DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n3p693-705
Pesquisa com crianças: possibilidades e desafios de participação
Laura Simone Marim Puerta
Marta Regina Brostolin
Resumo: Com base no construto teórico da Sociologia da Infância, este texto emerge com reflexões a respeito dos
estudos da criança, enfocando a crescente participação das crianças nas investigações científicas, uma vez
que a participação ativa delas como protagonistas constitui-se uma tendência contemporânea que envolve
novas possibilidades teórico-metodológicas e muitos desafios. Nesta perspectiva, considerando a pesquisa
de abordagem qualitativa, do ponto de vista metodológico a investigação de cunho etnográfico mostra-se
uma possibilidade extremamente válida no que se refere à pesquisa com crianças, permitindo que as
crianças assumam o lugar de sujeitos nas investigações, sendo consideradas como atores sociais,
produtores de sentido e participativos das atividades sociais nas quais estão envolvidas captando o entorno
social e os contextos culturais.
Palavras-chave: Sociologia da infância. Pesquisa com crianças. Pesquisa etnográfica.
Research with children: possibilities and challenges of participation
Abstract: Based on the theoretical construct of Sociology of Childhood, this text emerges with reflections on the
child's studies, focusing on the growing participation of children in scientific research, since their active
participation as protagonists constitutes a contemporary trend that involves new theoretical and
methodological possibilities and many challenges. In this perspective, considering the research of a
qualitative approach, from a methodological point of view ethnographic research shows an extremely valid
possibility with regard to research with children allowing children to take the place of subjects in the
investigations, being considered as social actors, producers of meaning and participatory social activities in
which they are involved capturing the social environment and cultural contexts.
Keywords: Sociology of childhood. Research with children. Research ethnographic.
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Algumas palavras iniciais
Dimensionar as crianças em suas multiplicidades de ser exige grande esforço, que se
atrela ao entendimento da complexidade de suas infâncias. Abordar esses conceitos de forma
delimitada, apenas por um campo epistemológico e disciplinar, possivelmente não contemple
toda a gama de conhecimentos que envolvem seus sujeitos, bem como a categoria da qual fazem
parte, comprometendo e limitando a compreensão de forma holística dessas questões.
Partindo dessa premissa, Belloni (2009, p. 114) afirma que “a infkncia contemporknea só
pode ser compreendida em toda sua complexidade com base em abordagens interdisciplinares”.
Por esta razão, entende-se que não apenas um campo de estudo, mas diversos campos
disciplinares estão gerando um olhar renovado sobre crianças e infâncias. Trata-se de uma
tendência considerada recente, cuja perspectiva é de que as crianças e suas infâncias constituam
objetos e sujeitos próprios da pesquisa. Com vistas a essa perspectiva, o texto ancorado nas
contribuições da Sociologia da Infância se propõe a refletir sobre as possibilidades de
participação da criança e os desafios presentes na pesquisa, pois “captar o ponto de vista das
crianças p algo relativamente recente” (CRUZ, 2008, p. 12). Sendo um campo emergente,
esperamos contribuir para o debate no campo investigativo do cenário infantil.
A sociologia da infância e os estudos da criança: contribuições e diferentes significações
Segundo Belloni (2009, p. 121):
[...] a visão predominante sobre a infância nas ciências humanas enfatizava
principalmente a criança como ser em formação, incompleto, o futuro homem presente
no homenzinho e suas capacidades de tornar-se adulto, numa perspectiva evolucionista
fortemente inspirada na teoria de Darwin. Na virada do século XIX para o século XX,
observa-se uma mudança da visão pediátrica com influências eugenísticas e/ou
evolucionistas para uma perspectiva mais psicológica de “desenvolvimento (intelectual)
da criança”
[...]. A partir daí, vemos uma crescente importkncia da psicologia do
desenvolvimento e uma generalização da ideia de desenvolvimento, que vai tornar-se
preponderante e quase monopólica no campo das ciências humanas e das práticas sociais
voltadas para a infância.
Ao longo dos tempos houve mudanças na concepção de infância. A modernidade instituiu
uma infância separada dos adultos que se caracteriza pela definição daquilo que ela não tem, ou
seja, que precisa ser socializada dentro dos valores, normas, regras, comportamentos que lhe
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permitam exercer suas funções enquanto adultos de forma integrada. A infância da modernidade
foi pensada como uma geração do devir, em transformação, no sentido de futuro.
Frente a esse contexto, Coutinho (2015) afirma que a crítica em relação à normatização da
criança e da infância, presente no campo científico, fez com que, em 1980, emergisse uma nova
área de estudos. Embora, em diferentes abordagens, as crianças nunca estiveram ausentes do
pensamento sociológico, do mesmo modo como o lugar da infância, mas o que ocorreu, segundo
Corsaro (2011), é que as crianças foram marginalizadas por este campo das ciências sociais. Isso,
segundo o autor, se deve ao fato de que, em cada período histórico, mudanças sociais e culturais
acarretam influências na lógica de compreensão, bem como nas produções relacionadas às
crianças e às infâncias. Desta forma, a crescente ampliação dos estudos, especificamente, sobre a
infância, no campo das ciências humanas, deu margem para a consolidação de uma nova vertente
da Sociologia da Educação, ou seja, a Sociologia da Infância.
Para Sarmento (2009), a expressão Sociologia da Infância é empregada desde os anos 30.
Contudo, esse autor salienta que “a consideração da infkncia como categoria social apenas se
desenvolveu no último quartel do século XX, com um significativo incremento a partir do início
da dpcada de 90” (p. 18).
Dessa forma, essa renovação dos estudos sociológicos em relação à infância tem
contribuído para que essa área seja considerada uma nova Sociologia da Infância, conforme
apontado por Martins Filho (2010, p. 5) “[...] a Sociologia da Infância é um campo recente que
estuda a infância em si mesma, isto é, como uma categoria sociológica do tipo geracional. Para a
Sociologia da Infância as crianças são atores sociais ativos”.
Assim, trata-se de uma área emergente em que este novo subcampo, conforme refere
Belloni (2009) à Sociologia da Infância, está no centro das discussões em Educação e vem se
constituindo a partir da crítica ao conceito de socialização. A redefinição do lugar social das
crianças e da transformação da ideia de infância gerou um novo olhar sobre as infâncias e a
produção científica de abordagem sobre a criança e a infância cresceu de modo significativo nos
últimos anos, um crescimento que se expressa em números de títulos como também na
constituição de grupos de pesquisas, nacionais e estrangeiros, e na ampliação de comunidades
de pesquisadores da área, conforme afirma Gouvea (2009, p. 97):
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[...] o aumento da produção fez-se acompanhar, nas investigações mais recentes, por um
refinamento terminológico, em que se busca precisar os conceitos que definem o campo.
Assim é que termos como infância e criança, muitas vezes tomados indistintamente, vêm
sendo melhor diferenciados.
Essa distinção em relação ao duplo objeto de estudo da Sociologia da Infância ocorreu
devido ao uso indiscriminado dos termos infância e criança, como se tratassem de categorias
equivalentes. Por esta razão, a Sociologia da Infância faz uma distinção semântica e conceitual
em relação a esses termos, de modo que a infância corresponde a uma categoria social do tipo
geracional, ou seja, representa uma geração própria de sujeitos com estatuto próprio, e a criança é
ator social, concreto e real que integra essa categoria geracional.
Para Corsaro (2011), a Sociologia redescobre a infância e se refere às crianças como
produtoras de suas próprias culturas e processos de socialização, contribuindo para a produção do
mundo adulto. Portanto, a partir da nova configuração infantil as crianças são vistas como autoras
e protagonistas na construção e determinação de suas vidas. Nesse sentido,
[...] a sociologia da infância propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de
vista que toma as crianças como objeto de investigação sociológica por direito próprio,
fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre a infância, mas sobre o conjunto da
sociedade globalmente considerada (SARMENTO, 2005, p. 363).
Assim, importa salientar, que as crianças da contemporaneidade são consideradas “como
atores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como categoria do tipo geracional,
socialmente construída” (SARMENTO, 2009, p. 22).
Coutinho (2015, p. 184) ainda acrescenta que “[...] o campo dos estudos sociais da
infância tem como características a centralidade da criança na pesquisa, a interdisciplinaridade
(também definida como multi e transdisciplinaridade); a geração e a alteridade da infância como
categorias fulcrais”.
Além disso, este campo emergente de estudos a respeito da infância permitiu outras
interpretações sobre as relações sociais que crianças, seus pares e adultos estabelecem, bem como
alteraram a compreensão dos processos de apropriação, pelas crianças, dos mundos sociais em
que vivem (MÜLLER; NASCIMENTO, 2014, p.11).
Nesse sentido, Arroyo (2009, p. 119-120) afirma:
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[...] as ciências se aproximam da infância com suas verdades prévias ou a veem através
de suas verdades sociológicas, históricas. Verdades prévias que condicionam seu olhar e
as ideias de infância que nos transmitem. Por seu lado, as ciências do humano também
são interrogadas pelo protagonismo social da infância, revendo suas verdades e trazendo
outras interpretações.
A contribuição das ciências para o estudo da criança é inquestionável, entretanto, na
contemporaneidade, esse olhar unilateral e disciplinar não dá conta da complexidade que envolve
o ser criança, portanto, a criança, que por muito tempo foi considerada um ser incompleto,
incapaz pela sociedade adultocêntrica, passa a ser considerada e respeitada por diversas áreas do
campo científico dispostas a compreenderem a infância com base nas próprias crianças, no que
elas têm a dizer, a fazer e a sentir por meio de suas diversas linguagens e expressões.
Gouvêa (2011, p. 550) contribui, nesse sentido, ao expor que no decorrer dos últimos
anos,
“vem se afirmando uma perspectiva diferenciada de compreensão da infkncia. Essa
perspectiva não fica mais restrita aos domínios da psicologia, mas é definida por um recorte
multidisciplinar”. No Brasil, como indicam Müller e Nascimento, já na dpcada de 1970, F~lvia
Rosemberg evidenciava a necessidade de se estabelecerem “estudos interdisciplinares sobre a
infkncia” (1976 apud MÜLLER; NASCIMENTO, 2014, p. 12).
Portanto, esse diálogo entre as diversas ciências, bem como as interrogações que trazem a
respeito das crianças e suas infâncias são marcos importantes em relação à compreensão das
crianças como atores sociais, estabelecendo a composição de um campo específico de estudos.
Nessa perspectiva, Gomes (2009) sugere a ocorrência de algumas convergências e integração de
perspectivas de diversas disciplinas para orientações dos estudos. Arroyo
(2009, p.
120),
complementa expressando que todas essas “pesquisas e reflexões teóricas têm trazido outras
verdades e outras imagens da infkncia”.
Nessa direção, os Estudos da Infância proporcionam diversas e diferentes formas de
significação para as crianças e as infâncias, que não se limitam a simples conceitos, mas as
consideram para além deles.
Gouvêa (2011, p. 550-551) salienta que:
[...] o alargamento dos referenciais disciplinares de estudo da infância determinou a
produção de um novo arcabouço teórico conceitual. Verifica-se a conformação de uma
história da infância, de uma antropologia da infância, de uma filosofia da infância e,
principalmente, de uma sociologia da infância, com a frutífera construção de novos
conceitos que superam uma análise evolutiva. Tais campos, ao mesmo tempo em que se
ancoram nos referenciais epistêmicos das distintas disciplinas, vem estabelecendo
interseções e transversalidades, buscando apreender a infância como fenômeno social
Infância.
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Dessa maneira, estudar a infância numa perspectiva interdisciplinar permite que áreas
distintas do conhecimento se complementem entre si e apreendam mais a respeito das infâncias e
seus atores sociais. Nessa perspectiva, Arroyo (2009, p. 124) afirma que “os estudos da infkncia
enfatizam a construção social dessa categoria geracional em alteridade com outras categorias”.
Dornelles e Fernandes (2015, p. 66) apresentam a seguinte reflexão sobre esses estudos e
o diálogo com os diversos campos disciplinares:
[...] a interlocução que a sociologia da infância tem vindo a mobilizar com outras áreas
de estudo, abrindo caminho para se poder falar em estudos da criança, em relações
interdisciplinares que mobilizam um conjunto de áreas de estudo, no campo das ciências
sociais (a pedagogia, a antropologia, a economia, a história e sociologia) e humanas
(literatura, a religião, a filosofia e as artes plásticas), mas também das ciências do
comportamento (sobretudo a psicologia) e das ciências exatas tem sido fundamental,
para compreender a infância vivida pelas crianças a partir delas mesmas, como única
condição para poder dar conta das complexidades de que revestem os seus mundos de
vida na contemporaneidade.
Reconhecer e compreender a criança como ator social em seus modos e mundos de vida
na contemporaneidade possibilita um novo olhar e realce a forma de entendimento da criança e
sua posição nas ciências sociais, considerando-a como participante, com voz e ação integrada no
processo de investigação que participa em parceria com os adultos.
Este se revela um novo paradigma para pensarmos a emergência da participação infantil
como uma questão social, política e científica. Na contemporaneidade, pensar a criança, a
infância, leva a pensar num grupo social com um conjunto de direitos reconhecidos legalmente,
entretanto, pouco efetivados na vida cotidiana, portanto, todo empenho para assegurar a
participação é fundamental já que a participação infantil é um instrumento de luta contra a
exclusão.
A pesquisa com crianças: participação e vozes presentes
Embora estudos sobre crianças não sejam recentes, em pesquisa científica, há uma
tendência contemporânea que busca capturar o ponto de vista da criança, contrapondo a visão de
que “a criança faz parte da pesquisa científica há muito tempo, principalmente na condição de
objeto a ser observado, medido, descrito, analisado e interpretado”, provavelmente pelo fato de,
que durante séculos, a criança ter sido vista como um infante e, por isso, predominavam as vozes
dos adultos (CAMPOS, 2008, p. 35).
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Essa concepção de criança foi se modificando em decorrência do crescimento do número
de estudos que ganharam amplitude no cenário educacional, à medida que se reconhecia a
significativa importância de considerar este ser social, único e dotado de inúmeras capacidades e
potencialidades a serem contempladas e desenvolvidas. Desta forma, o modo como às crianças
foram concebidas e tratadas pela sociedade, no decorrer do tempo, passou por mudanças que
tiveram reflexo, também, na forma como eram retratadas nas pesquisas científicas.
A partir dos avanços dos Estudos da Criança, das contribuições da Sociologia da Infância
e da ressignificação das representações de criança e infância, uma perspectiva contemporânea
emerge considerando as crianças como atores sociais e protagonistas das investigações, de forma
que as pesquisas passam a ser realizadas para e com a participação direta das crianças, com
destaque para a escuta de suas vozes.
No universo das crianças é possível escutar múltiplas vozes presentes nas mais diversas
linguagens infantis. Para tanto, conforme sugere Ferreira e Silva (2015, p. 156), deve-se captar a
singularidade
“das diversas expressões e manifestações humanas”, de modo que o escutar
estabeleça relação com as abundantes linguagens e formas de expressão das crianças e, dessa
forma, estar disponível para a escuta dos gestos, bem como dos movimentos, das expressões
faciais, das caretas, do choro e do riso que compõem as múltiplas linguagens expressivas das
crianças (SILVA; BARBOSA; KRAMER, 2008).
A ênfase na escuta é decorrente do reconhecimento das crianças como agentes sociais,
competentes para a ação, para a comunicação e troca cultural, portanto, é necessário examinar a
infância, considerando-a como condição da criança produtora da história e com as suas
representações dessa infância (KUHLMANN, 2010).
Com relação às crianças pequenas, Campos (2008, p. 38) afirma que “o pesquisador deve
usar recursos, para a expressão das crianças, que sejam adequados à sua faixa etária e sensíveis a
seu ambiente cultural”. Para tanto, faz-se necessário ouvir as crianças em suas múltiplas
linguagens e participar com elas de todas as situações que as envolvem, com metodologias que
considerem as diversas manifestações infantis.
A esse respeito, Campos (2008) descreve algumas formas de atuação das crianças nas
pesquisas, como por exemplo, participando do planejamento e organização do estudo, da análise
e validação das informações obtidas, como também como assistentes e auxiliares da pesquisa.
Nessa perspectiva, pesquisar o protagonismo das crianças é uma oportunidade de captar suas
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vozes e entender as especificidades que as constituem indivíduos com particularidades e
singularidades próprias e em potencial.
Nesse contexto, considerando a pesquisa de abordagem qualitativa, do ponto de vista
metodológico a investigação de cunho etnográfico mostra-se um recurso muito válido no que se
refere à pesquisa com crianças utilizando a observação participante, como instrumento para
produção de dados, tendo, como técnicas de geração dessas informações, as imagens produzidas
a partir de fotografias e filmagens, além do diário de campo.
No que se refere à etnografia com crianças, Corsaro (2011, p. 63) ressalta que é “[...] um
método eficaz para estudar crianças porque muitos recursos de suas interações e culturas são
produzidos e compartilhados no presente e não podem ser obtidos facilmente por meio de
entrevistas reflexivas ou questionários”.
Por essa razão os encaminhamentos metodológicos mais coerentes com uma proposta de
investigação que possibilitam a participação e a presença das vozes das crianças segundo André
(2005, p. 26), p “a observação chamada participante porque se admite que o pesquisador tem
sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”. A
esse respeito, Vianna (2007) afirma que o observador torna-se parte dos eventos que estão sendo
pesquisados, a fim de gerar verdades práticas e teóricas da cultura humana com base nas
realidades da vida diária. O autor apresenta algumas vantagens desse tipo de observação, tais
como:
[...] possibilita a entrada a determinados acontecimentos que seriam privativos e aos
quais um observador estranho não teria acesso aos mesmos; permite a observação não
apenas de comportamentos, mas também de atitudes, opiniões, sentimentos, além de
superar a problemática do efeito do observador (VIANNA, 2007, p. 50).
Complementando, sobre a investigação com crianças, Graue e Walsh (2003, p. 120)
definem que essa ação,
[...] é, e deve ser um processo criativo, e a geração de dados sobre crianças desafia-nos a
ser especialmente criativos. Ao fazer trabalho de campo com crianças, têm de se
encontrar permanentemente maneiras novas e diferentes de ouvir e observar as crianças
e de recolher traços físicos das suas vidas.
Corroborando essa ideia, Souza e Castro (2008, p. 53) contribuem observando que “em
vez de pesquisar a criança, com o intuito de melhor conhecê-la, o objetivo passa a ser pesquisar
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com a criança as experiências sociais e culturais que ela compartilha com as outras pessoas de
seu ambiente”.
Nesse sentido ainda, Delgado e Müller (2005, p. 168) descrevem que “a etnografia visa
apreender a vida, tal como ela é cotidianamente conduzida, simbolizada e interpretada pelos
atores sociais”. Para Sarmento (2011), a etnografia impõe uma orientação do olhar investigativo
para os símbolos, as interpretações, as crenças e valores que integram a vertente sociocultural das
dinâmicas da ação que ocorrem nos contextos educativos. Portanto, para o autor, o que distingue
a etnografia de outros tipos investigativos não é o método, mas o enfoque, ou seja, a orientação.
Assim, em busca de clarificar a questão, com base em Linda Smith
(1982 apud
SARMENTO, 2011, p. 16-17), que sintetiza os elementos metodológicos de uma investigação de
orientação etnográfica:
a) a permanência prolongada do pesquisador no contexto estudado de modo que o
mesmo possa recolher os dados seja por meio da observação participante e ou entrevistas
com os sujeitos envolvidos na investigação; b) o interesse por todos os acontecimentos
importantes bem como os fatos e pormenores do cotidiano do contexto pesquisado; c) o
interesse dirigido para as atitudes e comportamentos dos atores sociais, bem como para
as interpretações que fazem desses comportamentos e para os processos e conteúdos de
simbolização do real; d) o esforço por produzir um relato real dos aspectos significativos
da vida dos contextos estudados; e) o esforço por ir progressivamente estruturando o
conhecimento obtido, de tal modo que o processo interpretativo resulte da construção
dialógica e continuamente compreensiva das interpretações e ações dos sujeitos dos
contextos estudados; f) uma apresentação final que seja capaz de casar criativamente a
narração/descrição dos contextos com o aporte teórico.
Para Sarmento (2011), esses elementos metodológicos fazem todo o seu sentido na
perspectiva epistemológica já que a etnografia visa apreender a vida tal qual ela é cotidianamente
conduzida, simbolizada e interpretada pelos atores sociais nos seus contextos de ação. Para o
autor “a vida é, por definição, plural nas suas manifestações, imprevisível no seu desenvolvimento,
expressa não apenas nas palavras, mas também nas linguagens dos gestos e das formas, ambígua nos
seus significados e m~ltipla nas direções e sentidos por que se desdobra e percorre” (SARMENTO,
2011, p. 17).
Tão importante quanto o que foi discutido até aqui cabe lembrar são as questões éticas,
uma vez que, em pesquisa, há necessidade de se respeitarem esses princípios. É por isso que a
pesquisa deve obter sempre a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa - CEP1. A partir da
1 A Comissão Nacional de Ética na Pesquisa (CONEP) é uma comissão do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
criada pela Resolução
196/96, com a função de implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de
investigações envolvendo seres humanos, aprovadas pelo Conselho. Tem função consultiva, deliberativa,
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aprovação e observação dos princípios éticos, os direitos de proteção das crianças são
salvaguardados pela obtenção do consentimento informado, junto aos adultos responsáveis,
visando à privacidade, anonimato e confidencialidade de todos os envolvidos.
Ferreira (2010, p. 163), com relação à questão do assentimento, compreende “[...] a
aceitação por menores que não têm idade legal para o direito de consentimento; aceitação por
crianças que entendem algumas, mas não todas as questões centrais requeridas pelo
consentimento; aceitação pode significar pelo menos não recusar”.
Para a autora (FERREIRA, 2010, p. 177), a noção de assentimento deve ser “entendida
como processos em curso para obter a permissão das crianças a fim da sua observabilidade ser
aceita por elas”.
Ferreira (2010) observa também que a obtenção do assentimento por parte das crianças
dependerá da relação de confiança estabelecida com o investigador e que a aceitação da sua
presença, além de ser permanentemente ativada e renegociada, ao longo da pesquisa, terá de ser
refletida criticamente em função da receptividade e reciprocidade e/ou rejeições que
desencadeie.
Nesse sentido, Ferreira
(2010, p.
178) complementa:
“ao mesmo tempo, importa
desenvolver e acionar uma sensibilidade ética capaz de interpretar as decisões das crianças de
modo diferenciado e socialmente contextualizado”. Reforçando o que já foi exposto, as
considerações de Buss-Simão (2014, p. 54) são pertinentes, quando destaca que “no kmbito da
pesquisa com crianças, as questões éticas não se limitam a negociar o acesso e permissão, mas
constituem uma parte importante do processo, em todo o percurso da investigação”. Em relação
à simetria ética, esse autor ressalta que,
[...] o pesquisador deve trabalhar de modo reflexivo e cuidadoso, tendo como ponto de
partida a premissa de que os direitos éticos para as crianças são iguais aos dos adultos.
Além disso, deve considerar suas ações, responsabilidades, utilização de métodos
adequados e formas de comunicação em todo o processo de investigação (BUSS-
SIMÃO, 2014, p. 54).
O cuidado e atenção às questões éticas devem permear toda a investigação,
principalmente por se tratar de crianças, nesse sentido, o respeito à privacidade, seu
consentimento ou recusa em participar da pesquisa, a liberdade de expressão das mesmas, a
normativa e educativa, atuando conjuntamente com uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) organizados
nas instituições onde as investigações se realizam.
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autonomia para emitir opiniões sem sofrer influências de outros, o respeito entre todos os
participantes são pontos fundamentais para o bom desenvolvimento da investigação.
Algumas considerações
A presença das crianças nas pesquisas não é algo recente, tendo em vista que esse
interesse científico foi consolidado no final do século XIX, tomando a criança como objeto de
estudo, sobretudo das áreas como a Medicina e a Psicologia (ROCHA, 2008). Conforme exposto
anteriormente, vimos que, no decorrer do tempo, a concepção de criança e infância foram se
modificando, em decorrência do crescimento do número de estudos referentes, e ganharam
amplitude no cenário educacional, à medida que se reconhecia a significativa importância de
considerar este ser social, único e dotado de inúmeras capacidades e potencialidades a serem
contempladas e desenvolvidas e a infância como uma categoria geracional socio-historicamente
construída.
Também o estudo da criança e sua infância sob o viés da Sociologia não é recente.
Todavia, os olhares para as crianças e as infâncias é que foram redirecionados, dando origem a
novas formas de conceituá-las que superam uma análise apenas evolutiva. Dessa forma, as
crianças passaram a ser estudadas a partir de sua própria voz, ocupando um tempo e um espaço
presente, sendo vistas numa perspectiva histórico-social-cultural, como crianças reais, que são, de
fato.
Desse modo, as crianças adquirem o lugar de sujeitos nas investigações, sendo
consideradas como atores sociais, produtores de sentido e participativos das atividades sociais nas
quais estão envolvidas (GOMES, 2009).
Nesse prisma, o modo de contemplar o ponto de vista das crianças nas pesquisas é
relativamente contemporâneo, posto que nas pesquisas científicas eram predominantes as vozes
dos adultos. Portanto, as pesquisas eram realizadas sobre, e não com as crianças, isso porque “as
crianças estão acostumadas a não serem ouvidas ou a serem admiradas sem nunca serem levadas
a sprio” (TONUCCI, 2005, p. 19).
Nesse contexto, uma metodologia de cunho etnográfico é uma possibilidade
extremamente válida quando se trata de permitir a participação e a presença nas investigações,
uma vez que p um recurso que permite “captar o entorno social e as experiências das crianças
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como agentes e como receptores de outras instâncias sociais, portanto, no contexto das relações
com outros agentes” (ROCHA, 2008, p. 48). Por tudo isto, valer-se e se apropriar dessas ideias é
uma forma de permitir que os estudos referentes às crianças partam de suas próprias realidades e
de suas infâncias diversas observando-se os princípios éticos em respeito aos direitos da criança.
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Laura Simone Marim Puerta
Secretaria Municipal de Educação -SEMED | Técnica da
Secretaria Municipal de Educação
Campo Grande | MS | Brasil. Contato:
lauramarim293@hotmail.com
ORCID 0000-0002-1293-3903
Marta Regina Brostolin
Universidade Católica Dom Bosco - UCDB | Programa de Pós-
Graduação em Educação
Campo Grande | MS | Brasil. Contato: brosto@ucdb.br
ORCID 0000-0003-4262-2222
Artigo recebido em: 16 abr. 2018 e
aprovado em: 17 out. 2018.
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