DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n2p357-369
O que Paulo Freire tem a nos dizer
Pedro Laudinor Goergen
Resumo: O presente texto se propõe falar de Paulo Freire desde a perspectiva de alguém que não só conhece sua
obra, mas que também conviveu academicamente com o autor. Não se trata de seguir trilha meramente
subjetivista, mas de construir uma abordagem que respeite a forma de pensar, de escrever e de ser de Paulo
Freire pensador, professor e autor. Sem esta visão peculiar do trabalho de Freire, corre-se o risco de perder
um aspecto importante e, talvez, essencial de sua postura pedagógica cujo sentido maior era superar as
posturas classistas inerentes ao tecido fiado segundo moldes capitalistas. Para Freire, o reconhecimento de
todos os seres humanos como iguais e o incremento de estratégias concretas, práticas e factíveis, para
alcançar este ideal era o sentido maior e último da educação. Duas estratégias parecem a Freire essenciais:
primeiro a conscientização do princípio antropológico da igualdade e, segundo, a busca de estratégias de
superação das diferenças mediante o acesso à cultura pela educação. O objetivo da presente reflexão é
prestar reconhecimento à sua obra e dar azo a alguns impulsos reflexivos a partir de seus pensamentos.
Palavras-chave: Paulo Freire. Educação libertária. Pedagogia do oprimido.
What Paulo Freire has to tell us
Abstract: The present text intends to talk about Paulo Freire from the perspective of someone who not only knows
his work but also lived with the author academically. Is is not a question of following a merely subjectivist
path, but of constructing an approach that respects the thinking, writing and being of Paulo Freire, thinker
teacher and author. Without this peculiar view of Freire’s work, there is a risk of losing an important and
perhaps an essential aspect of his pedagogical posture, whose main purpose was the overcome the classist
postures inherent in the fabric woven according to the capitalist molds. For Freire, the recongnition of all
human beings as equals and the increment of concrete, practical and feasible strategies to reach this ideal
was the highest and ultimate meaning of education. Two strategies seem essential to him: first, awareness
of the anthropological principle of equality and, secondly, the search of strategies to overcome differences
through access to culture through education. The purpose of the present reflection is to give recognition of
this work and give rise to some reflexive impulses from his thoughts.
Keywords: Paulo Freire. Libertarian education. Pedagogy of the oppressed.
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Introdução
Escrever sobre Paulo Freire é para mim tarefa singular porque convivi alguns anos com
ele na Faculdade de Educação da Unicamp. Em muitos momentos, especialmente naqueles mais
informais, beirava o inacreditável ver aquele homem tão conhecido e reconhecido mundo afora
como um dos grandes revolucionários da educação, estar ali, simples, conversador, brincalhão,
desprendido, comendo do prato de plástico e tomando cerveja com estudantes e professores.
Nesses momentos, lembrava dos tempos do meu doutorado na Universidade de Munique quando
nós, estudantes brasileiros, nos reuníamos para ouvir ‘afaste de mim este cálice’ de Chico
Buarque e quase sempre lembrávamos com orgulho de Paulo Freire que, nesta época, costumo
dizer, era tão conhecido na Europa quanto Pelé. Na Europa da década de 70, Paulo Freire era uma
das personalidades mais conhecidas, era mesmo popular. Seu nome circulava não só nas
universidades, mas nas escolas e entre os estudantes. Os jovens sabiam quem era Pelé e sabiam
quem era Paulo Freire. Pessoalmente, escrevo este texto como admirador de um grande
reformador do pensamento pedagógico brasileiro e internacional e como alguém que reconhece a
importância de Paulo Freire para pensar a educação hoje.
Em 1980, quando a ditadura já definhava, Paulo Freire veio para a Unicamp. Juntava-se a
outros intelectuais importantes que lideravam os grandes debates a educação nacional: Luiz
Antonio Cunha, Rubem Alves, Laymert Garcia dos Santos, Maurício Tragtenberg, Roberto
Romano, Antonio Muniz de Resende, Dermeval Saviani, Vanilda Paiva, Moacir Gadotti,
Casemiro dos Reis Filho, Ivany Pino, esta última, então, Coordenadora do Departamento de
Sociologia da Educação onde Paulo Freire foi acolhido. Ao mesmo tempo, lecionava na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e viajava pelo país proferindo palestras.
Foi também nesse período que Paulo Freire foi convidado pelo Prof. Aldo Vannucchi,
então Diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba, para pronunciar três
palestras, realizadas nos dias 24/10/80, 31/10/80, 7/11/80. No ano seguinte retornaria para mais
uma conferência no dia
7/11/81, desta vez a convite do Partido dos Trabalhadores e da
Associação dos Professores. Não importa aqui dedicar mais tempo a referências históricas que
são públicas e facilmente acessíveis. Causa surpresa, embora se explique, que no contexto das
atuais precedências político-econômicas Paulo Freire seja hoje pouco conhecido entre a maioria
dos brasileiros, até no meio acadêmico, com exceção, talvez, da área de educação, mesmo sendo
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ele o Patrono da Educação Brasileira. Muitos, da direita à esquerda, olham com um certo
desdém para o educador brasileiro, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Argentina.
Independente disso, há hoje inúmeras publicações, artigos, livros, dissertações e teses
dedicadas ao estudo do pensamento de Freire, destacando sua relevância e originalidade para a
educação brasileira e mundial. O presente texto não objetiva mais que chamar a atenção para a
atualidade de Freire num cenário político-econômico de profundas desorientações e incertezas,
mas, sobretudo, de normatividade pragmático/econômica que define hoje a subjetividade e as
relações sociais.
I
Quando se fala de Paulo Freire, imediatamente nos vem à mente a história de Angicos,
uma pequena cidade do Rio Grande do Norte onde Freire coordenou um projeto de alfabetização
de adultos que, depois, entraria na história da educação nacional e internacional. A intuição e
percepção inicial de Freire foi a de que o método empregado na educação de adultos era o mesmo
usado na educação de crianças. Isso lhe pareceu não só pedagogicamente inadequado, quanto
mais, humilhante para os adultos. Em 1958, apresentou as bases teóricas de seu novo método de
alfabetização de Adultos no Segundo Congresso Nacional de Educação de Adultos, realizado no
Rio de Janeiro.
Seria inadequado imaginar que as ideias de Freire a respeito da especificidade e
importância da educação de adultos tivessem irrompido como do nada. Ao contrário, havia um
contexto de mobilização política no nordeste brasileiro contra a miséria e a ignorância do povo.
Em 1960, logo no início de seu mandato, Miguel Arraes, o lendário prefeito de Recife, criou o
‘Movimento de cultura popular’ (MPC) que teve Paulo Freire como um de seus participantes e
articuladores.
Os ideais do MPC rapidamente se difundiram no Nordeste, por meio dos círculos de
cultura, associando a cultura popular à luta política de transformação social. A primeira
experiência com o chamado ‘projeto Paulo Freire’ foi realizado no Centro Dona Olegarinha, em
1962. Um ano após, o MEC (quem diria) promoveu o I Encontro Nacional de Alfabetização e
Cultura popular. Iniciativas semelhantes foram lançadas pelo Secretário de Educação de Natal,
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Moacyr Góes com a campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’. Estes projetos
consideravam educação e cultura como instrumentos de libertação.
Nesse mesmo período, a Igreja Católica lançava o Movimento de Educação de Base
(MEB), utilizando a rede de emissoras católicas e a União Nacional dos estudantes (UNE) criava
o Centro Popular de Cultura, abrindo caminho para a politização das questões sociais. Pois, é
nesse contexto que o Secretário de Educação do Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes, e
seus colaboradores idealizaram o Programa de Alfabetização de Angicos e convidaram Paulo
Freire para coordenar o projeto. O ponto de partida foi o levantamento empírico do número de
analfabetos e do seu universo vocabular (palavras e temas geradores). O objetivo geral era
alfabetizar 100.000 adultos e adolescentes até 1965.
O projeto foi lançado no dia 18 de janeiro de 1963 com a presença de Aluísio Alves,
Governador do Estado do Rio Grande do Norte, acolhendo moradores de Angicos para iniciarem
sua alfabetização. A aula inaugural foi realizada no dia 24 de janeiro, sobre o tema “O conceito
antropológico de cultura tendo como palavra geradora ‘belota’”. A primeira turma de 300
alunos concluiu o curso em 2 de abril de 1963, com a presença do Presidente da República João
Goulart e vários governadores do Nordeste.
Sucessor de Darcy Ribeiro, em junho de 1963, Paulo de Tarso Santos assumiu o
Ministério da Educação e, seguindo indicação de seu antecessor, nomeou Paulo Freire diretor do
Plano Nacional de Educação. Em 16 de julho, através da Portaria 195, foi instituída a Comissão
de Cultura Popular com o objetivo de implantar novos sistemas educacionais de viés
eminentemente popular. Paulo Freire foi nomeado presidente desta Comissão e, em 1963,
percorreu o país com o objetivo de estruturar o Programa Nacional de Alfabetização. Em 1964,
Freire lançou o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos, com base na experiência de
Angicos.
Não faltaram críticas vindas de setores conservadores e de adversários do governo
popular de Goulart. Assim, p. ex., por ocasião da passagem de P. Freire por S. Paulo, o jornal
Estado de S. Paulo
(8/12/63) publicou um Editorial crítico com o título
Alfabetizar ou
politizar?’. Na semana posterior, em 21/12/63, o mesmo jornal publicou novo Editorial com o
título ‘Método nazista’, atacando diretamente Paulo Freire.
Este foi o início do breve projeto que logo seria interrompido pela ditadura que assumiu o
poder com o golpe militar de 1/4/1964. Paulo Freire acabou preso por 70 dias numa cadeia de
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Olinda, acusado de subversivo e ignorante. Em setembro deste mesmo ano, como aconteceu com
tantos outros intelectuais, foi condenado ao exílio. Após rápida passagem pela Bolívia, seu
destino foi o Chile, onde trabalhou no Instituto de Capacitacón y investigación de la reforma
agrária (ICIRA). Lá permaneceu por cinco anos, tempo em que redigiu sua mais importante
obra, a Pedagogia do Oprimido (1968). Em 1969, lecionou na Universidade de Harvard nos
Estados Unidos e, na década de 70, foi Consultor da Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra.
Nessa função, teve uma participação importante na educação de Guiné Bissau1, Cabo verde e São
Tomé e Príncipe. Em 1980, após dezesseis anos de exílio, pode retornar ao Brasil e no mesmo
ano passou a lecionar na Universidade Estadual de Campinas e na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Quando Luiza Erundina de Souza, do Partido dos Trabalhadores, assumiu a Prefeitura de
São Paulo, Paulo Freire esteve à frente da Secretaria de Educação da maior cidade do país (1989-
1991). Inaugurou um novo estilo administrativo de viés democrático/popular, muito diferente do
autoritarismo anterior de Jânio Quadros. Foram definidos quatro eixos orientadores da política
municipal para a área de educação: democratização da gestão; acesso e permanência; qualidade
da educação e educação de jovens e adultos.
Paulo Freire retirou-se da Secretaria em maio de 1991, sendo substituído por Mario Sérgio
Cortella. Este ciclo democrático inovador se encerrou com a eleição de Paulo Maluf para
Governador (1993) e a nomeação de Sólon Borges dos Reis como Secretário de Educação. Mais
uma vez, Freire teve suas ideias amordaçadas e seu projeto educacional interrompido por forças
conservadoras que já atuavam durante o regime militar. Era também um período em que
assumiam contornos mais nítidos as influências do neoliberalismo econômico que, desde então,
vem se impondo como a ‘nova razão do mundo’ 2.
Paulo Freire não ensina apenas a ler e a escrever letras e palavras, mas a ler e escrever
(mudar) o mundo. Não ensina apenas a decodificar os signos linguísticos, mas a decodificar o
mundo. Ernani Maria Fiori (1975, p. 3), na sua introdução à Pedagogia do oprimido, destaca
precisamente este aspecto: “A decodificação é análise e consequente reconstituição da situação
1 “Este projeto [...], - como as próprias bases de nossa colaboração -, tinha de nascer lá, pensado pelos educadores
nacionais em função da prática social que se dá no país” (FREIRE, 1977, p. 17).
2 No seu livro, A nova razão do mundo, Pierre Dardot e Christan Laval (2016, p. 326) falam da “modelagem da
sociedade pela empresa” e definem que “o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do
discurso do homem em torno da figura da empresa”.
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vivida: reflexo, reflexão e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem”. A
decodificação faz parte do processo de conscientização que concebe a educação como processo
político e libertador, concebido em três etapas: a investigação biográfica dos conceitos centrais; a
decodificação dos sentidos sociais e a consciência de mundo; e a problematização, ou seja, a
superação da visão mágica pela visão crítico/transformadora do mundo.
Este é o sentido mais amplo e profundo que assume em Paulo Freire o conceito
alfabetizar. Desde um ponto de vista contemporâneo, a força de Angicos não se coloca em termos
de exemplo a ser seguido. Coloca-se, sim, em termos de uma admoestação que chama a atenção
para a necessidade permanente de leituras sempre renovadas da realidade. Vivemos hoje num
mundo muito distinto daquele, embora ainda com problemas humanos similares. Nosso desafio
atual não é alfabetizar, mas desvelar as novas formas de domínio e de exclusão social que a
própria alfabetização carrega em seu âmago. Entendo que a obra de Freire deve ser interpretada
atualmente como metáfora histórica. Uma metáfora que nos ensina a importância da leitura do
sentido humano da história, do reconhecimento da pessoa humana, do seu sentido ontológico, e
da justiça social. Para explicitar melhor o que estou a dizer, valho-me de metáfora famosa, escrita
por Walter Benjamin (2013, p. 14):
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo, que parece
preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos
esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este
aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante de nossos
olhos é para ele uma catástrofe sem fim que incessantemente acumula ruínas sobre
ruínas e as lança aos seus pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir,
a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval
que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar.
Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto
o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos progresso é este
vendaval.
II
Angicos e toda a história posterior do projeto de Paulo Freire é, no meu entender, algo
como uma grande metáfora que representa a luta contra a produção da ruina humana que se
amontoa aos pés do anjo da história. Os escombros que se amontoam, são os escombros humanos
dos excluídos, dos pobres, dos ignorantes, dos analfabetos. As palavras, os projetos, as aulas,
enfim, o empenho de Paulo Freire é a luta para parar ou, pelo menos, amainar a tempestade, cujos
ventos impedem que as asas do anjo da história se fechem.
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Angicos, entendido como metáfora, assume importância no embate contra o
neoliberalismo e sua estratégia econômica de transformar a educação como direito em educação
como serviço; Angicos é uma metáfora que nos fala dos riscos da mercantilização da educação
pública; Angicos é uma metáfora contra a exclusão social; Angicos é uma metáfora a favor de
uma sociedade democrática, justa e inclusiva. O método de Paulo Freire, seu projeto de formação
política, quer impedir que os escombros humanos continuem a se acumular aos pés do anjo da
história.
O momento político, econômico e cultural que atravessa a sociedade brasileira hoje, é, sob
todos os pontos de vista, preocupante. A educação faz parte deste cenário de frustração e
incertezas. O fim da ditadura gerou muitas esperanças que se concretizaram, em termos formais e
legais, na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996. Seguiram-se quase duas décadas de esforços para realizar as metas estabelecidas nestes
dois documentos básicos. Com o passar do tempo e na sucessão dos governos, as esperanças de
mudanças mais profundas e duradouras foram se frustrando pelas resistências e defesas dos
privilégios das elites, avessas à ideia de uma sociedade mais democrática, justa e igual. O grande
sonho de uma educação pública de qualidade para todos esbarrou nos interesses econômicos que
transformaram a educação em prestação de serviços oferecidos no mercado como outro produto
qualquer.
A história mais recente da educação no Brasil é paradigmática desse cenário. As lutas e
conquistas alcançadas e materializadas na realização das CONAES e na elaboração do Plano
Nacional de Educação (PNE) foram, aos poucos, ora de forma ostensiva, ora de forma velada,
sendo subvertidas e esvaziadas pelas estratégias das elites políticas e econômicas conservadoras.
Hoje nos encontramos em um momento de inoperante caos e frustração ao qual nem os mais
pessimistas acreditavam pudéssemos um dia chegar. Não se trata apenas de lentidão e paragem,
mas de verdadeiro retrocesso, visto que não apenas as elites vêm se reestruturando após as
turbulências dos anos 1960 e 70, mas também os setores progressistas perdem seu alento frente às
imposições do pragmatismo político e econômico.
O desânimo se traduz na imputação de culpa a certos grupos sociais, agremiações
políticas ou mesmo figuras públicas individuais. Nos encontramos em meio a turbulências e
torvelinhos de águas turvas, sem saber para onde nos levam. Distraídos pela mídia, tentamos
pendurar nossas esperanças em ganchos que a inteligência do sistema nos aponta, e perdemos de
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vista o fluxo do grande rio que não cessa de nos levar, não sabemos para onde. Este p o ‘chão
fecundo’ em que crescem os salvadores da pátria da direita, da esquerda, da mídia, do mercado
ou mesmo da religião. Esta visão ampla, talvez, nos ajude a entender melhor o curso, as
interconexões e as determinações, bem como as dificuldades em que nos encontramos.
Uma ‘nova razão do mundo’, na expressão de Pierre Dardot e Christian Laval (2016),
assume os rumos no grande cenário do neoliberalismo ou pós-neoliberalismo econômico. Com
esta expressão, os autores se referem à nova gestão pública, ou seja, à gestão que aplica às já
reduzidas incumbências do Estado os mesmos critérios e procedimentos próprios do
neoliberalismo econômico. Sabemos e constatamos que e como se difunde e naturaliza o modo
utilitarista como a nova ética, hoje regente das relações humanas. Internalizado, primeiro velada e
hoje ostensivamente, o modelo empresarial se torna o ‘paradigma ideal’ da convivência: o que é
bom para o mercado, é bom para os seres humanos. Não mais a sociedade, ou seja, as pessoas
moldam o sistema de vida segundo seus interesses e prioridades, mas o modelo empresarial de
mercado se torna o paradigma teórico e prático do pensar e do agir. É a ‘sacralidade do hic et
nunc`, do sistema e da máquina, que transforma os, ainda, úteis seres humanos em fantoches
monetarizados e monitorados, marginalizando e relegando todos os demais à sua própria sorte.
Nos termos de Adorno e Horkheimer (1985, p. 24; 37)
O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o
que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se
comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. [...] O
pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele
próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo.
As águas que transbordam o rio do pragmatismo economicista invadem os territórios do
humano, da educação e da cultura, e afogam as plantas que ali cultivamos com carinho e cuidado,
impregnando-as com os interesses e objetivos danosos da racionalidade econômica. A introdução
da cultura de resultados na educação representa uma verdadeira mutação antropológica. Assim, o
ato de julgamento da atividade educacional que deveria se embasar em critérios formativos, tanto
racionais quanto éticos e políticos, passa a se orientar em medidas de produtividade e eficiência
de corte econômico/empresarial, supostamente neutros.
Tudo é produzido segundo o modelo de mercado: segurança social, aposentadoria, saúde,
educação. Na medida em que se retira toda a força (Kratia) do povo (demos), transforma-se
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profundamente a democracia em agoracracia3. O poder não está mais com o povo, mas com o
mercado. O mercado é considerado a melhor forma de organizar a sociedade, a melhor forma de
governar. Em nome dos interesses econômicos sacrifica-se a saúde, a educação, a seguridade
social. Uma democracia, economicizada por definição, não é mais democracia porque
prevalecem os interesses não da sociedade, do povo, mas da elite econômica.
III
As pessoas não controlam mais suas vidas; quem as controla são as forças econômicas. O
mercado é importante, não resta dúvida, mas é inadequado que ele nos controle, que controle
nossas vidas. Como reação, começam a despontar temas como, alteridade, reconhecimento,
resumidos no conceito ‘o comum’, conforme assinalam em outra obra Michel Dardot os já citados
Dardot e Laval (2017) em seu mais recente livro que agora está sendo editado no Brasil:
Comum’. Na mesma direção, vão as reflexões de Judith Butler (2015) com seus estudos culturais
sobre identidade, sobre a episteme do estranho e da diferença na inserção social. Há uma grande
dubiedade ética para pessoas que vivem em determinado contexto, dominado pelos valores do
mercado, preservar uma postura ética referenciada ao bem comum. Coerência ética, escreve a
autora, “para sujeitos que vivem invariavelmente dentro de um horizonte temporal, trata-se de
uma norma difícil, quiçá impossível, de ser satisfeita” (p. 60). O mercado se torna algo como um
éthos coletivo ao qual há que sujeitar-se em nome da sobrevivência.
Segundo Carlos Alberto Torres (Gadotti; Torres,
1992), Freire se torna ainda mais
importante no cenário atual do embate com o neoliberalismo e seu projeto de transformação da
educação em serviço, estritamente ligado aos interesses econômicos que hoje dominam o mundo.
Por isso, se queremos ser justos com o grande educador brasileiro, se queremos dar conta hoje de
seu legado, não podemos limitá-lo ao momento histórico da emergência de sua teoria, mas
projetar o essencial de suas ideias sobre a tela do presente. Penso, como já disse anteriormente,
que a ideia mais fundamental em Paulo Freire p a ideia de ‘povo’, da democracia, da justiça
social, do direito de todos ao usufruto dos bens materiais e culturais historicamente produzidos e
3 A palavra grega ‘ágora’ tem um duplo sentido. Pode significar o poder do povo em determinar seu próprio destino,
mas pode também significar, mercado. Este é o sentido do termo aqui usado: poder do Mercado.
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elaborados pela humanidade. Os bens culturais e materiais, já ensinava Marx, são conquistas e
realizações que, portanto, devem ser acessíveis a todos.
Podemos acompanhar a biografia de Freire, vasculhar sua vasta bibliografia, ler seus
escritos de frente para trás, de trás para frente ou, então, aleatoriamente e a ideia de ‘povo’
sempre está presente no que efetivamente importa enquanto referência central. Desde o tempo de
Angicos, aqueles trezentos adultos marginalizados e analfabetos eram o povo. Por isto, Freire é
atual: o que enuncia e denuncia ao longo de sua trajetória de vida é o que estamos vivendo: a
desconstrução do conceito de povo, significando o todo da sociedade. O termo ‘povo’ passou a
ter o sentido pejorativo de ‘populaça’, ‘populacho’, ‘povilpu, ‘povarpu’, ‘zp-povinho’, todos
derivados de ‘povo’, tornaram-se sinônimos de ‘escória’, ‘lixo’, ‘gentalha’, ‘multidão’. É isto
que nos ensina Wendy Brown em seu recente livro ‘Undoing the demos’, ou seja, ‘desfazendo o
povo’. Brown (2015) rastreia a devastadora erosão dos princípios e da cultura democrática pelo
neoliberalismo que resulta no desempoderamento do povo. Não mais o povo, mas as elites
econômicas decidem sobre o destino da população. Neste mesmo sentido, a elite reserva para si o
termo ‘alta sociedade’ para distinguir-se dos níveis médio e baixo. Este espelhamento conceitual
da realidade social e econômica confere às teses de Freire grande relevância e atualidade e
relevância para a contemporaneidade.
Mas é preciso cuidado para não restarmos reféns, presos na gaiola de ferro (Weber) do
sistema. Judith Buttler nos lembra que não há sujeito preexistente, pois somos todos constituídos
no discurso, nos atos de fala e de escuta. Neste sentido, Heidegger (2009, p. 174-175) nos fala do
Dasein, do ser aí que designa o ser humano enquanto ser no mundo, ou seja, o ser interhomines,
relacional e comunicativo que lhe permite dizer ‘eu sou eu mesmo’ enquanto um poder-ser, um
ser que nunca está pronto, mas que é, sempre, um ser como projeto de seu próprio futuro. Seres
humanos “não são algo simplesmente dado e nem algo j mão. São como a própria presença
libertadora - são também co-presenças” [...] e “a presença p em si mesma, essencialmente ser-
com.” Ser-com implica horizontalidade no poder-ser. Em termos menos abstratos, podemos dizer
que o ser humano se constitui, se constrói em sociedade, o que, por sua vez, implica condições de
fazê-lo.
Assim nos acercamos de um segundo conceito essencial em Freire que é a
‘conscientização’, por sua vez ligado ao conceito/ideal de ‘autonomia’. O ser humano alienado p
aquele que não tem consciência de si enquanto sujeito de direito, aquele que permite que lhe
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digam quem é e qual é seu lugar na sociedade. Por isso, a genial estratégia de Freire de
conscientização foi o trabalho com o universo vocabular dos conceitos e temas geradores. Genial
porque os conceitos representam o centro da cultura humana e, portanto, o fulcro da
conscientização. Por isso, os temas geradores não são trazidos de fora, mas colhidos da vida das
pessoas para servirem de esteio inteligível para a ideia de conscientização. Este é o ponto
criativo, o pulo do gato de Freire, tão perturbador para o sistema opressor do militarismo que não
viu outra alternativa senão prendê-lo e mandá-lo para o exílio.
Freire era perigoso porque ele e seus colaboradores foram primeiro escutar, conhecer a
realidade, sentir o sentir dos excluídos, para, a partir daí, criar a base de um diálogo constituinte
de subjetividade, de consciência. O que o autoritarismo não tolera é a conscientização dos
oprimidos. Gerar consciência é romper este círculo da alienação, é gerar a ambiência que torna
possível a construção do sujeito por ele mesmo. Para isto, ele precisa do outro, do educador,
daquele que o ajuda a conquistar consciência de si mesmo como sujeito de direitos, como
condição de sua humanidade. Esta é a razão porque o educador é perigoso para o sistema
opressor.
A pior escravidão do ser humano é a escravidão conceitual. Escravidão conceitual ocorre
quando o ser incorpora conceitos que explicam e orientam sua vida introjetando a ideia da
inferioridade, de submissão, de ignorância. Era este sentido profundo de escravidão conceitual,
de escravidão invisível e internalizada que Freire buscava trazer à luz e romper. Na escravidão
conceitual já não há espaço para a reação, para a resistência, para a revolta; é a aceitação da
condição de inferioridade. Paulo Freire quis romper com isso; quis abrir perspectivas; quis dizer
que mudanças são possíveis. Por isso, sua pedagogia é uma pedagogia do possível, da esperança,
da utopia, do rompimento com a fatal escravidão conceitual.
Nesta questão pouco mudou de lá para cá. A razão de porque a Conferência Nacional de
Educação (CONAES) foi esvaziada; porque o Plano Nacional de Educação foi desfigurado;
porque os recursos das áreas de educação, de saúde, dos programas sociais foram congelados por
vinte anos; porque a educação superior foi privatizada em cerca de 80%; porque foi concebido o
Projeto de Lei denominado ‘Escola sem partido’, visando silenciar as vozes críticas ao regime
neoliberal, é a mesma: o domínio, a riqueza, o privilégio e o deleite da elite. É também por isso
que o ethos freireano da conscientização, da igualdade, do direito ao debate e à discussão está
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sendo silenciado. Interessante observar que os defensores do Projeto de Lei ‘Escola sem Partido’
atacam Paulo Freire acusando-o de marxista, seguindo o exemplo dos militares em 1964.
Conclusão
Para finalizar, gostaria de retomar, por um instante, o conceito de luta, tão presente nos
textos de Freire. Sabe-se que o motivo da luta à qual Freire consagrou sua vida não está superado.
Embora não seja o momento de mencionar estatísticas, todos sabemos que o problema da
marginalização, do analfabetismo, da exclusão social e mesmo do analfabetismo, sobretudo o
funcional, está longe de ser superado no Brasil. Muitas coisas mudaram desde a despedida de
Freire, mas na essência os problemas persistem. Hoje vivemos sob uma nova forma de ditadura: a
ditadura do capitalismo neoliberal que, por definição, condena a maior parte da população à
exclusão, à marginalidade, ao desemprego, à fome e à miséria. O capitalismo, sobretudo na sua
versão mais selvagem como a que vige no Brasil, gerou novas formas de marginalização não
menos graves que as anteriores, ainda que sob novas formas, mais palatáveis e estetizadas que
visam desresponsabilizar o sistema econômico e culpabilizar os excluídos por sua ignorância, sua
falta de competitividade.
A educação está sendo profundamente envolvida nesse jogo de vida ou morte; de um
lado, pela oferta de educação de excelência para a elite que pode pagar altas mensalidades e, de
outro, pelo abandono da escola pública, pelo desleixo da formação docente, pelas péssimas
condições de trabalho e pelos salários indecentes. A educação serve ao sistema, a pessoa serve ao
sistema. Enfim, servir ao sistema se transformou no sentido da vida. Paulo Freire se encontra no
divisor de águas entre o ideal dos grandes educadores de pensamento crítico/idealista e a
realidade pragmático/sistêmica. Na visão do seu tempo, sobretudo nos anos iniciais, Freire é
revolucionário/inovador. Na perspectiva sistêmico/economicista de hoje pode parecer ingênuo e
inofensivo. Esse é precisamente o dilema da escola: formar pessoas humanas ou profissionais
competentes. Ambas parecem inarredáveis; o desafio é combiná-las. Ou ampliamos o discurso de
Paulo Freire, na perspectiva do novo momento histórico ou lhe faremos a injustiça de imobilizar
suas ideias no enredo do passado.
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GOERGEN, Pedro Laudinor. O que Paulo Freire tem a nos dizer.
Referências
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Pedro Laudinor Goergen
Uniso | Programa de Pós-Graduação em Educação
Sorocaba | SP | Brasil. Contato: pedro.goergen@hotmail.com
ORCID 0000-0001-9539-9752
Artigo recebido em: 6 jul. 2018 e
aprovado em: 11 jul. 2018.
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