professores e
professoras acabavam cuidando um do outro como se fosse uma grande família.
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Grandes famílias que eram os Amanajás e os Barbosas, as maiores do Bailique, cujas
rixas de décadas, largamente explicadas pela Daniela, envolviam brigas corporais, mortes,
sabotagens e uma falta de comunicação radical entre os membros das famílias. No entanto, essas
famílias estavam cada vez mais se descaracterizando e perdendo sua hegemonia, devido ao êxodo
de pessoas do Bailique rumo à Macapá, e a chegada de novos moradores.
À noite, quando não se reuniam no bloco administrativo para organizar seus trabalhos,
projetos para escola, ou simplesmente assistir as novelas e os telejornais. Os solteiros e as
solteiras iam aos forrós e bailes bregas que ocorriam, geralmente, na Vila Macedônia, que se
localiza na ilha do Brigue, bem em frente à Vila Progresso e à Escola Bosque.
Quando eu estive lá, boa parte das professoras e professoras me disseram que faziam
questão de ficar conversando comigo, assim como faziam com outros estudantes e professores
que não eram do Amapá e/ou da região norte, pois queriam saber tanto as notícias do mundo
afora e a dinâmica enlouquecida do Centro-Sul do país, como adoravam contar sobre suas
histórias de vida, suas famílias, suas ilusões, desilusões e esperança de futuros melhores. E, de
alguma forma, queriam que aquela condição em que se encontravam fosse conhecida por mais
pessoas.
Faziam-me companhia enquanto eu observava as marés da foz do Amazonas destruírem
os barrancos nas margens dos rios em fins de tarde magníficos (houve somente um dia de chuva
intensa), como muitos que presenciei e diversas vezes me roubavam a atenção, enquanto assistia
a reunião entre o corpo docente para discutir a divisão da alimentação, ou enquanto registrava
minhas conversas na pequena doca em frente à escola, entre um pulo e outro dos botos cor-de-
rosa.
Durante os anos em que a Escola Bosque do Bailique era enaltecida e retratada como uma
possível potencializadora da necessária mudança da educação brasileira, os professores e
professoras não recebiam o devido protagonismo, tanto nas belas reportagens da TV Cultura,
como da extinta revista Caminhos da Terra (CALDAS, 2001), da Isto É (KLINKE, 1998), da
Nova Escola (BENCINI, 1998), da Folha de S. Paulo (AVANCINI, 1998) e do Estado de S.
Paulo (MURPHY, 1998). Caía sobre eles e elas, na maior parte, a responsabilidade não somente
de manter e fortalecer o projeto pedagógico da escola em si, mas tocar adiante a proposta do
PDSA na região do Bailique, a partir dos preceitos de uma educação ambiental que levava em
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consideração o saber local e as possibilidades de fortalecimento comunitário a partir das
potencialidades ecológicas e econômicas da região.
Vale lembrar também que a experiência da Escola Bosque do Bailique foi completamente
obliterada e esquecida durante o processo de criação do material de referência, das políticas e
programas nacionais de educação ambiental nos governos Lula, entre 2003 e 2010. Nenhuma
referência ou citação sobre o trabalho no Bailique é encontrado em nenhum dos documentos
produzidos nesse período, expondo ainda mais a brutal tentativa de apagamento e a falta plena de
reconhecimento por aquela experiência.
Esse texto que escrevo, portanto, não é somente para enaltecer o protagonismo dessas
professoras e professores, deixado em segundo plano, inclusive, pelo Governo do Estado do
Amapá, na época, como relatado em muitas das falas que registrei aqui. Mas os registros que
trago também são para fazer vir à tona, nem que seja uma última vez, os fragmentos da esperança
sobre uma experiência que se está quase que perdida devido à corrupção, ineficiência e
incipiência dos gestores da educação brasileira. Mas que também se mantém, ainda, nem que seja
infinitesalmente, como potencializadora de uma virtual transformação radical da educação
brasileira, e das relações entre o meio ambiente e a educação.
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Rodrigo Barchi - Universidade de Sorocaba - Uniso. Sorocaba | SP
| Brasil. Contato: rodrigo.barchi@prof.uniso.br
Artigo recebido em: 11 set. 2017 e
aprovado em: 19 out. 2017.
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