Artigo
Educação Salesiana, currículo e formação de governantes: reconhecendo
conflitos por meio da imprensa
Salesian education, curriculum and government training: recognizing conflicts through the press
Educación salesiana, currículo y formación de gobernantes: reconociendo conflictos por medio de la prensa
Celeida Maria Costa de Souza e Silva - Universidade Católica Dom Bosco |Programa de Pós-Graduação em
Educação | Campo Grande | MS | Brasil. E-mail: Celeidams@uol.com.br
Ozerina Victor de Oliveira - Universidade Federal de Mato Grosso | Programa de Pós-Graduação em Educação |
Cuiabá | MT | Brasil. E-mail: ozerina@ufmt.br
Resumo: Este trabalho apresenta desdobramentos da história da Educação Salesiana no Colégio Salesiano de Santa Teresa
(CSST), localizado em Corumbá-MS. Elegemos como recorte temporal os anos de 1972 a 1987, período que vigorou o
convênio que deu origem a Escola Estadual Santa Teresa (EEST) que funcionou simultaneamente ao CSST até 1982,
passando a existir, a partir daí, somente a Escola Estadual. É nossa intenção mostrar como o currículo da Educação
Salesiana, entendido como construção social, ganhou significado localmente, por meio da imprensa sul-mato-
grossense, ao narrar notícias, acontecimentos e jogos de poder, expondo o confronto entre grupos sociais, pois como
sabemos, a imprensa é um importante instrumento político. Na análise dos dados, salienta-se conflitos entre formação
de governantes e a defesa de acesso à escola pública; salienta-se, ainda, a invisibilidade das mulheres.
Palavras-chave: Educação salesiana. Currículo. Imprensa.
Abstract: This work presents developments in the history of Salesian Education at the Salesian College of Santa Teresa (SCST),
located in Corumbá-MS. We chose as a temporal cut from the years 1972 to 1987, a period that was in force the
agreement that gave rise to the Santa Teresa State School (STSS), which functioned simultaneously to the SCST until
1982, and from then on, only the State School. It is our intention to show how the Salesian Education curriculum,
understood as social construction, gained meaning locally, through the press in South-Mato Grosso, in narrating news,
events and games of power, exposing the confrontation between social groups, because as we know , the press is an
important political instrument. In the analysis of the data, we point out conflicts between the formation of rulers and
the defense of access to the public school; the invisibility of women is also highlighted.
Keywords: Salesian education. Curriculum. Press.
Resumen: Este trabajo presenta los desdoblamientos de la historia de la educación salesiana en el Colégio Salesiano de Santa
Teresa (CSST) ubicado en Corumbá-MS. Elegimos como recorte temporal los años desde 1972 hasta 1987, período en
que estaba en vigor el convenio que dio origen a la Escola Estadual Santa Teresa
(EEST) que funcionaba
simultaneamente al CSST hasta 1972, existiría, de ahí en adelante, solamente la Escola Estadual. Tenemos la
intención de mostrar como el currículo de la Educación Salesiana, comprendido como u na construcción social, ha
adquirido importancia a nivel local, por medio de la prensa sul-mato-grossense, al narrar noticias, acontecimientos y
juegos de poder, exponiendo el conflicto entre los grupos sociales, pues como sabemos, la prensa es una importante
herramienta de política. En un análisis de los datos, es preciso destacar los conflitos entre la formación de los
gobernantes y la defensa del ingreso en la escuela pública; cabe tener en cuenta, además, la invisibilidad de las
mujeres.
Palabras clave: Educación Salesiana. Currículo. Prensa.
• Recebido em 28 de maio de 2019 • Aprovado em 19 de junho 2019 • e-ISSN: 2177-5796
DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2019v21n2p439-458
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SILVA, Celeida Maria Costa de Souza e; OLIVEIRA, Ozerina Victor de. Educação Salesiana, currículo e formação de
governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
1 Introdução
Muito se tem questionado sobre uma forma de governo que marca a história brasileira, a
ditadura militar instalada em 1964, colocando-se em dúvida desde seus métodos violentos no
tratamento dos adversários políticos até sua existência enquanto regime totalitário. No que tange
às políticas públicas para a educação e seus currículos, ainda vivenciamos seus efeitos. O desafio
se mostra colossal, pois ao mesmo tempo em que convivemos com e nos opomos à heranças
ditatoriais, nos defrontamos com amplo e rápido crescimento de agressivos valores extremistas,
que circulam na mídia, se instalam nas instituições sociais e até nos projetos de vida das pessoas.
O enfrentamento deste desafio passa necessariamente pela educação, envolvendo
memória e produção cultural, pois, simultaneamente, há que se apresentar às novas gerações a
sua história e arcabouço cultural, erigidos por longa tradição, e com elas produzir valores de uma
democracia plural, orientada por movimentos sociais populares, com vistas a uma sociedade
materialmente igualitária e socialmente justa. Face a isto, não basta descrever os atos sofridos por
adversários do regime totalitário, pois a obviedade da violência, entre outros motivos, parece
levar a incredulidade; é preciso atentar para a sutileza da produção cultural da ordem do social, de
modo a dar visibilidade às filigranas da produção/reprodução do poder.
Imbuídas deste propósito e por contingências históricas, colocamos em questão a história
do currículo de uma proposta educacional iniciada nos anos de 1890 do século XIX em uma
realidade local, a educação salesiana no município de Corumbá-MS, com uma peculiaridade não
diretamente relacionada à ditadura militar, instalada um século depois desta, mas que se
encontram histórica e culturalmente imbricadas.
Na produção da memória, não basta que haja vínculos entre fatos históricos, eles
precisam ser narrados. Nesta perspectiva, objetivamos expor possíveis vínculos entre o currículo
da educação salesiana e a ditadura militar, no contexto de criação do Estado de Mato Grosso do
Sul (MS).
A criação de MS ocorreu durante o governo de Ernesto Geisel, por meio da Lei
Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977 (SILVA, 2009, p. 3). O presidente se baseara nos
estudos geopolíticos de Golbery do Couto e Silva, que defendia a ideia de “ocupar os vazios
demográficos” na região Centro-Oeste, seguindo a lógica da colonização como forma de
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dinamizar o capitalismo. A decisão de dividir o estado de Mato Grosso (MT) contemplava
interesses históricos da elite agrária local e se deu sem consulta plebiscitária.
De acordo com Bittar (1998, p. 34), o novo estado foi “criado para atender ao projeto
geopolítico do regime, contemplar os interesses da classe dominante local e para reforçar, em
termos imediatos, o governo da ditadura militar”. Assim, podemos inferir que a divisão do estado
de MT e a consequente criação de MS buscava alargar bases de sustentação da ditadura, dividir
forças oposicionistas e dar prosseguimento a abertura lenta e gradual desejada por Geisel.
Antes mesmo da criação de MS, já instalados na região sudeste do território brasileiro, os
salesianos chegaram ao MT em 1894, vindos do Uruguai. A primeira cidade visitada pela
expedição missionária capitaneada por Dom Luiz Lasagna1 foi Corumbá e o objetivo era
implantar um projeto missionário - fundar uma escola e um oratório (AZZI, 2000).
Escolas, obras sociais, missões indígenas e paróquias foram as principais modalidades de
atuação dos salesianos. Fundaram escolas primárias e profissionais, escolas de educação básica
com internatos, oratórios, variando de acordo com as necessidades e oportunidades do local onde
se instalavam.
No currículo escolar dos estabelecimentos dirigidos pelos salesianos, a formação literária,
o civismo, o estudo do latim e do grego, eram indispensáveis por serem matérias básicas para a
formação seminarística. Entretanto, ao assumirem a direção dos Colégios destinados aos filhos
das oligarquias rurais, introduziram uma educação humanista, elegendo como eixos principais:
literatura e língua luso-brasileira, cultura clássica greco-romana e filosofia aristotélico-tomista2.
Assim como a memória, o currículo também precisa ser narrado para materializar um
projeto de educação. A julgar por nossas recentes vivências junto às mídias, a imprensa se
constitui em rápido, amplo e forte mecanismo de narrativa de significados socioculturais. Face a
isto, neste texto o propósito é mostrar como o currículo da Educação Salesiana ganhou
significado localmente, por meio da imprensa sul-mato-grossense, ao divulgar as notícias e os
acontecimentos relacionados à história da educação salesiana no município de Corumbá-MS. As
narrativas, ao mesmo tempo em que legitimavam identidades de governantes, favorecendo a
manutenção da ordem sociopolítica e econômica, também anunciavam conflitos sociais,
principalmente no que tange à luta por acesso à escola pública.
1 Superior das casas salesianas do Uruguai. Recebeu de D. Bosco a tarefa de implantar obras salesianas no Brasil.
2 Oferecia uma visão totalizante do mundo a partir de enfoques metafísicos, indo ao encontro da perspectiva religiosa
cristã que se posicionava contra o avanço das ciências físicas e naturais, dos ideais da razão e da liberdade.
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2 A imprensa como fonte de pesquisa
A partir dos anos de 1990, as pesquisas em História da Educação e das instituições
escolares têm recorrido à imprensa como importante referência para acesso e compreensão do
processo histórico-educacional.
Os impressos (jornais e revistas) como fontes primárias nas pesquisas em História da
Educação possibilitam compreender a educação numa perspectiva histórica, vinculada a embates,
fruto de relações sociais. Por meio de jornais pode-se observar e compreender as atividades
humanas e suas relações sociais. Pode-se, ainda, caracterizar a organização educacional,
elencando-se particularidades e singularidades que as permeiam.
Carvalho, Araújo e Gonçalves Neto (2002, p. 72) afirmam:
[...] a utilização da imprensa, como objeto de análise, em muito enriquece a observação
histórica, principalmente no que concerne à educação: normalmente a imprensa é
utilizada apenas como um recurso complementar, porém nos últimos anos vem
contribuindo sobremaneira para novos estudos ligados ao campo educacional. [...] a
imprensa, ligada à educação, constitui-se em um “corpus documental” de in~meras
dimensões, pois consolida-se como testemunho de métodos e concepções pedagógicos
de um determinado período.
Nóvoa (1997, p. 31) também considera que:
A imprensa é, provavelmente, o local que facilita um melhor conhecimento das
realidades educativas, uma vez que se manifestam, de um ou de outro modo, o conjunto
dos problemas desta área. [...] São as características próprias da imprensa (a proximidade
em relação ao acontecimento, o caráter fugaz e polêmico, a vontade de intervir na
realidade) que lhe conferem estatuto único e insubstituível como fonte para estudo
histórico e sociológico da educação e da pedagogia.
Em concordância com os referidos autores, reconhecemos que a imprensa traz elementos
históricos que permitem entender o processo educacional como luta social, em que educação e
história são indissociáveis. Consoante a isto, recorrer à imprensa como fonte de pesquisa
contribui para novas interpretações sobre o pensamento educacional, pois, “são incomensuráveis
as possibilidades de reconhecimento e de problematização do passado por meio das páginas da
imprensa” (VIEIRA, 2007, p. 13). Entendemos que esta fonte nos possibilitará inferir ideias,
representações e jogos de poder encarnados no currículo da educação salesiana.
A pesquisa histórico-educacional por meio da imprensa também tem contribuído para o
reconhecimento de objetos de pesquisa antes negligenciados. Pasquini e Toledo
(2014)
asseguram que o desconhecimento de fontes históricas e documentais, a inadequada catalogação
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e conservação dos acervos, inviabiliza e, muitas vezes, dificulta o registro da memória histórica
nacional, regional e local.
A imprensa enquanto fonte documental deixa de ser vista apenas como registro sequencial
de fatos, torna-se fundamental para historiar as relações políticas presentes no pensamento
educacional e para a análise de paradigmas educacionais e filosóficos construídos historicamente.
Por isso, recorrer à imprensa como fonte vai além das pesquisas marcadas pela linearidade, pelo
controle rígido dos documentos e pela fragmentação de posicionamentos.
É inegável a importância da imprensa por difundir notícias, valores e opiniões. Por isso se
torna alvo da ação de diferentes grupos na busca da legitimação de seus princípios, ideias e
informações. Segundo Sodré (1966, p. 1), há “[...] uma luta em que aparecem organizações e
pessoas da mais variada situação social, cultural e política, correspondendo a diferenças de
interesses e aspirações”.
Recorrer à imprensa como fonte vai além das pesquisas marcadas pela linearidade, pelo
controle rígido dos documentos e pela fragmentação de posicionamentos. A imprensa tornou-se
um elemento importante para a apreensão da história da educação e do currículo.
Metodologicamente, nossas fontes são jornais impressos de circulação diária de Corumbá:
Diário da Manhã, Folha da Tarde e O Momento, do período de 1972-1987. Tomamos o cuidado
de não tornar o noticiado como sendo toda a realidade e nem as opiniões emitidas como
representativas do todo, “o exercício da d~vida, mais do que nunca, deve se fazer presente
quando analisamos representações do passado” (GONÇALVES NETO, 2002, p. 206).
Importante destacar que Corumbá foi a primeira cidade do sul de Mato Grosso a ter um
jornal impresso, e os jornais foram criados pelos representantes dos principais partidos políticos
da região: a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrático (PSD) e o
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O jornal “O Momento”, fundado por Otácilio F. da Silva
em 24 de novembro de 1945, defendia os interesses da UDN corumbaense e era ligado ao setor
agrário, ou seja, formado por grandes fazendeiros e latifundiários. O “Folha da Tarde” foi
fundado pelo médico Salomão Baruki em 1º de maio de 1958 e dele faziam parte membros do
PSD, da UDN e da Igreja Católica. Dos periódicos, fontes desta pesquisa, o único ainda em
circulação é o jornal “Diário da Manhã”, fundado em 15 de março de 1979 por Valdemar
Baiaroski. As publicações dos três jornais elencados estavam relacionadas à assuntos
internacionais, nacionais e locais quase sempre fatos políticos e econômicos.
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A imprensa veiculava interesses por meio dos registros das informações, participava da
história, por não ser neutra e nem imparcial, modelava a opinião pública.
Cabe ressaltar, ainda, que os acontecimentos são produzidos socialmente e o pesquisador
p “sujeito do seu tempo, que vive e sofre as influências do movimento e das contradições sociais”
(PASQUINI; TOLEDO, 2014, p. 263). Isto p, “não p um ente abstrato, mas um ser vivo, membro
de um grupo social” (PAIVA, 2006, p. 14). Assim, entender o processo histórico implica
considerar a sociedade, e compreender a sociedade implica compreender a história.
3 A Educação salesiana e seu currículo
Nesta pesquisa, currículo não se restringe à lista de disciplinas com suas respectivas
carga-horárias, mas configura um conjunto de ações, decisões, rituais e práticas culturais que
perduraram de uma longa tradição da educação escolar, narrada de geração em geração
(GOODSON, 1995, 2007). Exemplos desta tradição encontramos em Moreira (2012), que
descreve como os currículos escolares foram mudando ao longo do século XX nas instituições
escolares e no pensamento pedagógico brasileiro, com nítida e estreita relação entre o contexto da
ditadura militar no Brasil e seus desdobramentos para os currículos. Face a esta compreensão,
situamos o currículo da educação salesiana no município de Corumbá enquanto contexto
ditatorial.
Os salesianos chegaram ao Brasil por volta de 1882, período final do Império, e tinham a
intenção de expandir/difundir a obra salesiana fundada por Dom Bosco em 1859, em Turim,
Norte da Itália.
A proposta salesiana de educação, nomeada de Sistema Preventivo, buscava a formação
integral de jovens e estava fundamentada na Razão, na Religião e na Amorevolezza. Princípios
que podiam ser observados nos oratórios, considerados embriões do projeto educativo salesiano.
Azzi (2000, p. 299) explica que:
[...] os oratórios festivos, berço e origem da Pia Salesiana, não são outra coisa senão
centros recreativos, aos quais os meninos e jovens afluem para passar santa e
alegremente, os dias santificados, afastando-se, por este meio dos perigos que encontram
pelas ruas, e instruindo-se na prática da religião.
Daí inferimos que amorevolezza diz respeito à forma de se relacionar do educador
salesiano com o educando, sempre vigilante, porém amigo, afável, de modo que a afeição
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pudesse ser sentida pelos jovens, pois “não p com pancadas, mas com mansidão e caridade que
você deve conquistar estes amigos” (BOSCO, 2005, p. 29).
Esta ação por meio dos oratórios era sempre bem vista por autoridades públicas que até
subsidiavam seu funcionamento, vendo-a como importante instrumento para “regeneração social
da juventude desvalida”, para moralizar a sociedade e solucionar o problema da marginalidade.
A imprensa foi instrumento importantíssimo na implantação da obra salesiana, uma vez
que divulgava o nome de Dom Bosco e obras educativas, missionárias e sociais atribuídas a ele,
antes mesmo da chegada dos salesianos ao Brasil. Autoridades eclesiásticas e civis eram
convidadas a participar dos principais eventos da vida escolar nos colégios salesianos. Estes
tinham uma preocupação muito grande em narrar as atividades realizadas, entre elas abertura e
encerramento do ano letivo, festas dos padroeiros e homenagens a dirigentes. A finalidade era
mostrar a eficiência do trabalho educativo, procurando garantir apoio e colaboração do governo e
da sociedade.
Os colégios católicos dirigidos pelos salesianos eram considerados importantes
instrumentos para que a juventude superasse hábitos rústicos e adquirisse valores da cultura
urbana, segundo Azzi (2000, p. 144): “os alunos eram preparados para o ingresso na vida da
cidade através da transmissão de preceitos de boas maneiras e de urbanidade. Os costumes
r~sticos deveriam ser substituídos por bons modos e comportamentos civilizados”.
Desse modo, nestas escolas havia grande preocupação com a transformação de jovens em
cidadãos ~teis j pátria e distantes da subversão social. A ideia central era “formar bons cristãos e
honestos cidadãos”. Assim, o Sistema Preventivo não se confunde com mptodo de instrução, mas
diz respeito a valores a serem transmitidos.
Na dinâmica preventiva, a presença do educador no pátio da escola era fundamental para
acompanhamento e convivência. Ao mesmo tempo que criava laços de afeto e confiança, impedia
“erros”, vigiando e se mantendo próximo ao educando.
Razão é a segunda palavra-chave do Sistema Preventivo. Por razão deve-se entender a
capacidade de argumentar, de dialogar e explicar os porquês. Para Dom Bosco, o educador
deveria incentivar a autonomia intelectual do jovem, dando-lhes a oportunidade de expressar seus
pensamentos e ideias (BIANCO, 1987). O diálogo entre educador e jovem, tanto em nível pessoal
como grupal, é um costume no sistema salesiano e se manifesta em vários momentos, em
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especial, nas preleções diárias. Na perspectiva do currículo salesiano, a interação entre
educadores e educandos conduz ao equilíbrio, ao respeito e à liberdade.
Religião é a terceira característica do Sistema Preventivo. É um dos elementos-chave,
devendo permear o relacionamento entre educador e educando. Acreditava-se que a religião
ajudaria a construir o caráter da criança e do jovem, levando-os a atingir a maturidade cristã e
tornando-os bons cidadãos. Faz parte da proposta um aspecto coercitivo por meio da frase
proferida no dia a dia das escolas e nos oratórios festivos: “Deus te vê!”, entendido como forma
eficaz de coibir o erro, estimular o amor ao trabalho, a ordem, a disciplina, a vida de oração e o
“ref~gio das más companhias”.
O ambiente físico das instituições salesianas também narra a vigilância dos jovens nesse
currículo. A capela, o pátio, os espaços para encontros, as frases espalhadas pelos pórticos e
corredores, conferem uma identidade à Instituição.
4 O Colégio Salesiano de Santa Teresa na imprensa corumbaense: sinais de um currículo
Os salesianos chegaram a MT em 1894, vindos do Uruguai. Corumbá foi a primeira
cidade visitada pela expedição missionária dirigida por Dom Luiz Lasagna. E, na primeira visita,
os salesianos já apresentavam planos de fundar uma escola e um oratório festivo, elementos
fundamentais do projeto educativo salesiano.
Em março de 1899, chegaram a Corumbá, vindos de Cuiabá, os primeiros salesianos, com
o objetivo de
“preencher sensível lacuna da educação intelectual e religiosa das crianças
corumbaenses” (MISSÃO SALESIANA DE MATO GROSSO, 1899, s/p)3. Fundaram o Colégio
Salesiano de Santa Teresa (CSST) em abril de 1899. Era um Colégio para meninos, externos,
semi-internos e internos.
Desde a sua fundação, o CSST contemplou o interesse de setores da elite. Os primeiros
alunos a se matricular eram filhos de famílias de posses e de influência na cidade, desejosas que
seus filhos fossem preparados para manter o patrimônio da família e ocupar funções de liderança
- leia-se cargos públicos de destaque. Um pequeno número de pessoas de baixa renda conseguia
bolsas ou um benfeitor, que custeasse o ingresso naquele ambiente escolar.
3 Trecho retirado do ofício de 28 de março de 1899, endereçado à Câmara Municipal de Corumbá anunciando a
abertura do Colégio Salesiano de Santa Teresa.
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Os processos educacionais no CSST se configuravam tendo como finalidade ministrar a
“educação religiosa, intelectual, moral e cívica j juventude, dentro dos planos, leis e normas
estabelecidas pelas autoridades federais, estaduais e municipais” (COLÉGIO SALESIANO DE
SANTA TERESA, 1971, p. 2)4 e, de acordo com o Sistema Preventivo salesiano, visto que se
tratava de uma escola salesiana confessional católica.
Os padres salesianos, durante décadas, tiveram em suas mãos a responsabilidade de
formar jovens buscando torná-los “bons cristãos e honestos cidadãos”. Há que se destacar que o
CSST era um espaço que impunha padrões de bom comportamento e de bons costumes, entre os
quais a ordem e a disciplina eram requisitos fundamentais e indispensáveis para realizar o ensino,
civilizar e moralizar. Ao mesmo tempo, deveria contribuir para dar credibilidade e valorização à
instituição educativa.
De acordo com Dom Bosco, era preciso educar para fortalecer a vontade e regrar o
espírito; privilegiar a formação integral para a vida terrena e eterna; num clima familiar, porém
exigente, em que a responsabilidade, a promoção por desempenho, a solidariedade e o civismo
deveriam ser cultivados. As práticas educativas, em todas as suas dimensões, só seriam
concretizadas por meio de uma sólida e profunda educação evangelizadora. Observa-se que a
credibilidade na instituição passava pela disciplina, que era considerada “a alma” do ensino.
As narrativas construídas sobre o CSST eram de que seus egressos deveriam ser os
responsáveis pela gestão pública e privada na cidade, na região e até mesmo no país, dada a
qualidade do processo educacional que frequentaram.
Sobre isto Scheneider (1988, p. 58) diz,
[...] seus ex-alunos, hoje pelo mundo afora sobressaem como brilhantes acadêmicos:
Direito, Medicina, Engenharia, Agronomia; conceituados profissionais: jurisconsultos,
advogados, jornalistas e muitos competentíssimos professores e servidores públicos [...]
Todos capacitados, honrando sobremaneira o seu Colégio, a sua cidade e o seu belíssimo
país.
Esta citação chama atenção para os diferentes sujeitos educados pelo CSST e legitima o
status dos egressos e do educandário, permitindo-nos afirmar que o saber recebido pelos
indivíduos nas instituições tem consequências no seu nível de desenvolvimento pessoal, em suas
relações sociais, e no lugar em que se posicionam na sociedade.
4 Regimento Interno do Colégio Salesiano de Santa Teresa, 1971.
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No cenário corumbaense, o CSST ocupava papel central em vários aspectos, era o local
privilegiado onde se desenvolviam as práticas educativas, culturais e esportivas. O fragmento a
seguir, retirado do jornal Diário da Manhã, reitera a ideia que o CSST foi importante para o
desenvolvimento da cidade e para a formação de homens públicos que se destacaram em diversos
setores da sociedade.
Figura 1 - Oitenta anos do Santa Teresa
Fonte: Diário da Manhã, Corumbá, ano 1, n. 121, 17 ago. 1979. p. 6.
Várias notícias e reportagens divulgando os trabalhos considerados significativos,
relacionados às atividades desenvolvidas no cotidiano do CSST, foram publicadas ao longo do
período estudado.
Por ocasião do 75ª aniversário do CSST, foram publicados dois poemas que teciam
elogios, homenageavam o educandário e os mestres salesianos. Ambos os poemas engrandeciam
os salesianos, mostrando-os como heróis combatentes por terem vindos para uma cidade
considerada “inóspita e desconhecida”, desbravando-na, narrando assim o modus operandi do
colonialismo.
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Figura 2 - Mensagem publicada em homenagem aos 75 anos do Colégio Salesiano de Santa Teresa
Fonte: CASTRO, Alceste de. Os mestres salesianos. Folha da Tarde, Corumbá, ano 15, 6
set.
1974. p.5.
Os salesianos utilizaram-se da mídia local para fazer o elogio de sua obra. Os poemas
foram escritos por Alceste de Castro, ex-aluno e Marley Araújo, naquela época ainda aluna. A
“Homenagem aos salesianos” corresponde j poesia vencedora de um concurso por ocasião da
celebração do aniversário do CSST.
No poema de Castro, a passagem em que o Colpgio p comparado a uma “grande colmeia”
que na opinião do escritor tinha a importante tarefa de formar os alunos para a ciência e para um
Brasil Cristão. Cabe lembrar que no período em que esse poema foi escrito, tinha recém-entrado
em vigor (1972) o Convênio firmado (em 1971) entre a Missão Salesiana e o estado de Mato
Grosso, dando origem a Escola Estadual de 1º e 2º Graus Santa Teresa, mas não extinguindo de
imediato o Colégio Salesiano de Santa Teresa. Coexistindo assim, duas escolas em um mesmo
prédio.
O poema de Araújo (1974, p. 3), intitulado “Homenagem aos salesianos” foi publicado no
jornal Folha da Tarde, em comemoração aos 75 anos do Colégio.
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SILVA, Celeida Maria Costa de Souza e; OLIVEIRA, Ozerina Victor de. Educação Salesiana, currículo e formação de
governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
Homenagem aos salesianos
Quando aqui eles chegaram
Com muita dificuldade,
Muito de si eles deram
Para aumentar nossa cidade.
E a cidade foi crescendo,
Os seus passos acompanhando,
Uns nascendo, outros morrendo,
Uns perdendo, outros ganhando.
Chegando a uma região
Inóspita e desconhecida,
[...].
Orgulhemo-nos dessa data
Eles formaram uma frente
Desbravando rios e matas.
Nem toda obra progride
Nem todo esforço é bem pago
Procuremos sem revide
Retribuir este afago.
Afago que nos dão
Os mestres salesianos,
Nunca medindo esforços
Nestes setenta e cinco anos.
Os significados construídos sobre o CSST na
narrativa
dos
textos
dos
jornais
nos
permitem compreender a persistência da imagem de uma instituição considerada responsável pelo
progresso local e regional. A ideia de que os salesianos eram “paladinos da fp”, exemplos de
trabalho, virtude e de “vida impoluta”, povoava a mentalidade dos dirigentes da cidade, da elite
local, e da população em geral.
Como já foi anunciado, em 1972 entrou em vigor o Convênio entre a Missão Salesiana de
Mato Grosso e o Estado de Mato Grosso, e a partir desse ano, o prédio do CSST passou a abrigar
também a Escola Estadual de 1º e 2º Graus Santa Teresa (EEST). Como particularidade do
período, o CSST tornou-se escola estadual no 2º e 3º andares e no primeiro andar continuou
como instituição particular até 1981. Neste, havia 10 (dez) salas de aula, destinada a jovens de
famílias influentes da cidade, com direção, coordenação e matrículas especiais.
No primeiro andar funcionavam as turmas de 5ª a 8ª séries (1º grau), e também do 1º ao 3º
ano do curso Colegial (2º grau). Havia professores contratados pela Missão Salesiana de MT para
atender aos alunos do CSST. Isso porque a elite corumbaense reivindicava e conseguia prioridade
na matrícula e na escolha dos professores para seus filhos, alegando que fora a responsável por
criar condições junto às autoridades eclesiásticas para a instalação do Colégio Salesiano.
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governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
Assim, no período em que esse Convênio vigorou (até 1987)5, havia duas categorias de
professores e funcionários, os contratados e pagos pela Missão Salesiana de Mato Grosso e outros
remunerados pelo Estado e lotados na Escola Estadual Santa Teresa. O estado de Mato Grosso
pagava todas as despesas da escola, cabendo aos salesianos a cessão do prédio com todo material
que dispunha e a Missão Salesiana receberia matrícula dos alunos da escola pública. O Estado
remunerava grande parte dos funcionários administrativos, dos auxiliares de serviços diversos e
dos professores - indicados ou concursados.
As vagas para a Escola Estadual eram disputadíssimas e a separação dentro do ambiente
escolar eram visíveis no período em que funcionavam duas escolas no mesmo prédio, a pública
estadual e gratuita, e a particular, paga.
Figura 3 - Colégio só tem vaga para quem for bom esportista
Fonte: Folha da Tarde, Corumbá, ano 16, n. 5677, 5 abr. 1975. p. 11.
5 A partir de 1988, um outro Convênio foi assinado e foi mantido até 1996.
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governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
Havia poucas vagas e as mais disputadas eram para a
1ª e
8ª séries do Ensino
Fundamental. Efetivar a matrícula na primeira série garantiria ao aluno a permanência durante
todo o processo de escolarização e, na 8ª série, o acesso ao Ensino Médio.
O artigo publicado no jornal Folha da Tarde (Figura 3), datado de 5 de abril de 1975, faz
uma denúncia de um procedimento adotado no Colégio Estadual que, mesmo alegando não ter
mais vagas, as disponibilizava “só” para alunos considerados bons atletas.
A prática de afixar cartazes nos portões de acesso à escola informando o número de vagas,
as datas e os documentos exigidos para a realização da matrícula era muito utilizada. No entanto,
as informações sobre a não existência de vagas em algumas séries não eram válidas para todos,
pois alguns alunos se beneficiaram de pedidos feitos por políticos, por parentes ou conhecidos
dos servidores para ingressar no Colégio.
Na condição de Colégio conveniado, tornou-se aberto a todos, permitindo o ingresso de
alunos de diferentes grupos sociais. Ao mesmo tempo que gerou um conflito de identidade entre
os docentes, os funcionários e os discentes, pois desenvolviam suas atividades num mesmo
espaço escolar com sistemas diferentes - público/privado. O último ano de funcionamento das
duas escolas no mesmo prédio foi em 1981. Face a isto, o Convênio só foi cumprido plenamente
a partir de 1982 e permaneceu em vigor, nos moldes que fora assinado inicialmente, até 1987.
O jornal Diário da Manhã, em matpria intitulada “Colpgio Santa Tereza será desativado
em 81”, trouxe informações a comunidade local sobre o fim das atividades educativas da parte
privada. Utilizando das explicações dadas pelo diretor Pe. Jorge Parovel à imprensa, registra-se:
Os motivos que levaram a direção do educandário a tomar tal decisão, são as
dificuldades, diminuição de número de alunos e também a interferência do Colégio
Estadual que funciona no mesmo prédio, dificultando assim, os salesianos a darem um
melhor atendimento a esses alunos, por isso, optou-se para a desativação da escola
particular, simplificando também a administração do Colégio Salesiano Santa Teresa
(DIÁRIO DA MANHÃ, 1980, p. 1).
Sabemos que a seção particular gerava ônus para os salesianos pelo fato de serem poucas
matrículas e exigirem tratamento diferenciado. Na verdade, a parte privada estava sendo mantida
com recursos do repasse feito pelo governo estadual. Assim, a decisão de encerrar as atividades
traria benefícios à Missão à medida em que disponibilizaria mais vagas para a escola estadual. Os
funcionários e os professores contratados pela Missão passariam a condição de convocados pelo
Estado e ainda havia a possibilidade de os alunos vinculados ao CSST se transferirem para a
EEST.
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A existência do Convênio foi benéfica para Corumbá por ter expandido o número de
vagas para o ensino público, visto que a cidade não dispunha de vagas suficientes para absorver
toda a clientela escolar. E, para a Missão Salesiana foi vantajoso à medida em que ocupou os
espaços ociosos, recebeu subsídios do Estado por alunos matriculados, passando de 356 alunos
(1971) para mais de
4000 alunos nos anos em que foi mantido o acordo
(COLÉGIO
SALESIANO DE SANTA TERESA, 1987).
Vale destacar que, após a existência do Convênio, todos os anos, ao se aproximar o final
do ano letivo, começavam as especulações que o mesmo não seria renovado. Isso gerava a
mobilização da população, dos pais, dos políticos, da imprensa, e como o governo não tinha
construído escolas suficientes para abrigar toda a demanda, o Convênio acabava sendo mantido.
A imprensa local publicou, em setembro de 1985, um artigo com o título “Colpgio
Estadual”, de autoria do vereador Benedito Gattass Orro, manifestando a preocupação com a
particularização do CSST.
Temos acompanhado pelos órgãos de imprensa, comentários de amigos e através da
câmara de vereadores, inclusive debatido [...]o problema do Colégio Santa Teresa. A
particularização dos Colégios Estaduais e em destaque atual o Colégio Salesiano de
Santa Teresa nos causa três grandes preocupações. Temos ouvido comentários, boatos,
críticas e apresentações mais variadas do problema e necessitamos de maiores
esclarecimentos através do legislativo corumbaense, assim como vimos e ouvimos
entrevista em TV da direção do Colégio Santa Teresa. [...] 1) indiscutivelmente o
Colégio Santa Teresa está bem administrado e todos sabemos e reconhecemos o
importante papel da Congregação Salesiana em Corumbá na educação dos nossos filhos
e na administração do Colégio. O imprescidível papel dos salesianos em Corumbá em
diversos setores já foi e continua sendo alvo de respeito, reconhecimento gratidão e
congratulações.
2) O Colégio Santa Teresa acredito, o maior Colégio estadual
conveniado, possue aproximadamente 4000 alunos ou mais e todos sabemos a dedicação
dos professores e dos padres salesianos na condução, administração e orientação do
mesmo. O reconhecimento e apoio desta gigantesca obra sempre foi lógica de
prestigiamento pelas autoridades municipais e estaduais, e pelo povo de uma maneira
geral, considerando que todos ajudaram, inclusive materialmente em sua construção, e
sempre prestigiaram as suas promoções. Isso sem contar o prestigiamento das famílias
que entregam seus filhos a orientação do Colégio, ocupando todas as vagas e inclusive
com filas para novas vagas. 3) O Estado como órgão mantenedor do Colégio Santa
Teresa ou pelo menos da maior parte do mesmo, a nosso ver tem procurado ajudar, e
inclusive com modesta participação nossa no governo anterior foi feita a doação de 359
carteiras para o Colégio, além de coisas menores do Estado e do Município. Não
acreditamos que por mais cega que seja uma administração não reconheça a importância
de um Colégio deste gabarito, onde estudam mais de 4000 crianças em uma cidade onde
a população não atinge 100.000 habitantes. Isto posto, temos algumas dúvidas a tirar e
ponderações a fazer: a) quando ouvimos as palavras da direção pela TV deixando claro a
possibilidade de particularização do educandário, não ouvimos qualquer motivo
plausível ou qualquer reivindicação mais concreta e detalhada que iria renovar o
Convênio que existia entre as duas partes. b) Por sua vez pessoas ligadas ao Estado
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também sem dar maiores explicações e da motivação do ocorrido ou que a direção do
Colégio Santa Teresa não quer renovar o Convênio referido. Achamos que a Direção do
Colégio Santa Teresa deveria fazer de público um esclarecimento da totalidade dos fatos
com todos os detalhes para que o povo, os pais, os estudantes, os professores, e os
políticos pudessem entender melhor o que está acontecendo e lutar em melhores
condições[...]. (ORRO, 1985, p. 8.).
O relacionamento entre o Estado e a Missão não era fácil e, às vezes, as regras da
administração pública, estabelecidas por meio de um Decreto, de uma Resolução ou de uma
Portaria, inviabilizavam determinado trabalho e criavam desgastes e polêmicas. Em 1985, o
Governo do Estado ameaçou não renovar o Convênio, e a Missão, diante da indecisão do
Governo, falava em retornar as atividades do setor privado, o que representaria, naquele
momento, muitos alunos fora da escola. Isso porque as escolas municipais e estaduais da cidade
não tinham infraestrutura suficiente para absorver todo o contingente que deixaria o Santa Teresa
por não ter condições de pagar as mensalidades.
No artigo transcrito, o citado vereador expõe o conflito entre as partes (Missão e Estado) e
se manifesta sobre a importância dos salesianos na educação corumbaense, mas destaca a
preocupação com o cancelamento da parceria e a não oferta de vagas públicas. Apesar da referida
crise, a parceria se manteve até 31 de dezembro de 1987. A partir de 1988 entrou em vigor um
outro Convênio, que perdurou até 1996, quando o Colégio voltou a ser particular, resultando em
um déficit no atendimento da educação escolar pública em Corumbá.
Antes disso, ano a ano, a indefinição por parte do Governo do Estado e a constante
ameaça de não renovação do Convênio mobilizavam e movimentavam a população, a imprensa
falada e escrita, e a parceria acabava sendo renovada.
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governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
Figura 4 - Santa Teresa ameaçado de fechar as portas em 88
Fonte: Diário da Manhã, Corumbá, ano 9, n. 2057, 09 out.1987. p. 1.
A imprensa local, à medida que publicava matérias tornando público o problema,
divulgava as reivindicações de diferentes segmentos sociais e solicitava, tanto dos representantes
da Missão como do Governo, explicações sobre o andamento das negociações. Nesse momento, a
luta era por ter acesso à escola pública, não se problematizando o currículo escolar
proporcionado.
5 Considerações finais
A imprensa não é neutra e nem imparcial. No recorte da pesquisa aqui exposta, ela foi
importante instrumento político de produção do social, formando/informando/narrando a respeito
da vida política, econômica e cultural dos lugares ao seu alcance. Por meio dela divulgam e
consolidam as principais representações sociais, uma vez que emite valores, opiniões e é também
um veículo educativo.
Da narrativa da educação salesiana e de seu currículo, presente na imprensa sul-mato-
grossense, destacamos dois movimentos: um se apresenta como um moderno projeto civilizatório
e de urbanidade, formando jovens sob os valores da disciplina, “de boas maneiras”, conduzindo
suas energias para a promoção por desempenho. Porém com dois direcionamentos, um voltado
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governantes: reconhecendo conflitos por meio da imprensa.
para o mercado de trabalho e outro para formar novas gerações de dirigentes para a elite local.
Tal movimento parece dar guarida à regimes ditatoriais a medida que, se repetindo em diferentes
escalas sociais, pode formar uma cultura de posicionamentos fundamentalistas, extremistas e
reacionários, tal como vivenciamos nos dias atuais.
Outro apresenta uma contraposição, contrariando o “sem revide” do poema citado. A
referência j Corumbá como “terra estremecida” narra um lugar de conflitos e confrontos: o tom
de denúncia do “só” em relação js vagas na EEST; o depoimento de que o funcionamento dos
andares p~blicos da EEST estava “dificultando” o funcionamento da parte privada; a evidência
do conflito assumida no poema ao dizer “uns perdendo, outros ganhando”; a ironia j promoção
por desempenho ao dizer que “nem todo esforço p bem pago”; e, por fim, a crise entre o p~blico e
o privado na luta por garantia da escola pública, confrontam uma ordem social já estabelecida e
nos convida à resistência e luta.
Muito embora haja tal possibilidade, o que sustenta a defesa e luta por currículos, escolas
e sociedade mais democráticos e plurais, não podemos encerrar a análise sem evidenciar a
invisibilidade das mulheres no currículo da Educação Salesiana. Este currículo formava homens
públicos; às mulheres estava reservada a ausência no currículo, no mundo do trabalho e nos
espaços públicos de governo. Face a este currículo, não é de se estranhar que hoje as mulheres
ocupem postos de trabalho mal remunerados e não figurem em posições de dirigentes.
Retomar esta narrativa de histórias e currículos serve, primordialmente, à configuração de
uma posição: não vamos nos esquecer de nossa trajetória histórica, de seus erros, perdas e
sofrimento, mas vamos tocar em frente, porque outras narrativas, história, currículo e sociedade
são possíveis.
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