Artigo
As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Nontraditional schools in the 21st century: what schools are these and how does the subject-environment relationship
help their construction?
Las escuelas no tradicionales en el siglo XXI: ¿qué escuelas son estas y cómo la relación sujeto-ambiente auxilia su
construcción?
Lavínia Schwantes - Universidade Federal do Rio Grande | PPGEC/FURG | Rio Grande | RS | Brasil. E-mail:
laviniasch@gmail.com
Juliana Artigas Flores - Professora da Rede Municipal de Santo Amaro da Imperatriz e Governador Celso Ramos |
São José | SC | Brasil. E-mail: juliana_artigas@hotmail.com
Resumo: Este trabalho foi elaborado a partir dos resultados de uma pesquisa de Mestrado. Os objetivos deste trabalho são
apresentar o que são as Escolas Não Tradicionais (ENT); explicar porque são denominadas desta forma; delinear como
as relações entre sujeito e ambiente auxiliam a determinação de seus currículos e, a partir disso, propor possibilidades
de repensar o modelo hegemônico educacional. Para tanto, apresentamos algumas escolas que propiciam às
comunidades outras formas de viver o processo da educação básica. Para apoiar nossos estudos, apresentamos autores
que exploram tal temática no campo da educação e utilizamo-nos de documentários de diferentes escolas ditas não
tradicionais, as quais estão disponíveis com acesso aberto na internet, demarcando três características recorrentes nas
ENT. Também ilustramos, por meio das falas dos sujeitos dos documentários, como tais características nos permitem
pensar as ENT como uma outra possibilidade de escola.
Palavras-chave: Escolas não tradicionais. Currículo. Educação ambiental.
Abstract: This article was elaborated based in the data collected during a dissertation's research. Thus, we briefly present here the
concept of Non-Traditional Schools (NTS), and the reasons that moved us to named it. The purpose of this paper is to
present to the community possibilities to rethink the hegemonic educational model. In this way, we analyzed some
schools that, through their curriculum, provided to the communities other ways of living the basic education process.
To support our studies, we used authors who explore this theme in the education field. In addition, we highlighted three
recurrent characteristics that appeared into the NTS. Moreover, we used these characteristics to illustrate how them
allow us to think of NTS as a other possibility of schooling. Finally, we discussed how this new education, or these
new possibilities of education allow us to rethink the relation of the subjects and the environment.
Keywords: Curriculum. Non-traditional schools. Environmental education.
Resumen: Este trabajo fue elaborado a partir de los resultados de una investigación de Maestría y tiene como objetivos presentar
lo que son las Escuelas No Tradicionales (ENT); explicar porque son denominadas de esta forma; delinear como las
relaciones entre sujeto y ambiente auxilian la determinación de sus currículos y, a partir de eso, proponer posibilidades
de repensar el modelo hegemónico educacional. Para tanto, presentamos algunas escuelas que propician a las
comunidades otras formas de vivir el proceso de la educación básica. Para apoyar nuestros estudios, presentamos
autores que exploran tal temática en el campo de la educación y nos utilizamos de documentales de distintas escuelas
dichas no tradicionales, las cuales están disponibles con acceso abierto por internet, demarcando tres características
recurrentes en las ENT. También ilustramos, en el habla de los sujetos de los documentales, como dichas
características nos permiten pensar las ENT como otra posibilidad de escuela.
Palabras clave: Escuelas no tradicionales. Currículo. Educación ambiental.
• Recebido em 12 janeiro de 2019 • Aprovado em 5 de fevereiro 2019 • e-ISSN: 2177-5796
DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2019v21n1p179-202
Copyright @ 2019. Conteúdo de acesso aberto, distribuído sob os termos da Licença Internaonal da CreativeCommons - CC BY-NC-SA -
Atribuição Não Comercial (https://br.creativecommons.org/licencas/) - Permite distribuição e reprodução, desde que atribuam os devido créditos
à publicação, ao autor(es) e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
1 Introdução
Para iniciarmos é preciso compreender, primeiramente, onde está o nosso ponto de
partida, uma vez que, para compreendermos o caminho, é sempre pertinente observarmos a
caminhada. Assim, elaboramos este artigo a partir da pesquisa denominada "As Escolas Não
Tradicionais e suas possibilidades dentro do currículo", a qual foi realizada pela primeira autora
em forma de dissertação. Nela procuramos explorar cinco escolas localizadas na América Latina
que, por meio de uma série de mudanças currículares, vêm chamando a atenção tanto da
comunidade local como dos demais setores da sociedade.
Adentrando na temática do nosso artigo, iremos explorar dois pontos: o primeiro deles
centra-se em discutir o que entendemos por Escolas Não Tradicionais (ENT). Assim, iremos
apresentar algumas escolas que denominamos ENT, onde traremos para a análise as
características que, por sua vez, nos possibilitam pensá-las como outras possibilidades dentro dos
modelos educacionais atuais. O nosso segundo ponto é ilustrar como, a partir de mudanças
currículares, a relação entre sujeito-ambiente vem sendo construída dentro dessas escolas.
Dessa forma, para iniciarmos a nossa discussão, colocamos em evidência quem seriam os
sujeitos aqui apontados. Nesta análise, demarcamos como sujeitos todos os membros do corpo
discente. Nossa escolha, em trabalhar especificamente com os/as discentes, resulta do fato de que,
embora consideremos que o currículo escolar permeie todas as pessoas imersas no ambiente
escolar, ele ainda é desenhado pensando na construção da identidade dos/das discentes (SILVA,
2015). Assim, nosso olhar estará voltado para esses sujeitos específicos e, através de suas
vivências e de suas falas, pontuaremos como a relação entre eles e os ambientes vêm sendo
repensada dentro dos currículos das ENT.
Seguindo nossa apresentação, acreditamos ser necessário pontuar aqui o que entendemos
por meio ambiente. Para tanto, nos apoiamos nas escritas de Marcos Reigota (1995), nas quais o
autor introduz um debate acerca deste conceito. Em sua obra, Reigota nos proporciona conhecer
diversas definições de meio ambiente que, por sua vez, atravessam a ótica dos diferentes campos
de saberes, como: a ecologia, a sociologia, a psicologia, a geografia e outras. Em seu livro,
Reigota define meio ambiente como:
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
180
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
[...] lugar determinado ou percebido, onde os elementos naturais e sociais estão em
relações dinâmicas e em interação. Essas relações implicam processos de criação
cultural e tecnológica e processos históricos e sociais de transformação do meio natural e
construído (1995, p. 14).
Partindo dessa definição, demarcamos que, ao falarmos de meio ambiente,
compreendemos como espaço determinado por tempo e fronteiras no qual os indivíduos, por
meio das suas relações interpessoais e suas interações com o meio, constroem percepções, ideias
e conceitos que emergem do convívio social e interativo desses sujeitos entre si e com o espaço
habitado. Assim, reforçamos um olhar biológico-social para essa questão, o qual nos permitirá
compreender como os sujeitos das ENT constroem suas identidades por meio da interação com o
meio ambiente.
Quais as razões que nos levam a olhar para isso? Observamos, dentro das ENT, que o
cuidado com o externo, seja ele a sala de aula, a comunidade na qual a escola está inserida, o
pátio, ou até mesmo o material coletivo é uma prática pertinente e recorrente dentro dos
currículos dessas instituições. Assim, observamos, durante nossa pesquisa, que uma das
características trabalhadas na construção da identidade destes sujeitos é o olhar para o coletivo
(FLORES, 2018). A construção desse olhar coletivo dialoga com a ideia central do presente
artigo, ao cuidarmos do externo, daquilo que está para além dos limites do nosso corpo, nós
também construímos a nossa identidade. Em outras palavras, como essa outra forma de relação
com o meio ambientes produz, constrói outras possibilidades de sujeitos dentro do currículo das
ENT.
Por fim, antes de entrarmos em nossas análises, entendemos ser pertinente pontuar nossas
compreensões acerca da temática do currículo. Definir currículo, como Tomaz Tadeu da Silva
(2015) pontua em seu livro, p um ato circular, uma vez que “ela (teoria do currículo) descreve
como uma descoberta algo que ela própria criou” (p. 12). Assim, fazendo uma análise das
palavras de Silva, compreendemos que, no ato de definir o que é currículo, entramos num
processo muito semelhante ao de conceituar teorias, posto que acabamos por explicar algo que
intrinsecamente se autocria a cada instante.
Dessa maneira, demarcamos aqui algumas das características que consideramos basilares
para as compreensões acerca do currículo. Primeiro, compreender que ele está conectado ao ato
de pensar quem somos e onde estamos; assim, sua mutabilidade e seu poder de autocriação são
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
181
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
constantes. O currículo caracteriza-se ainda por todas as relações que são desenvolvidas dentro
do ambiente escolar, tanto aquelas que estão “autorizadas” pelos documentos institucionais, como
as mais silenciosas, a exemplo da divisão das “meninas” e dos “meninos” nas portas dos
banheiros. Pensar o que é currículo é pensar em qual cidadão ou cidadã determinada instituição
almeja formar e, assim, todas as derivações sobre como essa formação irá desenhar a identidade
dos sujeitos ali imersos (FLORES, 2018).
Assim, o currículo escolar pode ser compreendido como um espaço de luta constante, no
qual diferentes forças
(econômicas, políticas, sociais, históricas) atuam constantemente,
disputando numa rede de poderes qual sujeito será formado naquele determinado espaço
institucional. Para além, o currículo atua como uma prática investigativa-formativa que ocorre em
diferentes dimensões - social, política, histórica, econômica e cultural. Dessa forma, sendo uma
prática, o currículo influencia o processo de desenvolvimento dos sujeitos envolvidos, atuando
diariamente na construção da identidade dos sujeitos ali imersos.
Após conceituarmos quem são os sujeitos deste trabalho e por que iremos olhar para as
relações deles com o currículo e com o meio ambiente, seguimos para o momento de partilha, no
qual leitores e/ou leitoras ficarão a par sobre quais inquietações permitiram este trabalho emergir.
Primeiro, pontuamos a nossa afinidade com a temática da pesquisa, já que ao desenvolvê-la
compreendemos que também nos desenvolvemos como sujeitos. Assim, essa pesquisa surgiu e
também se justifica não somente por um interesse pessoal, mas com a intenção de investigação,
construção e partilha dos conhecimentos por nós vivenciados. Num segundo plano, observamos
também a efervescência de tal temática nas discussões acerca das novas possibilidades de
educação ou, ainda, educações.
As ENT acompanham o que Tathyana Gouvêa da Silva Barrera (2016) denomina como
movimento brasileiro de renovação educacional do século XXI, no qual diferentes escolas,
embora não partilhem a mesma identidade, apresentam em suas estruturas curriculares
modificações semelhantes. Como exemplo de mudanças, podemos citar a pesquisa como eixo
central do processo de ensino-aprendizagem, a inclusão das assembleias estudantis como
ferramentas formativas dos sujeitos, o envolvimento da comunidade e das famílias com a escola e
a flexibilização das esferas tempo e espaço nos ambientes escolares (FLORES, 2018). Essas e
outras mudanças fazem parte do currículo das ENT. Assim, iremos explorar essas características
no presente trabalho, apontando como (ou por que) elas nos fazem pensar que estas escolas são
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
182
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
ENT e, ainda, de que forma essas características nos auxiliam a pensar novas possibilidades de
interação dos sujeitos com o meio ambiente.
Assim, justificamos a elaboração deste artigo, uma vez que não somente os estudos sobre
as ENT afloram de um campo emergente de produções, como também a fim de compreender as
relações que nascem através destes outros currículos entre os sujeitos e os espaços que eles
ocupam; esta é uma temática pertinente a ainda pouco explorada. Por fim, como aporte teórico
sobre currículo utilizamos como referencial os estudos produzidos por Silva (2015) e Paraíso
(2015). Com a produção acadêmica de Barrera (2016), Quevedo (2014) e Maldonado (2015)
tivemos uma base estrutural para pensarmos sobre as ENT. Já para pensarmos as relações dos
sujeitos com o meio ambiente utilizamos das escritas de Reigota (1995) e Moraes (2016).
2 Metodologia/coleta de dados/organização do trabalho
Metodologicamente elaboramos este trabalho a partir da análise de quatro vídeos que
compuseram uma série denominada de “O que eles têm para nos dizer?”. Esta série foi produzida
por um coletivo conhecido como
[Re]Considere, no qual os atuantes produziram um
minidocumentário sobre escolas que se propuseram a reorganizar suas estruturas tanto
curriculares como espaciais, escolas essas que denominamos de ENT. Os vídeos apresentam em
torno de 50 minutos e estão disponíveis para livre acesso no Youtube. As gravações ocorreram
em diferentes escolas da América Latina; porém, aqui nos centraremos nas seguintes ENT: Tierra
Fértil e a escola La Cecilia, localizadas na Argentina; o CEFA, coletivo escola-família, locados
na Amazônia (Brasil) e, por fim, a Escola Democrática de Huamachuco (EDH), em Sánchez
Carrión (Peru). Salientamos que ao utilizar uma produção audiovisual de terceiros, corremos o
risco de cair num abismo unilateral, uma vez que ficamos a margem da visão dos autores dos
vídeos sobre tais escolas. Entretanto, como pesquisadoras optamos por assumir este risco,
reconhecendo os limites presentes do nosso corpus de análise.
Para a construção da análise, traremos as falas dos vídeos, que foram transcritos e
organizados por categorias no trabalho de Flores (2018). As falas aqui irão aportar os dois pontos
que exploraremos neste trabalho - quem são as ENT, ou seja, quais suas características que nos
permitem pensá-las assim e como essas mudanças curriculares produzem um outro pensar
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
183
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
envolvendo os sujeitos e o meio ambiente. Dessa forma, traremos por entre as discussões as falas
dos vídeos que nos ajudam a ilustrar nossas observações como pesquisadoras.
3 Quem são as ENT?
Adentrando na temática, gostaríamos de demarcar, primeiramente, que as escolas que
apresentaremos a seguir não se compreendem, nem se identificam como ENT, muito menos são
pertencentes a um movimento único e/ou unificado de renovação escolar. Porém, como Barrera
(2016) bem ilustra, hoje vivenciamos um processo amplo de repensar o modelo educacional
existente. Nesse ato de repensar, nós, como pesquisadoras, observamos um movimento presente
na sociedade, o qual foi defendido por Barrera (2016) como um Movimento Brasileiro de
Renovação Educacional, iniciado no século XXI. Dentro desse movimento observamos uma série
de mudanças temporais, espaciais e também relacionais no interior de algumas escolas. Essas
mudanças são apresentadas para a sociedade principalmente através da reestruturação do
currículo escolar.
Em nossa pesquisa observamos que, embora não haja um consenso identitário por entre
estas escolas nas falas das diretoras, professoras e demais membros do corpo docente, notamos
que as ENT buscam propor novas possibilidades dentro da educação, possibilidades essas que,
por vezes, se contrapõem ao modelo educacional hegemônico. A fala de Ginés de Castillo,
professor e diretor da escola La Cecilia, ilustra tal característica. Ele afirma:
Mas existe um certo consenso em considerar que a educação alternativa tem que ter,
como mínimo, a intenção de não reproduzir o sistema hegemônico. Tem que ser contra-
hegemônica. Que tem que defender a possibilidade de abrir novos cenários. De criar
novos mundos (FLORES, 2018, p. 189).
Seguindo o pensamento de Ginés, María Erhart, professora e fundadora do projeto Tierra
Fértil, retoma outro ponto bem característico nas ENT aqui analisadas. Ela demarca: "Não estou
interessada que meus filhos se adaptem a essa sociedade, mas sim que a transformem” (FLORES,
2018, p. 182). Na fala de ambos os docentes notamos que, para além de buscarem outras
possibilidades dentro da educação, essas escolas compreendem a estreita relação entre sociedade
e educação. Assim, essas instituições estão olhando para além do processo de aprender, pois
visualizam também os possíveis processos de mudança que essa outra educação poderá promover
na sociedade. Valerio Narvaes, também diretor da EDH, salienta essa característica: "É uma
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
184
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
alternativa a educação tradicional, não é mesmo? E me concentrando na educação democrática,
da qual faço parte, creio que é uma nova forma de ver o mundo, e como nós podemos responder a
esse mundo através da educação" (FLORES, 2018, p. 190).
Assim, antes de apresentarmos especificamente as características estruturais das escolas,
trazemos aqui parte da compreensão de identidade das ENT. Embora esse processo ocorra de
forma não unificada, percebemos nestas instituições um desejo de construir novas possibilidades
dentro do campo da educação. Porém, essas possibilidades parecem possuir um anseio mais
amplo que uma "simples" mudança curricular. As mudanças impulsionadas pelas ENT flertam
com a possibilidade de outros cenários dentro da sociedade. Essa característica se faz presente
nas três falas dos diretores. Além disso, a posteriori, quando olharmos para a questão da
organização dos espaços internos e da instituição em si, reforçaremos este ponto. Uma vez que os
currículos das ENT buscam uma inclusão tanto da comunidade que as cercam, como das famílias
que desfrutam do espaço, repensamos a tríade família-comunidade-escola que, por sua vez, está
profundamente conectada com a ideia de pensar outras possibilidades de sociedade.
4 Organização escolar, tempo e espaço: as ENT e suas “pegadas”
Barrera (2016), em seu processo de mapeamento destas instituições, elaborou um quadro
no qual realizou um comparativo entre algumas das características apresentadas nas escolas de
ensino dito tradicional e nas ENT. Este quadro, embora de forma sucinta, nos permite ampliar a
discussão acerca das características das ENT, pois nos possibilita uma visão mais explícita
sobre as diferenças currículares presentes nestas escolas. Vejamos três características destacadas
pela autora:
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
185
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Quadro 1 - Categorias no modelo tradicional e não tradicional
Categoria
Escola Tradicional
Escola Não Tradicional
Organização
Unidade
Rede/Comunidade
escolar
Grade horária, calendário escolar, seriação,
Ritmo do aluno, horário flexível e adaptável,
Tempo
idade
biológica,
horário
rígido,
grandes ciclos ou períodos de formação, tempo
fragmentado e pré-definido.
livre.
Sala de aula, corredores, edifício próprio,
Ambientes diversos, flexíveis e abertos.
carteiras individuais enfileiradas, lousa,
Possibilidade de transitar entre os espaços. Maior
Espaço
cadernos, livros e apostilas.
integração com a natureza. Maior integração com o
território. Mobília adaptável, de uso coletivo,
estimulando agrupamentos. Objetos tecnológicos.
Integração com espaços virtuais.
Fonte: BARRERA, Tathyana Gouvêa da Silva. O movimento brasileiro de renovação educacional no início do
século XXI. 2016. 276 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da USP, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2016. p. 136-137.
Diante do quadro, nos alinhamos ao pensamento de Barrera (2016) para afirmarmos tais
eixos como possíveis "marcadores" destas escolas. O primeiro ponto a ser explorado é questão da
organização escolar. As ENT buscam em seus currículos incluir práticas que trabalham na
perspectiva de horizontalização das vozes (FLORES, 2018). Nisso, observamos a importância
tanto da comunidade que cerca as escolas, quanto dos/das discentes e das famílias que, por sua
vez, são convidadas a participar ativamente do espaço. Essa característica que trouxemos na
discussão acima e retomamos aqui é um dos pontos mais reforçados nas falas presentes nos
vídeos. A exemplo disso, destacamos a fala de João Bocchini, aluno do CEFA, o qual ilustra com
riqueza essa questão: "A gente participa das coisas... Isso faz a nossa escola ser diferente. Tem
pessoas, tem crianças que limpam a sala com vassouras e tem gente que pega o lixo. Tem um pai
que vem e dá aula de jiu-jítsu aqui, junto com a educação física” (FLORES, 2018, p. 204).
A fala de João nos mostra não somente a presença da família dentro da escola, mas
também a relação de pertencimento dos/das discentes com o espaço. Ao convidar a comunidade,
a família e também os/as discentes a participarem ativamente da construção e do cuidado com a
escola, as ENT não somente buscam promover uma horizontalização de vozes no espaço escolar,
mas também a construção de outras relações entre esses sujeitos e o meio ambiente, gerando,
assim, um sentimento de pertencimento desses sujeitos para com o meio ambiente ocupado.
Ainda dentro desse campo de construir relações entre os sujeitos e o meio ambiente,
observamos, nas falas a seguir, outra característica recorrente nas instituições analisadas. No
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
186
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
currículo das ENT, percebemos um eixo que poderíamos denominar de "educação familiar". Por
meio desse eixo as escolas promovem espaços para a participação das famílias dos/das discentes,
nos quais é possível discutir a pedagogia da escola e como ela pode ser ampliada e trabalhada
dentro do contexto familiar/residencial de cada discente. Aqui, retomamos um dos pontos
abordados no início deste artigo: o desejo de extensão do currículo escolar para além das
fronteiras da escola. O que vemos nos relatos é uma inteiração entre comunidade-família-escola
que busca, num olhar mais amplo, o reflexo da onda dessa interação na sociedade. Vejamos a fala
de Valerio Narvaes (diretor da EDH):
Esta forma de educação não seria possível sem que os pais não se envolvam ativamente,
com a proposta educativa que temos. Em consequência, os pais, uma vez por mês, se
reúnem para conversar como está sendo a experiência de seus filhos, ou como podemos
melhorar a escola, e também eles podem vir trabalhar na escola, ou fazem algumas
atividades com fundo econômicos para a escola... E cada vez, há uma participação mais
ativa dos pais e isso me alegra muito (FLORES, 2018, p. 222).
Notamos como as ENT demarcam em seus currículos a importância dos responsáveis,
tendo em vista a abertura para todos se repensarem junto às escolas. A fala de Emiliano Ribón,
padrasto de uma aluna do Tierra Fértil, reforça essa característica: "Bom, o Tierra Fertil é mais
uma escola para pais do que para crianças. É um espaço para as crianças, mas é uma escola para
nós. Porque quem deve desaprender somos nós" (FLORES, 2018, p. 191). Gil Miranda, pai e
participante do CEFA, também ilustra isso quando aponta o reconhecimento da importância da
presença da família dentro da escola: "A gente sempre falava... nós temos que estar lá como pais
presentes também... não só olhando de fora e fazendo aqui. Temos que estar lá no chão da escola
também" (FLORES, 2018, p. 186).
Essa interação entre família e escola é uma característica bem demarcada dentro das ENT,
porém, não se apresenta de forma exclusiva, como veremos a seguir. Na tese de Maria Rosa
Chaves Künzle (2011) a autora apresenta as escolas por ela denominadas como Escolas
Alternativas. Na sua produção, Künzle (2011) traz luz a três escolas existentes, nos anos de 1960
e 1970, em Curitiba, Brasil. Tais escolas eram tidas como espaços de resistência pedagógica, ou,
ainda, escolas com pedagogias progressistas. Característica que surgia, uma vez que, estes
ambientes educacionais se embasavam na Pedagogia Socialista, na Pedagogia Libertária e na
Pedagogia Ativa como aporte teórico curricular (KÜNZLE, 2011). A reflexão trazida aqui seria:
por que abordar tais escolas neste texto? O que vemos, como autoras e pesquisadoras da área, é
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
187
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
um certo alinhamento de práticas currículares vivenciadas nas ENT e nas Escolas Alternativas do
século XX. Como Künzle aponta:
Havia uma preocupação constante com a
“reeducação dos pais”, considerados
responsáveis por educar os filhos diferentemente da maneira como haviam sido
educados. Esta ideia de reeducação, aliás, figurava entre os princípios de esquerda
defendidos pelos fundadores, que deveriam se reeducar como novos homens e mulheres
para viverem na futura sociedade socialista que pretendiam construir. Novos homens e
mulheres subentendia, também, novos pais e mães, capazes de preparar seus filhos para
uma nova sociedade (2011, p. 14).
O trecho acima nos permite observar não somente o ideal do "repensar o adulto" ou,
ainda, a "educação familiar", que citamos acima, mas também destacamos o olhar dos fundadores
das Escolas Alternativas para a possibilidade de outra sociedade. Esse ponto nos lembra,
novamente, as falas dos diretores das ENT que destacamos no início deste artigo. Sonhar uma
outra sociedade está intrinsecamente costurado a pensar uma outra possibilidade de educação.
Observamos esses temas tanto nas ENT do século XXI como nas Escolas Alternativas do século
XX.
Seguindo ainda dentro da questão da organização escolar, notamos outra ferramenta
utilizada dentro do currículo das ENT: as assembleias estudantis. Na busca de exercitar uma
horizontalização de vozes dentro das escolas, as assembleias estudantis surgem como
possibilidade de integração e participação da comunidade, da família e dos/das discentes.
Pacheco e Pacheco (2015) define as assembleias estudantis como “[...] dispositivo de intervenção
direta, a assembleia de Escola é a estrutura de organização educativa que proporciona e garante a
participação democrática dos alunos na tomada de decisões que respeitam à organização e
funcionamento da Escola” (p. 121).
Nos vídeos, observamos crianças e jovens conduzindo assembleias e, dessa forma,
aprendendo não somente a desenvolver-se como cidadão/cidadã politicamente ativo, uma vez que
vivenciar estes espaços é uma oportunidade de experimentar possíveis práticas democráticas, mas
também semeando nos sujeitos noções sobre viver em coletivo, habilidades necessárias para o
convívio em comunidade de forma mais harmônica.
Além disso, os sujeitos, ao trabalharem com a ferramenta da assembleia estudantil,
aprendem a lidar com conflitos, opiniões diferentes, tomada de decisões em grupo e,
principalmente, com o consenso comunitário. As assembleias apresentam um caráter inclusivo,
pois reforçam a proximidade da tríade comunidade-escola-família buscando promover,
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
188
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
novamente, a horizontalidade das vozes. Essa questão pode ser visualizada nas falas de Iaciara
Guillen (aluna do CEFA), de Gabriel Bracho (aluno do CEFA) e de um pai de uma aluna da
EDH, respectivamente:
É uma escola onde os professores e todo mundo escuta o que os alunos querem...
escutam a opinião de todo mundo para melhorar a escola (FLORES, 2018, p. 122).
Antigamente, os professores, p... humm... digamos assim... as “autoridades da escola”
não davam ouvidos pra gente, sabe? Eram as ordens dele... tudo que eles queriam era
tanto e tanto e não ouviam a gente, entendeu? Aí, a gente ficava... ah, que chato. E a
gente tinha que ir porque era obrigatório... Agora não... agora eles estão dando mais
ouvidos para a gente, escutando mais a gente... tipo na assembleia. [...] A assembleia é
muito bom de ter aqui na escola porque a gente pode falar o que precisa melhorar nessa
escola (FLORES, 2018, p. 186).
A mim, me gostou muito o fato de terem uma assembleia, não? Uma assembleia na qual
eles podem eliminar suas contradições. Romper algumas regras que são pautas
necessárias nas atividades humanas (FLORES, 2018, p. 190).
A aluna Margarita Rebaza (da EDH) reforça o processo de horizontalização das vozes na
escola quando ilustra em sua fala a questão de sentir-se respeitada: "Supostamente, nos outros
colpgios,
‘se você p pequeno sua opinião me faz rir’. Mas aqui, nessa escola, os grandes
respeitam a opinião dos pequenos" (FLORES, 2018, p. 220). Nos trechos acima, observamos uma
característica que parece destoar-se nas falas - a questão do direito de opinar. A existência de um
espaço no qual é permito o direito de se expor e de falar o que se pensa, auxilia os sujeitos a
criarem relação com o meio ambiente no qual estão imersos. Uma vez que para falar é preciso
sentirmo-nos seguros e também pertencentes a este espaço/grupo. Embasamo-nos, a frente, nas
reflexões de Paula Almeida Castro
(2015) sobre o tornar-se aluno/aluna e o processo de
construção do pertencimento dentro do espaço escolar. Em suas escritas, a autora aponta que:
Pertencer significa partilhar características, vivências e experiências com outros
membros das comunidades de pertencimento, desenvolvendo assim sentimento de
pertença. É através do pertencimento que os alunos podem legitimar suas identidades em
seus diferentes contextos de convivência, sobretudo na escola (CASTRO, 2015 p. 268).
Desta forma, destacamos a análise que Castro (2015) faz em seu livro a respeito de como
os sujeitos do ensino básico e do ensino superior vão, no desenvolver de suas caminhadas,
criando relações com os espaços educacionais, em especial a escola, e como esses laços vão
estreitando os processos de construção de identidade e de pertencimento com os locais.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
189
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Ao fazermos uma recapitulação das falas expostas, observamos que o sentimento de
pertencimento para com o meio ambiente parece ocupar uma posição de destaque tanto na
expressão das crianças como dos adultos. Compreendendo pertencimento como um ato de
partilha e vivência com os demais membros da comunidade (CASTRO, 2015), notamos que a
organização escolar das ENT proporciona espaços que intensificam as relações vivenciais por
entre a tríade comunidade-escola-família, seja por meio das oficinas e demais práticas que
convidam a família a participar ativamente da escola, seja através das assembleias, espaço nos
quais todos são convidados a partilhar. As ENT promovem, através de seus currículos, espaços
potencializadores para a criação de laços entre os sujeitos e o meio ambiente escola.
Observamos que o direito de opinar é marca recorrente em várias falas que envolvem os
sujeitos das ENT. Um ponto já explorado dentro do currículo dessas escolas é a questão da
prática dos saberes da Comunicação Não Violenta (CNV) tanto nas assembleias como nos demais
espaços escolares (FLORES; SCHWANTES; SILVA, 2018). Porém, trazemos algo novo aqui.
Como autoras, observamos que a CNV vem atuando em diferentes espaços que buscam olhar e o
pensar coletivo. Nesse ponto, trazemos a dissertação de Bruno Emilio Moraes (2016), no qual o
autor pesquisou como, através do cotidiano das comunidades utópicas, outras formas de pensar a
educação ambiental vêm sendo construídas. Adentrando na pesquisa de Moraes
(2016),
observamos que embora a temática de pesquisa em destaque se distancie em parte da nossa, o
autor tece, durante sua escrita, as diferentes possibilidades criadas por essas comunidades
utópicas que também buscam uma outra forma de pensar o viver em sociedade.
O que nos chama atenção aqui é como certas práticas vivenciadas dentro de ambos os
espaços convergem e dialogam por diferentes momentos. Como Moraes (2016) aponta, nas
comunidades estudadas os sujeitos buscam tomar as decisões de forma coletiva, por isso a
ferramenta da assembleia por vezes surge como possibilidade. Outra convergência que
observamos é o processo de tentativa de horizontalização das vozes; embora ainda se mantenha
uma hierarquia (tanto nas ENT, como nas comunidades utópicas), ela se apresenta de forma
flexibilizada, em construção e reflexão diária (MORAES, 2016; FLORES, 2018). Esse processo
de horizontalização, por sua vez, é recorrente da descentralização de uma figura única de
liderança para um pensar coletivo, um pensar comunitário, questão novamente presente tanto nas
ENT como nas comunidades utópicas. Ademais, vemos também a temática da CNV apresentada
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
190
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
em ambos os espaços, como uma tentativa de pensar uma outra forma de se comunicar. E por que
isso? Por que buscar outras formas de comunicação?
O que notamos, em verdade, é que pensar em outra sociedade, numa outra forma de viver
em coletivo, exige que tenhamos que repensar nossos posicionamentos, hábitos, costumes,
crenças, culturas e verdades. Dessa forma, a CNV, as assembleias, a "educação familiar", entre os
demais pontos que levantamos, apenas surgem nos currículos escolares das ENT e no cotidiano
das comunidades utópicas como tentativas de repensar a forma como nos construímos como
sujeitos dentro destes espaços, dentro da sociedade. Para além, retomamos aqui o trabalho de
Moraes (2016) pois observamos que, mesmo o autor tendo um olhar para um outro objeto de
pesquisa
(as comunidades utópicas), numa perspectiva mais ampla, o pesquisador buscou
registrar, dentro do ambiente acadêmico, a vivência e as experiências de sujeitos que pensam
novas formas de resistir e relacionar-se no mundo atual. Numa outra esfera, as ENT, dentro de
suas limitações e de seus processos identitários, partilham das ferramentas exploradas por estas
comunidades e, por sua vez, também sonham, buscam e/ou almejam pensar uma outra sociedade.
Uma outra forma de pensar o coletivo.
Assim, esse deslocamento do eixo central da unidade escolar, para pensarmos a
comunidade e a rede escolar como possibilidade de organização da instituição, permite que
emerjam novas formas de pensar e/ou relacionar-se com o meio ambiente. E, por conseguinte,
destas outras formas, outras possibilidades de sociedades afloram por meio das vivências, dos
atos, das experiências e das resistências dos sujeitos que compõem estes espaços. Como demarca
Reigota "Em transformando o espaço, os meios natural e social, o homem também é
transformado por eles. Assim, o processo criativo é externo e interno (no sentido subjetivo). As
transformações internas e externas caracterizam a história social e a história individual [...]”
(1995, p. 15).
Tempo, Tempo, Tempo
Seguindo nossa análise, outra característica apresentada pelas ENT é a questão do tempo
dentro do currículo escolar. Para trabalharmos este tópico tomamos emprestada de Caetano
Veloso a letra da música "Oração ao Tempo" (VELOSO, 1979). Na música, o autor brinca por
entre as rimas, elaborando um monólogo entre uma pessoa e a entidade tempo. Já demarcando o
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
191
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
princípio do monólogo, temos: "És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho, Tempo
(3x), vou te fazer um pedido... Tempo (3x), compositor de destinos, tambor de todos os ritmos,
Tempo (3x), entro num acordo contigo" (VELOSO, 1979). A reflexão de Caetano sobre a esfera
do tempo e de como ele reflete, dialoga e conduz nossas vidas não é uma reflexão individual e
pontual do autor. Nos tempos atuais, a temporalidade é fator marcante na vida dos indivíduos,
tendo um peso quase tão grande quanto a questão monetária. Diante disso, o leitor ou a leitora
talvez esteja se questionando: por que falamos do tempo? Qual seria a relação das ENT com as
noções atuais de temporalidade?
O que vemos no currículo destas escolas é, primeiramente, uma tentativa de criação de
novos vínculos com a temporalidade dentro do processo de aprendizagem. E como vemos isso?
Por meio de um olhar atento às práticas curriculares destes espaços. Nas ENT, observamos uma
série de "ferramentas" que nos auxiliam a pensar como nos relacionamos com o tempo. Um dos
pontos que observamos é a questão da autogestão dentro do currículo. Para isso, trazemos o
conceito de autogestão pedagógica presente na Revista Vozes (1973), escrito de forma coletiva
por diversos autores. Desta forma, estes no convidam a pensar que:
A autogestão pedagógica é um sistema de educação no qual o mestre renuncia a
transmitir uma mensagem. Os alunos, em nível de classe ou da escola, dentro dos limites
da situação escolar atual, decidem a respeito dos métodos, das atividades escolares e dos
programas de formação. Na pedagogia institucional ou autogestão pedagógica, o mestre
não é um transmissor de informações, mas analista do processo de aprendizagem ou
perito à disposição da classe que deve encontrar e desenvolver suas instituições internas
próprias. As fórmulas de autogestão pedagógica podem variar segundo as situações, as
idades, etc. (VOZES1, 1973 apud VIANA, 2008, p. 41).
Frente à compreensão do conceito de autogestão como possibilidade de gerir, organizar,
pensar e, por vezes, escolher os passos pedagógicos que serão dados na caminhada do
apreendente, sendo ainda este sujeito (o/a apreendente) uma das centralidades do processo,
entendemos que essa prática curricular permite que os/as discentes construam seus currículos
diariamente e, assim, aprendam num ritmo não seriado, respeitando a questão da temporalidade
individual de cada um. A fala de María Oriolo (educadora na La Cecilia) nos ilustra a questão:
1 Revista Vozes, ano 67, n. 4, maio 1973, seguindo um dos pressupostos da análise institucional, não teve autoria
expressa pois acredita que a autoria seria o coletivo. Os autores são os que colaboraram com a Edição especial
desta revista, voltada para esta corrente: Marco Aurélio Luz, Célio Garcia, Chaim Katz e Georges Lapassade.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
192
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Se tivermos que nomear algumas características que nos diferem das outras escolas
seriam: a flexibilidade que temos; a atenção personalizada para cada criança [...]. Temos,
também, as salas abertas, o que permite a criança gestionar/participar de outra atividade.
Em um grupo mais avançado, por exemplo. Também temos autogestão. As crianças
gestionam as próprias atividades. Deixamos que as crianças escolham, por seus próprios
interesses, gostos e desejos... seus jogos e atividades. E deste jogo realizamos as
aprendizagens pedagógicas (FLORES, 2018, p. 199).
Como citamos anteriormente, na autogestão, além dos/das discentes conseguirem
trabalhar a esfera do tempo num sentido mais individual (pensando no processo de ensino -
aprendizagem), eles também começam a conhecer seus próprios ritmos, limites e potenciais de
trabalho, ao exercitarem tal prática. Dessa forma, outra esfera emerge dentro desse processo: a
responsabilidade do/da discente dentro da própria caminhada educativa, onde ilustramos na fala
de Laurato (aluno de La Cecilia):
Desde que entrei na escola, creio que foi em 2014 [...], me adequei a uma nova forma de
vida. Porque... era difícil chegar e, ou melhor, era difícil, mas ao mesmo tempo
prazeroso, chegar e dizer: bom, o que eu tenho para o dia de hoje? Cheguei a estar
conversando durante todo o dia, cheguei a estar pensando sozinho durante todo o dia,
cheguei a estar tocando bateria o dia todo aqui dentro difícil (FLORES, 2018, p. 211).
Nessa reflexão, o aluno aponta como o processo de se acostumar-se com a possibilidade
de ordenar a própria caminhada de aprendizagem parece difícil e prazerosa ao mesmo tempo.
Laurato também aponta para a necessidade de estar atento aos seus processos, pois, como ele bem
ilustra, é fácil, no início dessa construção, os/as discentes se perderem na noção do tempo e das
responsabilidades e usufruírem, assim, de um ócio exacerbado. Essa reflexão sobre a vivência do
ócio em paralelo com construção dos saberes também emerge na fala de Azul Kowai (aluno de
La Cecilia):
Eu creio que esse projeto é bem-sucedido se o aluno está disposto a aproveitar a
oportunidade. Porque, por exemplo, no primeiro ano que entrei, não fazia nada. Entrava
e ficava nas árvores olhando para as nuvens e... ou ficava à toa, basicamente. Mas
depois, você começa a se dar conta que isso não te leva a nada. Que seria bom que... faça
alguma coisa, aproveitarmos o que se tem aqui. Ou em qualquer lado, digamos, fica
como uma lição de vida (FLORES, 2018, p. 211).
No trecho acima, observamos a questão da criação de uma outra possibilidade de relação
com a temporalidade. A autogestão impulsiona nos sujeitos discentes uma noção de
responsabilidade no que tange ao processo de ensino-aprendizagem. Como vemos, nas falas
ocorrem dois processos. Primeiro, os/as discentes, ao mergulharem nessa experiência educativa,
demonstram necessidade de explorar o campo do ócio. Dessa forma, eles/elas relatam que, por
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
193
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
vezes, permaneceram longos períodos desfrutando de atividades que não necessariamente os
auxiliariam a "construir" sua caminhada pedagógica. No segundo momento, eles refletem, no
desenrolar dos vídeos, a seguinte questão: o que eu estou fazendo com o meu próprio tempo?
Aqui estaria o que nós acreditamos ser uma nova percepção sobre se relacionar com a
temporalidade.
Nos moldes atuais de educação, a esfera tempo apresenta-se para os/as discentes, em
determinados espaços, de forma previamente estabelecida. Nas escolas, ao iniciarmos o ano, as
disciplinas já estão fragmentadas e com seus horários previamente organizados. Muitas vezes, ao
iniciarmos as atividades escolares, os/as docentes ingressam nas primeiras aulas apresentando
aos/as discentes o cronograma escolar, no qual as atividades costumam estar previamente
programadas, pensadas, selecionadas. Aqui trazemos algumas das reflexões que Michel Foucault
(2014), no livro Vigiar e Punir, aponta como o disciplinamento dos corpos, o qual ocorre também
através da métrica do tempo, da padronização dos corpos pela busca por médias. Refletindo ainda
sobre os escritos, trazemos as questões sobre os saberes que construímos pelo não dito.
Retomando nossa reflexão inicial, o que deveríamos pensar é: como aprendemos a nos relacionar
com o tempo nas instituições escolares entendidas como tradicionais? Qual o saber que aprendo?
Quando refletimos que a organização temporal dentro da educação tradicional costuma
ser uma esfera que vem de "fora" e "pronta", é compreensível observar a dificuldade dos/das
discentes ao mergulharem numa esfera educativa como as ENT. A reflexão que emerge é: o que
fazendo estamos fazendo com o nosso tempo? Afinal, pensar o tempo é algo novo para os/as
discentes. O que observamos, em grande parte das instituições escolares tradicionais, é que a
esfera tempo é apresentado para os/as discentes de forma previamente estruturada e a decisão que
os/as cabe é se adaptarem (ou não) às exigências temporais estabelecidas.
Entretanto, o que vemos nas ENT seria um outro movimento. A reflexão que surge é:
como você vai organizar este seu tempo? Uma vez que, mesmo através da autogestão, as crianças
e jovens ainda estão num ambiente de escolarização e, dessa forma, espera-se que desenvolvam e
aprendam saberes deste âmbito. Assim, a reflexão que fica seria: qual a diferença aqui
observada? Para pensarmos sobre isso, retornamos a música de Caetano, na qual em seu
monólogo conta: "Por seres tão inventivo e pareceres contínuo, Tempo (3x), és um dos deuses
mais lindos, Tempo (3x), ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos, Tempo (3x), num outro
nível de vínculo, Tempo (3x)" (VELOSO, 1979). Nas demais estrofes musicais, Caetano brinca
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
194
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
com as palavras, elogiando o deus Tempo e pedindo a ele benefícios. Acreditamos que essa
música desenha, com certa leveza e ironia, a relação do tempo que nós, seres humanos imersos na
sociedade, construímos com o tal deus Tempo. Sua força, sua vitalidade, sua rapidez, sua
presença, como observamos no princípio da música, traceja alguns limites em nossas vidas
humanas. O tempo, assim como outras esferas, é uma ferramenta de controle dentro dos
processos pedagógicos. Nesse sentido, as ENT emergem com outras possibilidades de relação
com este tão almejado deus. Dentro do currículo destas instituições, observamos outras
possibilidades de nos relacionarmos com a esfera temporal dentro do processo de ensino-
aprendizagem. O tempo de aprender sai de uma esfera pré-programada para uma construção entre
possibilidades, desejos e limites, pensados juntos, através da relação discentes e docentes.
Para concluir nossa análise sobre a temporalidade dentro das ENT, apontamos que dentro
dessas escolas é possível observar diferentes possibilidades de pensar o tempo no processo de
ensino - aprendizagem. A centralidade está costurada à questão da autogestão curricular. Nesse
sentido, observamos que um dos ganhos destas escolas é a dimensão da importância do tempo
individual e também do tempo coletivo dentro da esfera currículo. Ou seja, na busca por um
equilíbrio entre as necessidades individuais de cada discente e as necessidades temporais das
esferas educacionais, elabora-se um currículo que faz pensar a seguinte pergunta: como posso
organizar meu próprio tempo? Por fim, trazemos a fala de Brishit Mendez, aluna da EDH:
Cada um aprende quando quer, não quando querem obrigá-lo. [...] Em muitas ocasiões,
tenho visto em meus irmãos que estudam numa escola normal e eles têm que fazer as
tarefas e tudo isso. E eles não gostam, pelo que vejo... então eu digo a minha mamãe: -
Mamãe, não os obriguem se não querem. (a mãe): - Mas eles têm que aprender. (a
aluna): - Mas não os obrigue. Eu aprendi a escrever aos 7 anos, mas porque eu quis. Eu
aprendi a ler aos 7 anos, mas porque eu me interessei (FLORES, 2018, p, 200).
A reflexão da aluna, aos nossos olhos, aponta a beleza do caminho de percorrer
determinados processos. Brishit reforça algumas das ideias de Paulo Freire (2013), apontando
que o processo de ensino - aprendizagem é dialógico, é relação que se constrói a cada dia, é
reconhecimento do ser, dos saberes e do espaço que este ser habita. Assim, respeitar a
temporalidade individual é necessário para que possamos pensar em uma aprendizagem
significativa. Para além dos saberes científicos, estamos trabalhando nos saberes do ser, nos quais
insurge a necessidade gritante de reconhecimento do outro dentro deste processo.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
195
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Meu, Teu, Nosso? Formas de pensar o espaço
Seguindo para o nosso último ponto de discussão deste artigo, adentramos na questão dos
espaços físicos das ENT. Um detalhe pertinente que observamos nestas escolas é que, com a
mudança curricular que migra dos processos de seriação para a autogestão pedagógica, finaliza-
se, também, a questão das salas de aula divididas por séries. No lugar dos espaços seriados
surgem salas de aula temáticas, espaços esses para uso comunitário de estudo, ambientes mais
abertos e mais plurais no sentido de uso e ocupação. As falas de Tania e Sulma, ambas
educadoras na EDH, ilustram tal questão:
Eu aqui trabalho, majoritariamente, na sala arco-íris. Uma sala onde se pode trabalhar
com artes, pintura, desenho, tecidos... As crianças fazem suas pulseiras, brincos. Eles
fazem seus próprios trabalhos. Fazem... desfazem... através disso, eles vão trabalhando,
onde têm outras ideias e vão criando (FLORES, 2018, p. 128).
Por exemplo, na minha sala, na sala vermelha, que é a sala da matemática, as crianças
que vão têm todos os tamanhos. Não é que vai uma certa idade e o resto não ingressa.
Todos vão, mas o material é de acordo com a idade que ele tem para que trabalhem
(FLORES, 2018, p. 201).
Como vemos, as salas temáticas funcionam como ambientes de aprendizagem e podem
ser exploradas de forma individual pelos/pelas discentes, bem como em pequenos grupos.
Normalmente, apresentam um ou mais campos de saberes específicos a serem explorados,
apresentando, assim, um ou mais professores responsáveis pelo ambiente. Essas diferentes
possibilidades permitem que as/os discentes explorem o mesmo espaço de diferentes formas,
como ilustra a fala de Gleydson Nascimento, aluno da Escola Waldir Garcia, pertencente ao
projeto CEFA:
A professora disse que... a gente ia juntar os dois primeiros anos em duas salas...
Assim... a gente quebrar essa parede e juntar... tipo um salão... A professora disse que...
as matérias tipo matemática aqui numa mesa, português, arte, ciências... nas outras
mesas... Aí, você está sentado na matemática mas quer ir para a de arte... aí você vai na
professora e fala... Professora, eu quero estudar arte! Aí você vai para a de arte. Quer
fazer arte e ir para ciência? Vai para ciência... (FLORES, 2018, p. 136).
Künzle (2007), em seu artigo, analisa escolas que promoveram mudanças espaciais na
estrutura escolar com o intuito de repensar a questão do espaço-sujeito-aprendizagem. A autora,
em sua análise, aponta que a questão da organização dos espaços está conectada a pensarmos
outras possibilidades de currículos e que, nestas escolas, ao vivenciar outras propostas, emerge da
experiência o pensar do indivíduo em relação ao eu coletivo.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
196
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Reportamo-nos às observações de Künzle a respeito das ENT, trazendo a fala de
Emanuely Ferreira, aluna da Escola Municipal Waldir Garcia (pertencente ao projeto CEFA), na
qual aponta para a questão sobre como, através das mudanças espaciais, ela começa a perceber
seus colegas e a reconhecer, pelas práticas, a vivência em grupo:
A gente começou a fazer tempo integral, então a gente estuda de manhã e de tarde.
Colocaram mesas novas (mesas circulares) nas escolas porque antes eram carteiras
(cadeiras individuais). E era mais difícil da gente conseguir perceber os alunos, né? Mas
agora é bom as mesas, porque além da gente trabalhar em grupo, a gente ajuda aqueles
que precisam (FLORES, 2018, p. 185).
Como observamos, as salas temáticas e/ou os ambientes compartilhados impulsionam nos
sujeitos o aprender a trabalhar de forma coletiva, trazendo para dentro do currículo escolar
saberes relacionados à partilha. Por sua vez, o partilhar movimenta nos sujeitos noções de viver
em coletivo, trazendo para a esfera da aprendizagem questões relacionadas a limites e respeito,
promovidas tanto na esfera do espaço comum/coletivo, como na esfera do outro dentro das
relações. Essa questão é apontada na análise de Künzle (2007) e também em nosso trabalho,
como apresentado por Alex Miguel, aluno da escola EDH, o qual relata que, através de suas
palavras, ele reconhece a importância do cuidado ao partilhar os espaços: "Você pode estar por
todos os lados, mas sempre consciente dos demais, para não incomodar, porque, às vezes, estão
trabalhando [...], então você passa, e, às vezes, interrompe o trabalho deles” (FLORES, 2018, p
131).
O que podemos perceber destas mudanças espaciais e de como os sujeitos se relacionam
com os ambientes? Primeiro, notamos nas falas a questão da mobilidade dos/das discentes por
entre os ambientes. Esse fator costura-se aos demais pontos já levantados aqui. Retomando,
lembramos das relações que buscam uma horizontalidade e as outras formas de pensar/organizar
o tempo. Onde estes três eixos dialogam? É interessante perceber que, para que exista a
mobilidade por entre os espaços, é necessário que repensemos o que cada espaço representa na
escola. Assim, a autogestão curricular só consegue existir quando repensamos os ambientes
escolares e como podemos explorá-los dentro da instituição. Thelmelisa Lencione Quevedo
(2014), ao estudar o Projeto Ancora (ENT locada no estado de São Paulo, Brasil), aponta para a
interconexão entre a questão da reorganização dos espaços com a autogestão no currículo:
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
197
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Como não há salas de aula, também não há aulas: para aprender os alunos desenvolvem
Projetos de Aprendizagem, ou estudam temas de interesse próprio, individualmente ou
formando pequenos grupos de interesse comum
[...]. O modo de trabalho é
predominantemente pesquisa e a maior parte das pesquisas acontecem na biblioteca,
instalada numa parte externa, onde há livros para todos os níveis de aprendizagem
(QUEVEDO, 2014, p. 70).
As falas de Giovanna Cardoso e Vinícius Cesar, ambos discentes do coletivo CEFA, nos
reforçam a ideia que Quevedo (2014) apresenta:
Não... tipo, assim... a gente pode aprender sentado ou andando. É... a gente pode
aprender de qualquer jeito. É... tipo, assim... se a gente quiser conversar, pegar uma
dúvida com o colega a gente pode. A gente pode aprender em cima de uma árvore. É...
só tem que ter cuidado para não cair (risos) (FLORES, 2018, p. 204).
Ao analisarmos os vídeos notamos, principalmente, como a reorganização dos ambientes
escolares permite a mobilidade dos/das discentes por entre os diversos espaços da escola. Essa
mobilidade está, como apontamos acima, apoiada na autogestão pedagógica que, por sua vez, nos
convida a pensar não somente a nossa relação com o tempo, mas também a nossa relação com os
espaços escolares.
É interessante salientar como diferentes ambientes - jardins, bancos, quadras, entre outros
espaços - tornam-se potentes, não somente por ofertarem um espaço de estudo, mas também por
construírem novas identidades para com os/as discentes. Ao estudar no pátio, por exemplo, o/a
discente reconstrói dentro de si a imagem ou o ideal do espaço de aprendizagem. Ampliando,
assim, o seu horizonte, pois poderá vir a compreender que tanto a sala cheia de livros como o
jardim pode e deve ser um espaço potente para a construção do conhecimento, como bem ilustra
a aluna Brishit, da escola EDH: "Para mim, estudar é ser livre, porque estamos nos espaços que
nós queremos, podemos escolher. E se não gostamos de fazer nada podemos ficar livres e fazer
outras muitas coisas importantes aqui na escola" (FLORES, 2018, p. 221).
A questão da modificação espacial das ENT é um marcador forte destas instituições,
servindo também como fonte publicitária dentro do movimento destas escolas, sendo dito como
um "diferencial inovador"
(BARRERA, 2016). Outra questão potente que vemos nessa
modificação espacial é a questão do aproveitamento dos espaços, pois em ambientes
relativamente pequenos os grupos conseguem realizar diferentes trabalhos ao mesmo tempo,
usufruindo de um único espaço de forma harmônica. Aqui, retornamos a ideia das falas dos/das
discentes que foram destacadas acima, sobre a questão de utilizar os espaços de forma coletiva.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
198
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
Ao compartilhar os espaços, emerge, novamente, a questão da horizontalização das vozes, pois
para conseguirmos explorar o ambiente de forma coletiva, é necessário que saibamos escutar o
coletivo e respeitar a todos e todas que desfrutam deste espaço. Como Gianluca (aluno de La
Cecilia) aponta, a partilha dos espaços impulsiona nos sujeitos as noções do trabalho coletivo
e/ou a identidade de grupo: "Pelo menos o que eu sinto é como um grupo de gente que está
fazendo uma mesma coisa. Como um círculo de gente que tem o mesmo objetivo. E as aulas se
constroem tanto pelos professores quanto pelos estudantes" (FLORES, 2018, p. 199).
Considerações finais
Observamos que as ENT são instituições de ensino que apresentam em seus currículos
outras possibilidades para pensarmos a educação. Neste trabalho, pontuamos três características
currículares dessas instituições que nos permitem pensar um pouco mais sobre a questão da
identidade destas escolas. Ao chamar tais escolas de ENT apontamos, junto ao trabalho de
Barrera, Quevedo e Künzle, um movimento plural de escolas que, ao realizarem modificações
curriculares convergentes, acabam por movimentar em seus currículos novos saberes e outras
possibilidades acerca do pensar e do viver a escola.
Como ponto de destaque deste trabalho, analisamos três características presentes nas
ENT: as relações entre os sujeitos e com o ambiente, o tempo e o espaço, explorando ainda como
isso tudo se organiza dentro do currículo dessas instituições. Nesse sentido, notamos que,
primeiramente, essas mudanças ocorrem em esferas particulares de cada uma das instituições,
não ocorrendo, assim, de forma análoga em todos os espaços. Como pesquisadoras, ampliamos o
nosso olhar às ENT, buscando observar as vivências semelhantes sem negar, nem diminuir a
compreensão da experiência individual de cada instituição. Em outras palavras, observamos as
tendências que vêm ocorrendo, de forma paralela e bastante convergentes, nestes diferentes
espaços institucionais. Assim, utilizamos o espaço deste trabalho para explorar tais tendências,
apresentando a nomenclatura das ENT e algumas das possíveis características que as unem.
Justificamos a nomenclatura apontada aqui como modo de nomear tal movimento, nos
possibilitando falar, estudar e aprofundar conhecimentos sobre tal campo, sobre tal movimento
que, embora de forma tênue, vem se espalhando e se enraizando no chão de diversas escolas,
sejam públicas, privadas e do terceiro setor, as quais se propõem a repensar tal instituição nos
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
199
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
moldes atuais
(FLORES, 2018; BARRERA, 2016; QUEVEDO, 2014). Ao falarmos deste
movimento, apontamos como um dos pontos que transpassa o discurso destas escolas a questão
do pensar em outras possibilidades. Conforme discutimos, as quatro escolas aqui analisadas
demarcam, em suas propostas pedagógicas, um desejo em comum - pensar uma outra sociedade,
partindo do princípio de buscar outras formas de fazer e viver a escola. O desejo de criação de um
espaço educacional diferente do modelo hegemônico atual pulsa nas veias das ENT, sendo essa,
então, uma das primeiras características identitárias que levantamos em nosso trabalho.
Depois, exploramos então três pontos que já haviam sido levantados previamente por
Barrera (2016) - organização escolar, tempo e espaço - dentro destas escolas. Percebemos, em
nossas análises, que é inegável a conexão desses três eixos para podermos pensar nas identidades
das ENT. Essas esferas são complementares e unem-se de forma estrutural no sentido de, através
destas práticas, pensarmos nas outras possibilidades de currículo. O que vemos dentro de cada
esfera? De forma a suscitar nossas análises, observamos que tanto em nível relacional, temporal e
espacial, o que ocorre são mudanças na forma de organização das esferas. As mudanças trazem
para o currículo outras possibilidades de construção dos sujeitos, uma vez que, ao mudarmos a
forma, acabamos inerentemente mudando o conteúdo. O que observamos como outras
possibilidades dentro desses currículos são os pontos que circundam os sujeitos.
A busca pela centralidade do sujeito discente é pulsante nesses espaços. Ocorre uma
ampliação do olhar da turma, para olhar o indivíduo. Em paralelo, temos o olhar do indivíduo
sendo trabalhado no sentido do coletivo. Nesse processo de indivíduo-coletivo, vemos a busca
por relações mais horizontais, espaços mais plurais e uma abertura para trabalharmos a nossa
relação com a esfera do tempo. Nas ENT o ócio parece ganhar espaço no currículo e a busca por
novas formas de pensar o tempo estão presentes através da autogestão e da multiplicidade dos
espaços.
Por fim, acreditamos que esses espaços apresentam um olhar expressivo para a construção
de novas possibilidades de pensar o eu e o meio ambiente. Esse eu parece assumir um olhar mais
integral e ampliado dentro do currículo. O eu discente, o eu docente, o eu família, o eu
comunidade e todas as formas de relacionar estes "eus" com o meio ambiente são revisadas,
repensadas e reconsideradas dentro desses currículos. É necessário pensar a identidade do "eu"
que compõe hoje a nossa sociedade e compreendermos que somente por ele e através dele
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
200
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
poderemos pensar novas formas de viver, de se relacionar, de construir, e, assim, de ser e viver a
educação.
Referências
BARRERA, Tathyana Gouvêa da Silva. O movimento brasileiro de renovação educacional no
início do século XXI. 2016. 276 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da USP, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
CASTRO, Paula Almeida. Tornar-se aluno: identidade: perspectivas etnográficas. Campina
Grande: EDUEPB, 2015.
FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais e suas possibilidades dentro do
currículo. 2018. 231 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, Universidade Federal do Rio Grande, Rio
Grande, 2018.
FLORES, Juliana Artigas; SCHWANTES, Lavínia; SILVA, Caroline da Cunha Rezende.
Práticas de autoconhecimento no currículo das escolas não-tradicionais - o exercício do
(re)conhecer-se. RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e
Sociedade, Rio Grande do Sul, v. 4, ed. especial, artigo n. 739, p. 1-23, fev. 2018.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 45. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
KÜNZLE, Maria Rosa Chaves. Os espaços escolares e a constituição de um programa
antidisciplinar. Roteiro, Joaçaba, v. 32, n. 2, p. 221-244, jul./dez. 2007.
KÜNZLE, Maria Rosa Chaves. Escolas alternativas em Curitiba: trincheiras, utopias e
resistências pedagógicas (1965-1986). 2011. 214 f. Tese (Mestrado em Educação) - Pós-
Graduação em Educação, Universidade do Paraná, Curitiba, 2011.
MALDONADO, Luciene. Gestão escolar - para uma práxis transformadora: uma escola
pública inovadora Emef. Desembargador Amorim Lima. 2015. 114 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
MORAES, Bruno Emilio. Reflexões por uma educação ambiental desde baixo: o cotidiano das
comunidades utópicas. 2016. 206 f. Dissertação (Mestrado em Educação Ambiental) - Programa
de Pós-graduação em Educação Ambiental, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande,
2016.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
201
SCHWANTES, Lavínia; FLORES, Juliana Artigas. As escolas não tradicionais no século XXI: que escolas são estas e como a
relação sujeito-ambiente auxilia a sua construção?
PACHECO, José; PACHECO, Maria de Fátima. Escola da ponte: uma escola pública em
debate. São Paulo: Cortez, 2015.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo nômade: quando os devires fazem a diferença proliferar.
In: KIRCHOF, Edgar Roberto; WORTMANN, Maria Lúcia; COSTA, Marisa Vorraber (org.).
Estudos culturais e educação contingências, articulações, aventuras, dispersões. Canoas:
ULBRA, 2015. p. 269-288.
QUEVEDO, Thelmelisa Lencione. Escola projeto âncora: gestação, nascimento e
desenvolvimento. 2014. 219 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2014.
REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social. São Paulo: Cortez, 1995.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
VELOSO, Caetano. Oração ao Tempo. In: CINEMA Transcedental. Verve, 1979.
VIANA, Nildo Silva. Educação, sociedade e autogestão pedagógica. Revista Urutágua,
Maringá, n.16, p. 37-46, 2008.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 1, p. 179-202, jan./abr. 2019.
202