DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n2p371-381
Paulo Freire na FAFI e na Uniso: depoimentos
Sonia Chébel Mercado Sparti
Resumo: Este artigo descreve aspectos da presença do educador Paulo Freire na cidade de Sorocaba, por seis vezes,
como convidado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (FAFI) e da Universidade de
Sorocaba (Uniso), da qual a FAFI foi embrião. Caracteriza-se como depoimento, uma vez que estive
presente em todas essas vezes, tendo oportunidade de gravar sua fala e de transcrevê-la, em cinco delas.
Inclui também informações a respeito da circulação de suas ideias educacionais, entre docentes e
universitários/as dessas duas instituições de ensino superior, durante seu período de exílio. Termina
relatando, suscintamente, meus encontros com ele na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), onde ele foi professor, e minhas lembranças de seu falecimento, em maio de 1997.
Palavras-chave: Educação. Alfabetização. Opressão. Conscientização. Liberdade.
Paulo Freire at FAFI and Uniso: testimony
Abstract: This article describes the aspects of the educator Paulo Freire presence in Sorocaba city, for six times, as
guest of the Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (FAFI) and of the Universidade de
Sorocaba (Uniso) as well, from which FAFI has belong. It has an aspect of testimony, once I was part of all
these six times, having the opportunity of recording and transcripting his speech in five of them. It also
includes information about his educational ideas circulation among teachers and academics of these two
higher education institutions during his exile period. It ends telling, briefly, my meetings with him at
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), where he was professor, and my memories about
his death, in May 1997.
Keywords: Education. Literacy. Oppression. Awareness. Liberty.
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O grande educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire1, mais conhecido como Prof.
Paulo Freire, esteve por seis vezes na cidade de Sorocaba/SP, sendo cinco delas na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (FAFI) e uma delas, na Universidade de Sorocaba
(Uniso), nas seguintes datas: 24 e 31 de outubro de 1980; 07 de novembro de 1980; 07 de
novembro de 1981; 26 de junho de 1985 e 21 de outubro de 1994. Em todas elas eu tive o
privilégio de estar presente e, em cinco delas, de gravar e transcrever sua fala.
No entanto, durante seu período de exílio e antes mesmo da sua presença física ocorrer em
Sorocaba, suas ideias, reflexões e práticas pedagógicas sobre educação e alfabetização de adultos
já povoavam os pensamentos dos/as universitários/as da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Sorocaba (FAFI), principalmente a partir do ano de 1967, data da publicação do seu livro
Educação como prática de liberdade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967). Caloura do curso de
Pedagogia, ganhei de presente de aniversário um exemplar deste livro, dos amigos veteranos do
curso de Filosofia, Lino (José Lino de Oliveira Bueno) e Zeca (José Antonio dos Santos), em
junho de 1967, com a seguinte dedicatória: “Para que a nossa juventude esteja sempre a serviço
da liberdade do povo brasileiro”. Que atualidade!
Além das discussões em sala de aula, nos cursos de licenciatura em Pedagogia, Filosofia,
História, Geografia e Letras, o pensamento de Paulo Freire era aprofundado nas reuniões da JUC
(Juventude Universitária Católica), sob orientação do Padre Osvaldo Bazzo. Durante o período
em que estudei na Faculdade de Filosofia (1967 a 1970), fiz parte da JUC e recebi documentos do
Centro de Documentação do Movimiento Internacional de Estudiantes Catolicos (M.I.E.C.), com
sede em Montevideo, no Uruguay. Dos muitos documentos recebidos em 1968, somente três
deles ainda conservo comigo porque, depois de uma “visita” policial inesperada que Padre Bazzo
recebeu em sua paróquia, e atp por sua orientação, eles foram “enterrados” no quintal de casa,
devidamente embalados com sacos plásticos, em cova de um metro e meio de profundidade,
durante dois anos. São eles: Evangelio y Justícia Social; Los Estudiantes en la Transformacion
de la Sociedad Brasileña; Introduccion a una Pedagogia de la Pastoral Universitaria.
1 Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, PE, em 19 de setembro de 1921. Começou a escrita das palavras
utilizando gravetos das mangueiras, no chão do quintal da casa onde morava. Formou-se em Direito porque, nessa
época, Pernambuco não possuía curso superior de formação de educador. Durante seus 16 anos de exílio na
Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça e África, lecionou em diversas universidades estrangeiras e trabalhou na sede
do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, retornando definitivamente ao Brasil em junho de 1980. Até o
momento é o brasileiro que recebeu o maior número de títulos de Doutor Honoris Causa (41), outorgados por
instituições acadêmicas brasileiras e estrangeiras.
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No primeiro desses documentos Evangelio y Justícia Social
(1968, p.
09) há uma
informação sobre Paulo Freire e seu conceito de conscientização:
Infelizmente, nos estamos dando el lujo de exportar a los grandes brasileños. A partir de
1964 exportamos más de 260 grandes profesores y técnicos; y para los Estados Unidos,
que concentran hoy el cerebro técnico del mundo, exportamos 90 (el pobre enriquece al
rico). Uno de estos grandes brasileños es Paulo Freire, a quien el Episcopado chileno
pidió que lo asesorase en la evangelización realista del hombre chileno, y que hoy se
encuentra ayudando a la liberación democrática de los países africanos. Paulo Freire
decía que conscientizar el hombre es darle uma conciencia crítica, capaz de comprender
las contradicciones del régimen en que vive, de juzgarlo, de conquistar una
independência frente a este régimen, y ser capaz de decidir por sí, usando su derecho de
autodeterminación. Dar al hombre uma conciencia crítica y la posibilidad de
autodeterminación es conscientizalo. Esta conscientización es uma exigencia de justicia
social. Por eso es evangélica, a mi modo de ver.
O segundo deles analisa as características gerais do movimento universitário brasileiro, a
reforma universitária e a sociedade brasileira, citando, inclusive, o fracasso da greve ocorrida no
CRUSP (Centro Residencial da Universidade de São Paulo), em 1965. No terceiro, dentre os
pensadores que embasaram a construção de uma Pedagogia da Pastoral Universitária, podem ser
encontrados: Pierre Furter em sua obra Educação e reflexão (Petrópolis: Vozes, 1966) e Paulo
Freire, em Educação como prática de liberdade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967), dentre
outras obras.
Depois de treze anos desse primeiro contato com as ideias freireanas, e da leitura de
outros livros seus, tive oportunidade de conhecer Paulo Freire e sua primeira esposa Elza2,
também professora, pois a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba houve por bem
realizar o Projeto Vivendo e Aprendendo. Esse Projeto consistiu em três seminários
coordenados pelo próprio Paulo Freire, em três semanas consecutivas (24 e 31 de outubro e 07 de
novembro de 1980), complementados com seu retorno à Faculdade, em 07 de novembro de 1981.
Idealizado pelo Prof. Aldo Vannucchi3, então professor e diretor da Faculdade de
Filosofia, que havia trabalhado com Paulo Freire no Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra,
na Suíça, durante seu período de exílio, esse Projeto também contou com duas exposições
2 Elza Maria Costa de Oliveira, professora primária, primeira esposa de Paulo Freire, nasceu em 1916 e faleceu em
24 de outubro de 1986.
3 Aldo Vannucchi foi professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, embrião da atual
Universidade de Sorocaba (Uniso). Mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma,
licenciado em Pedagogia e autor de diversos livros, foi Reitor da Uniso (de setembro de 1994 a janeiro de 2010)
sendo, atualmente, assessor especial da reitoria e ouvidor da universidade.
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introdutórias sobre educação como prática de liberdade e conscientização, proferidas pelos
professores da FAFI, Wlademir dos Santos4 e Aldo Vannucchi.
Nesse período em que Paulo Freire coordenou esses seminários, o prédio da Faculdade
estava passando por necessárias reformas, do piso ao telhado, e o Prof. Aldo passou a dividir sua
sala comigo, então vice-diretora. Sobre minha mesa de trabalho, uma necessária máquina de
escrever Olivetti, Lexon 80, fato que levava as pessoas a me cumprimentarem como sendo a nova
secretária do Prof. Aldo. Menos uma... Paulo Freire. Na primeira vez em que ele chegou à
Faculdade, acompanhado da esposa Elza, e foi encaminhado à diretoria, Prof. Aldo estava na
biblioteca. Eu os recebi, profundamente emocionada, e pedi para uma funcionária avisar o Prof.
Aldo. Então Paulo Freire me perguntou: “E o que você faz aqui, filha”? Nunca me esqueci desse
primeiro contato e muito me emociono ao relembrá-lo.
Durante o primeiro seminário5, Paulo Freire surpreendeu a todos dizendo que em
Sorocaba residia uma pessoa muito querida sua, o Dr. José Cardoso, que foi seu professor de
Geografia, em Recife. Pessoa muito conhecida em Sorocaba, o paraibano Dr. José Pereira
Cardoso era advogado da Companhia Nacional de Estamparia (Cianê) e um dos fundadores da
Faculdade de Direito local. Particularmente, Dr. Cardoso era pessoa do meu conhecimento
porque sua esposa tinha sido colega de classe da minha mãe, no curso ginasial, e porque eu tinha
sido “mãe de leite” de um neto seu, durante meses, a partir do final de 1977, por ocasião do
nascimento de minha segunda filha. Mas, até então, os sorocabanos desconheciam o fato dele ter
sido professor desse aluno ilustre, em terras pernambucanas, no Colégio Osvaldo Cruz.
Em outro momento desse seminário, falando sobre o hábito dos universitários citarem,
com frequência, o pensamento de muitos autores, mas nada falarem sobre o próprio pensamento a
respeito dos acontecimentos, Paulo Freire afirmou que estava na hora de “abandonar as muletas
de Malinowski”. Outro impacto. Muletas? Bronislaw Kasper Malinowski
(1884-1942),
antropólogo polonês criador da antropologia social, para quem as instituições humanas devem ser
analisadas no contexto de uma cultura, era um dos autores muito citados por professores
universitários e estudantes, principalmente dos cursos de Pedagogia, Filosofia e História. Nessa
4 Wlademir dos Santos lecionou no curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba
(FAFI) e na Universidade de Sorocaba (Uniso). Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), autor da obra A verdade sobre o vestibular (São Paulo: Ática, 1988), nasceu em 1935 e faleceu
em 2007, em Sorocaba, SP.
5 Realizado no Salão de Recursos Audiovisuais da faculdade, situado no quarto andar no prédio da biblioteca.
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época, se uma aula ou uma conferência não incluísse uma citação de Malinowski para sustentar
uma afirmação, não era digna de crédito...
Durante o segundo seminário, Paulo Freire abordou, dentre muitos outros assuntos, a
libertação das colônias portuguesas na África, e a sua participação nesse processo. Falou sobre
Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e também um pouco sobre Angola. No terceiro
seminário esclareceu vários conceitos de sua teoria pedagógica, dentre eles, o de inédito viável.
Perguntado sobre seu método de alfabetização de adultos, e sobre sua experiência a partir
da palavra geradora tijolo, Paulo Freire, na conferência de
19816, iniciou sua resposta
descrevendo o cenário em que uma dessas experiências ocorreu. Disse ele que após um longo dia,
em que trabalharam durante 11 ou 12 horas, os operários da construção civil, nordestinos e
analfabetos, em sua maioria, apelidados de “candangos”, tomavam a última refeição do dia, nos
refeitórios das construtoras. Muitos deles tinham vindo para Brasília, acompanhados das
respectivas esposas, para que trabalhassem na cozinha industrial desses alojamentos. Finda essa
alimentação, aqueles e aquelas que ainda tivessem força e motivação para participarem do
processo de alfabetização, permaneciam no refeitório. A mesa era formada por duas tábuas
compridas, sobre cavaletes. Os bancos também eram de tábuas. Uma pequena lousa retangular,
de cor preta, com, aproximadamente, um metro de comprimento, era iluminada por um único
bico de luz.
A palavra geradora tijolo havia sido escolhida a partir das conversas com essas pessoas,
em dias anteriores, sobre o trabalho que realizavam em Brasília: “eu ajudo a fazer o tijolo”; “eu
transporto o tijolo”; “eu assento o tijolo”. Tambpm já tinham entrado em contato com as famílias
silábicas dessa palavra: ta te ti to tu; ja je ji jo ju; la le li lo lu. Nessa aula descrita por Paulo
Freire, esses trabalhadores e essas trabalhadoras foram convidados, pela educadora, a criarem
palavras a partir dessas famílias silábicas. Então uma mulher analfabeta diz “Tito”, apontando as
sílabas ti e to. “O que p Tito” pergunta a educadora, que tinha acabado de fazer o curso com
Paulo Freire. “Tito, primeiro, p nome de gente e, em segundo, p o papp com que nóis vota”. Essa
mulher analfabeta tinha radinho de pilha e havia ouvido que Tito, o imperador da Yugoslávia,
estava visitando o Brasil. A educadora não corrigiu essa mulher, naquele momento da criação da
palavra, porque seria um desastre se corrigisse e falasse que a palavra correta era título, pois
6 Realizada no Salão Nobre da faculdade, no andar térreo, em tarde bastante chuvosa.
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ninguém mais iria querer formar novas palavras. A correção viria com o tempo, em outro
momento. Paulo Freire, que estava presente nessa aula, conta que, a seguir, um homem se
levantou do seu lugar, foi até a lousa e, olhando para essa mulher, disse: tu ja le. Ele ultrapassou
a palavra e criou a sentença. A mesma observação em relação à correção é feita aqui, pois quando
estiverem aprendendo a conjugar os verbos, descobrirão que o correto é tu já lês, por se tratar da
segunda pessoa do singular.
E assim Paulo Freire foi maravilhando a todos e todas que tiveram oportunidade de
participar desses seminários, pela convicção que permeava seu discurso, pela clareza das
explicações, pelos gestos firmes e marcantes, pelo respeito às pessoas e às perguntas formuladas.
Na condição de vice-diretora da Faculdade (1980-1984) e encarregada do Setor de
Recursos Audiovisuais, providenciei a gravação, em áudio, desses seminários e dessas palestras.
Posteriormente, me encarreguei da transcrição dessas fitas cassete, em mais de 100 horas de
trabalho. A primeira revisão foi feita pelo Prof. Aldo. A segunda, pelo próprio Paulo Freire, que
autorizou sua publicação. E o livro Paulo Freire ao vivo, reprodução fiel das duas palestras
introdutórias, dos três seminários de 1980 e da conferência de 1981, foi publicado em 1983 (São
Paulo: Loyola, 1983). As várias fitas cassete, devidamente identificadas, foram incorporadas ao
acervo sonoro desse Setor, ao lado de outras com as vozes, por exemplo, da escritora Lygia
Fagundes Telles7, do então governador André Franco Montoro8, e do jurista Dalmo de Abreu
Dallari9. E foi com indignação que, recentemente, recebi a notícia de que a caixa com todo esse
7 Lygia Fagundes Telles, nascida em 19 de abril de 1923, na cidade de São Paulo, é escritora, advogada, romancista e
contista. Dentre muitos prêmios recebidos estão quatro Prêmios Jabuti (1966, 1974, 1996, 2001), quatro Prêmios
da Associação Paulista dos Críticos de Arte (1973, 1980, 2000, 2007), o Prêmio Camões (2005) e o Juca Pato
(2008). Das suas obras, Ciranda de Pedra (1955) e As Meninas (1973) podem ser consideradas as mais
conhecidas. Esteve por duas vezes proferindo palestra aos alunos e alunas do Curso de Letras da Faculdade de
Filosofia de Sorocaba, na década de 80.
8 André Franco Montoro nasceu em 14 de julho de 1916, em São Paulo. Formou-se em Filosofia e Pedagogia, na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento e, em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. Um dos fundadores da Juventude Universitária Católica (JUC), lecionou na PUC-SP, foi jurista e
político. Foi eleito senador, deputado federal e 27º governador do Estado de São Paulo (1983-1987). Como
governador tomou decisões que priorizaram a educação. Faleceu em 17 de julho de 1999, em São Paulo. Proferiu
palestra na FAFI, em junho de 1980, sobre Cristianismo e Trabalho, em comemoração ao centenário de nascimento
de Dom José Carlos de Aguirre, primeiro bispo de Sorocaba.
9 Dalmo de Abreu Dallari, jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, nasceu em
31 de dezembro de 1931, em Serra Negra, SP. Em 1996 tornou-se professor catedrático da UNESCO, na cátedra de
Educação para a Paz. A partir de 1972 ajudou a organizar a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz da Arquidiocese
de São Paulo. Em junho de 1980, proferiu palestra na FAFI sobre Cristianismo e Liberdade, em comemoração ao
centenário de nascimento de Dom José Carlos de Aguirre.
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acervo foi
“extraviada”, quando da mudança do campus Trujillo da Uniso para a Cidade
Universitária... Se essas fitas tivessem sido preservadas e convertidas para CDs, hoje seriam
importantes fontes de pesquisas.
Paulo Freire retornaria a Sorocaba em 1985, para receber uma homenagem. No entanto,
no ano anterior, a Faculdade de Filosofia contou com a presença da educadora Madalena Freire10,
filha de Paulo Freire, para uma conversa sobre alfabetização de crianças e lançamento do seu
livro A paixão de conhecer o mundo (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983). Esse livro relata seu
cotidiano escolar com as crianças da Escola da Vila, em São Paulo, embasado por vários
pensadores, dentre eles, Jean Piaget11 e Paulo Freire. Esse encontro ocorreu em 20 de março de
1984, em uma promoção do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia. Nessa
ocasião, eu estava na Chefia desse Departamento e o Prof. Aldo Vannucchi continuava diretor da
Faculdade.
Em 20 de maio de 1985, alunos e alunas do Curso de Pedagogia da Faculdade de
Filosofia, reunidos em Assembleia, decidiram reativar o Centro de Estudos Pedagógicos (CEP),
órgão vinculado ao Centro Acadêmico e muito operante na década de 1960. E aqui cabe uma
explicação. Cada curso da Faculdade de Filosofia, nessa época, tinha seu Centro de Estudos.
Esses “Centrinhos”, como habitualmente eram chamados, tinham por objetivo aprofundar o
estudo de alguns assuntos tratados em aula, sob orientação de um/a professor/a. E assim foram
criados o Centro de Estudos Literários “Guilherme de Almeida” (CELGA); Centro de Estudos
Geográficos “Emmanuel de Marconi” (CEGEM); Centro de Estudos Históricos “Varnhagen”
(CEHV); Centro de Estudos Matemáticos “Osvaldo Sangiorgi” (CEMOS); Centro de Estudos
10 Madalena Freire Weffort, filha mais velha de Paulo Freire, é pedagoga (formada pela USP), professora primária e
arte-educadora. Para alfabetizar crianças utiliza a metodologia de alfabetização de adultos criada por seu pai. A
palavra geradora para as crianças da Escola da Vila, em São Paulo, foi jaca, a fruta desconhecida delas e que
despertou grande curiosidade. Para as crianças de uma classe multiseriada em Carapicuiba/SP, que quase não
comiam frutas, foi pipa, o brinquedo preferido. E para as que residiam em Diadema/SP, em rua não pavimentada,
foi lama, com a qual conviviam em dias chuvosos.
11 Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, na Suíça, em 09 de agosto de 1896. Depois da licenciatura e do doutorado em
Ciências Biológicas pela Universidade de Neuchâtel, foi estudar Psicologia em Zurique e Paris, onde trabalhou no
laboratório de Psicologia de Alfred Binet. Lecionou Psicologia na Universidade de Genebra, de 1929 a 1952.
Publicou vários livros a partir das suas pesquisas realizadas sobre o desenvolvimento cognitivo da criança, sozinho
ou com colaboradores. Em 1955 fundou o Centro Internacional de Epistemologia Genética, que dirigiu até seu
falecimento, em 16 de setembro de 1980. Recebeu 30 títulos de Doutor Honoris Causa, dentre os quais o da
Universidade do Brasil (1949), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma curiosidade: o trem que
liga Genebra e Neuchâtel (uma hora de viagem, aproximadamente) estampa, em seu interior, as principais
afirmações de Piaget.
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Filosóficos (CEF) e Centro de Estudos Pedagógicos (CEP). Esses dois últimos não levavam o
nome de um Patrono, em virtude da falta de acordo entre alunos e alunas para sua definição. No
caso dos alunos e alunas do Curso de Pedagogia, os nomes sugeridos foram: Decroly, Pestalozzi,
Montessori, Froebel, Makarenko, Comenius, Anísio Teixeira, dentre outros. No entanto, nesse
maio de 1985, o nome do educador Paulo Freire foi escolhido por unanimidade.
O passo seguinte foi convidar Paulo Freire para vir receber o diploma de Patrono do
Centro de Estudos Pedagógicos “Paulo Freire” (CEPPF), o que ocorreu um mês depois, em 26 de
junho desse mesmo ano, no salão nobre, em reunião presidida pelo Prof. Aldo Vannucchi, diretor
da Faculdade. Na ata lavrada nessa ocasião, constam os seguintes dizeres:
O Prof. Paulo Freire agradeceu, sensibilizado, a homenagem que estava sendo feita,
reafirmando sua responsabilidade em cada vez mais se preocupar com as coisas da
educação. Enfatizou que com essa homenagem, os alunos do curso de Pedagogia deveriam
ser como ele: um contestador. Premiou o Centro de Estudos Pedagógicos com uma
coleção de suas obras e de seus amigos nacionais e internacionais.
Após essas palavras, Antonio Celso do Amaral Silva, então aluno do curso de Pedagogia e
Presidente do CEPPF, entregou o Diploma de Patrono ao Prof. Paulo Freire. Nessa mesma
ocasião, foi entregue a mim, então Chefe do Departamento de Educação, o primeiro Diploma de
Sócio Benemérito do Centro de Estudos Pedagógicos “Paulo Freire”. Sensibilizada e agradecida,
pedi para Paulo Freire autografar meu Diploma, no que fui prontamente atendida. Infelizmente, o
CEPPF não sobreviveu até o ano seguinte, em grande parte pela falta de tempo dos alunos e
alunas de agora que, diferentemente daqueles da década de 1960, apresentavam outro perfil,
trabalhando durante o dia e estudando à noite. Esse livro de atas do CEPPF foi entregue à
Secretaria da Faculdade e hoje pode ser consultado na Secretaria Acadêmica da Uniso.
Em junho de 1992 (dias 22 a 25), houve uma Assembleia Geral promovida pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Itaici, município de Indaiatuba, no
Estado de São Paulo, para criar a Pastoral da Educação. Convidado a orientar os trabalhos, Paulo
Freire compareceu com parte de sua equipe: Profa. Dra. Ana Maria Saul e Prof. Dr. Antonio
Chizzotti, eles três docentes no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-SP (Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo). Tendo recentemente deixado a direção da Faculdade de
Filosofia por término de mandato (1988-1992), eu participei desse Encontro representando o
Laicato da Diocese de Sorocaba, por indicação de seu Arcebispo Dom José Lambert, também
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Presidente da Fundação Dom Aguirre, mantenedora da FAFI. Nessa oportunidade, levei a Paulo
Freire o abraço do Prof. Aldo e da Faculdade de Filosofia de Sorocaba.
A última vez em que Paulo Freire esteve em Sorocaba foi na tarde de 21 de outubro de
1994, nas dependências do Teatro Municipal de Sorocaba, em uma promoção conjunta da
Universidade de Sorocaba e das Secretarias Municipais da Educação e da Criança e do
Adolescente, da Prefeitura Municipal de Sorocaba. Foi o primeiro grande evento da recém-criada
Universidade de Sorocaba, então com apenas um mês de vida, sendo o Prof. Aldo Vannucchi seu
primeiro Reitor. Formada a mesa diretora dos trabalhos, observei não haver nenhum indício de
gravação dessa palestra, em áudio ou em vídeo, o que considerei imperdoável esquecimento.
Então, da quinta fileira da plateia, onde eu me encontrava, tirei meu minigravador Panasonic da
bolsa, coloquei pilhas e fita cassete e gravei essa palestra.
Tencionava transcrevê-la de imediato, o que não ocorreu por vários motivos: defesa do
segundo mestrado em Psicologia da Educação, na PUC-SP (1995), início do doutorado, nessa
mesma área e universidade (1996), grande número de aulas semanais ministradas na Uniso e na
PUC-SP, função de vice-diretora comunitária do campus da PUC-SP em Sorocaba (1997-2001),
participação de várias reuniões dos órgãos colegiados nessas duas universidades, dentre muitos
outros. Foi somente em julho de 2017, objetivando reorganizar meu acervo de quase 100 fitas
cassetes, que encontrei essa preciosidade. Coloquei a fita no gravador e as vozes do Prof. Aldo e
de Paulo Freire estavam nítidas, como se a gravação fosse recente, apesar dos 23 anos que
haviam passado. Então transcrevi a fita e providenciei sua gravação em cd, para maior
conservação, distribuindo cópias para pessoas interessadas, incluindo a educadora Nita Freire12,
viúva de Paulo Freire.
Paulo Freire não mais retornou a Sorocaba, até seu falecimento em
1997, mas eu
continuei tendo o privilégio de encontrá-lo na PUC de São Paulo, onde ele lecionava no
Programa de Pós-Graduação em Educação/Supervisão e Currículo e onde eu fazia o mestrado
(1992-1995) e, posteriormente, o doutorado em Educação/Psicologia da Educação. Para mim era
um impacto cada vez que eu o encontrava na lanchonete do 3º andar, no elevador, ou no próprio
12 Ana Maria Araújo Freire, também conhecida como Nita Freire, nascida no estado de Pernambuco, é Mestre (1980)
e Doutora (1994) em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo (PUC-SP). Casou-se com
Paulo Freire em agosto de 1988. Professora universitária, atualmente se dedica a organizar, publicar e divulgar a
obra de Paulo Freire, como sucessora legal do educador.
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4º andar13, onde ocorriam as aulas da pós-graduação. Certa vez, um membro do Centro
Acadêmico, interrompendo sua aula, pediu a Paulo Freire autorização para dar um aviso aos
alunos/as. Prontamente ele respondeu que autorizava, mas que perguntaria a seus alunos/as se
eles/as também autorizavam, dando a entender que não poderia decidir pela classe. Esse fato
desencadeou em mim profunda reflexão, pois eu nunca havia agido desse modo. Imperdíveis
também foram os seminários e colóquios com a participação de Paulo Freire, Peter McLaren14,
Moacir Gadotti15, dentre outros.
Paulo Freire faleceu na manhã do dia 02 de maio de 1997. Eu estava lecionando no curso
de Enfermagem da PUC-SP/campus Sorocaba, quando a triste notícia chegou. Paulo Freire foi
velado no saguão do Teatro da Universidade Católica (TUCA), com um giz branco entre as mãos.
Autoridades, reitoria, professores/as, alunos/as, funcionários/as, religiosos, imprensa nacional e
internacional lotavam as dependências do teatro. O então Reitor da PUC-SP, Prof. Dr. Antonio
Carlos Caruso Ronca, foi o anfitrião desse triste acontecimento. O então Presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, esteve representado pela sua esposa, Ruth Cardoso. Paulo Freire foi
sepultado na manhã do dia 03 de maio, no Cemitério da Paz, em São Paulo, após poema
declamado pelo amigo amazonense Thiago de Mello16.
Finda a cerimônia, eu estava trocando rápidas palavras com Eduardo Suplicy17 e Marta
Suplicy18, quando uma mão amiga tocou o meu ombro. “Como p difícil para um professor
enterrar um aluno”, disse-me Dr. José Pereira Cardoso19.
13 Apelidado de Olimpo pelos/as pós-graduandos/as por ser o local da “morada dos deuses”, denominação afetiva
dada aos importantes professores e pesquisadores dos vários Programas de Mestrado e Doutorado, tendo como
referência a mitologia grega.
14 Peter McLaren nasceu em 02 de agosto de 1948 em Toronto, Canadá. Professor da Universidade da Califórnia,
Los Angeles, é autor de numerosa obra, principalmente sobre Pedagogia Crítica. Suas ideias educacionais
convergem com as de Paulo Freire.
15 Moacir Gadotti é diretor do Instituto Paulo Freire, cuja sede está situada na cidade de São Paulo (Rua Cero Corá,
550, 2º andar, conj. 22, Altos da Lapa - 05061-100 - (11) 3021.5536). Doutor em Ciências da Educação pela
Universidade de Genebra, Livre-docente pela Unicamp, nasceu em Rodeio/SC, em 21 de outubro de 1941. É autor
de vários livros.
16 Amadeu Thiago de Mello é poeta e tradutor. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Nasceu na cidade
de Barreirinha, no Amazonas, no dia 30 de março de 1926. Cursou até o 4º da Faculdade de Medicina, no Rio de
Janeiro, trocando essa profissão pela vocação de poeta. Perseguido pela ditadura militar, viveu longo período de
exílio no Chile, onde se tornou grande amigo do também poeta Pablo Neruda. Em seu livro Educação como
prática de liberdade, Paulo Freire colocou o poema “Canção Para os Fonemas da Alegria”, escrito por Thiago de
Mello, em Santiago do Chile, no verão de 1964. Tambpm p dessa data seu belíssimo poema “Os Estatutos do
Homem” (Ato Institucional Permanente), leitura obrigatória dos universitários da FAFI, na década de 1960.
17 Eduardo Matarazzo Suplicy é economista, professor universitário, administrador de empresas e político, tendo sido
senador durante 24 anos. Atualmente é vereador do município de São Paulo, em segundo mandato. Nasceu no dia
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 2, p. 371-381, ago. 2018
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SPARTI, Sonia Chébel Mercado. Paulo Freire na FAFI e na Uniso: depoimentos.
Referências
EVANGELIO y Justícia Social. 1968. (Documento do acervo de Sonia Chebel Mercado Sparti)
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. São Paulo: Paz e Terra, 1983.
FURTER, Pierre. Educação e reflexão. Petrópolis: Vozes, 1966.
SANTOS, Wlademir dos. A verdade sobre o vestibular. São Paulo: Ática, 1988.
VANNUCCHI, Aldo (Org.). Paulo Freire ao vivo. São Paulo: Loyola, 1983.
Obras consultadas
FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
GADOTTI, Moacir. Convite à leitura de Paulo Freire. São Paulo: Scipioni, 1991.
GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez, 1996.
KRÜGER, Marcos Frederico. Thiago de Mello. São Paulo: Global, 2009.
SPARTI, Sonia Chébel Mercado. Apontamentos da autora.
Sonia Chébel Mercado Sparti
Fundação Dom Aguirre | Conselheira da Fundação Dom Aguirre
Sorocaba | SP | Brasil. Contato: chebel.sonia@gmail.com
ORCID 0000-0003-4642-0249
Artigo recebido em: 3 jul. 2018 e
aprovado em: 10 jul. 2018.
21 de junho de 1941, em São Paulo e foi casado com Marta Suplicy, de 1964 a 2001. Esteve diversas vezes na
FAFI/Uniso proferindo palestra sobre economia e política.
18 Marta Teresa Smith de Vasconcellos Suplicy é política, psicanalista e sexóloga. Nasceu em 18 de março de 1945,
na cidade de São Paulo. Foi a 48ª prefeita da cidade de São Paulo (2001 a 2005). Também foi Ministra da Cultura e
do Turismo. Atualmente exerce o cargo de senadora da república por São Paulo. Esteve duas vezes na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (FAFI), na década de 1980, proferindo palestra sobre Educação Sexual,
aos alunos e alunas das diversas licenciaturas, principalmente do curso de Pedagogia.
19 José Pereira Cardoso, nascido em Princesa Isabel, na Paraíba, em 11 de maio de 1911, também professor do
economista Celso Furtado, no curso ginasial, reencontrou Paulo Freire em 01 de julho de 2005.
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