Artigo
A luta decolonial de professores militantes da causa negra em contextos de
colonialidade germânica1
Militant teachers in a decolonial struggle for the black in Germanic coloniality contexts
La lucha descolonial de profesores militantes de la causa negra en contextos de colonialidad
germánica
Benício Backes - Universidade Feevale | Curso de Pedagogia | Novo Hamburgo | RS | Brasil. E-mail:
beniciobackes@gmail.com
José Licínio Backes - Universidade Católica Dom Bosco - UCDB | Professor do PPGE/UCDB e
PPGPSI/UCDB | Campo Grande | MS | Brasil. E-mail: backes@ucdb.br
Resumo: Neste artigo, baseado na análise de falas de professoras e professores negros de escolas públicas
municipais da cidade de Novo Hamburgo/RS, militantes da causa negra, mostra-se a potência do seu
movimento/fazer pedagógico quanto à produção de tensionamentos em relação a pretensas bases
epistemológicas universalistas e, ao mesmo tempo, de construção de possibilidades de práticas educativas
multi/interculturais críticas. A produção de dados foi feita mediante a prática de entrevista interativa e as
análises foram tecidas como articulação dos campos teórico-metodológicos dos estudos étnico-raciais e dos
estudos do grupo modernidade/colonialidade. Concluiu-se que, embora já haja conquistas, em diferentes
frentes - espaços de participação e de reconhecimento, garantindo maior visibilidade à negritude em Novo
Hamburgo - torna-se importante manter as apostas em atividades decoloniais mais continuadas.
Palavras-chave: Professores negros. Docência/militância. Colonialidade.
Abstract: In this paper, based on the analysis of speeches by black teachers from public schools in the city of Novo
Hamburgo (RS) that are militants dedicated to the cause of the black people, we have shown the potency of
their pedagogical movement/action regarding the problematization of pretentious universalist
epistemological bases and, at the same time, the construction of possibilities of critical multi/intercultural
educational practices. Data were collected by means of interactive interview, and the analyses were
performed as an articulation of the methodological-theoretical fields of ethnical-racial studies and studies
of the modernity/coloniality group. We have concluded that, despite the achievements seen in different
settings - positions of participation and acknowledgement, which guarantee more visibility to blackness in
Novo Hamburgo - it is important to keep on betting on continuing decolonial activities.
1 A pesquisa teve apoio financeiro do PROSUC/CAPES. Trata-se de versão ampliada e aprofundada de trabalho
apresentado no 8º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação e 5º Seminário Internacional de Estudos
Culturais e Educação, evento realizado pelo PPGE-ULBRA/RS em parceria com o PPGE - UFRGS, em Canoas,
nos dias 25 a 27 de junho, de 2019.
• Recebido em 29 de setembro de 2019 • Aprovado em 05 de novembro de 2019 • e-ISSN: 2177-5796
DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2019v21n3p965-989
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BACKES, Benício; BACKES, José Licínio. A luta decolonial de professores militantes da causa negra em contextos de
colonialidade germânica.
Keywords: Black teachers. Teachers/ militancy. Coloniality.
Resumen: En el artículo, basado en el análisis de declaraciones de profesores y profesoras negros de escuelas
públicas municipales de la ciudad de Novo Hamburgo/RS, militantes de la causa negra, se muestra la
potencia de su movimiento /hacer pedagógico en lo que se refiere a la producción de tensionamientos con
relación a las supuestas bases epistemológicas universalistas y, al mismo tiempo, de construcción de
posibilidades de prácticas educativas multi/interculturales críticas. La producción de datos fue realizada
mediante la práctica de entrevista interactiva y los análisis fueron tejidos como articulación de los campos
teórico-metodológicos de los estudios étnico-raciales y de los estudios del grupo modernidad/colonialidad.
Se concluyó que, por más que haya conquistas, en diferentes frentes - espacios de participación y de
reconocimiento, garantizando mayor visibilidad a la negritud en Novo Hamburgo - se vuelve importante
mantener las apuestas en actividades descoloniales más continuas.
Palabras clave: Profesores negros. Enseñanza/militancia. Colonialidad.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 3, p. 965-989, set./dez. 2019.
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BACKES, Benício; BACKES, José Licínio. A luta decolonial de professores militantes da causa negra em contextos de
colonialidade germânica.
1 Introdução
Os descendentes de alemães que vieram ao Brasil, e no caso de nossa pesquisa, mais
especificamente a Novo Hamburgo, foram incentivados pelo Estado Brasileiro que queria
branquear o Brasil, ter um conjunto de trabalhadores europeus e livres, ou ainda, formar um
exército de soldados europeus para defender a independência do Brasil recém-proclamada. Por
outro lado, a Alemanha passava por uma situação de pobreza e forme no século XIX, o que fez
com que muitos alemães, sobretudo, da região mais pobre, a região de Hunsrück, vissem o Brasil
como uma oportunidade de escapar da pobreza e da fome (SPINASSÉ, 2008).
Mas, apesar de reconhecer a importância desse processo, a intenção do artigo é privilegiar
o ponto de vista dos sujeitos negros que, antes mesmo da colonização alemã, já viviam na região
de Novo Hamburgo, mas na condição de escravizados. Esse processo produziu um conjunto de
características negativas e estereótipos em relação aos sujeitos negros que se mantém até hoje por
meio da colonialidade.
Mas essa colonialidade sempre foi questionada pelos movimentos negros. Nesse contexto,
de luta decolonial, impossível não trazer a Lei Nacional 10.639/2003 (BRASIL, 2003), pois ela
impulsionou práticas decoloniais em várias escolas, geralmente protagonizadas por professores
negros.
Nesse sentido, problematiza-se, inicialmente, a colonialidade germânica sob a ótica
dos/das militantes que fizeram parte da pesquisa, uma militância negra que entende a
colonialidade germânica como construção cultural, forjada pela branquidade como presença
ausente (APPLE, 2001) e passível de desconstrução. Após, tecem-se algumas considerações
sobre a potência do seu movimento/fazer pedagógico que, ao mesmo tempo em que tenciona as
bases
epistemológicas
com pretensões de universalidade,
produzidas
pela
modernidade/colonialidade, encontra-se engajado na construção de práticas educativas
multi/interculturais críticas.
Em outras palavras, na caracterização e análise da colonialidade germânica de acordo com
o olhar de militantes da causa negra, encontra-se a possibilidade de se entender como essa
colonialidade é questionada/colocada em xeque pela implementação da Lei Nacional
10.639/2003
(BRASIL, 2003), nas escolas municipais de Novo Hamburgo/RS, uma lei
decolonial que tende ao reconhecimento e à afirmação da História e da Cultura Afro-Brasileira e
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é voltada à desconstrução de estereótipos e de práticas racistas. Assim, na análise/discussão que
segue, junto às marcas da colonialidade germânica em Novo Hamburgo, embora a colonialidade
germânica insista em se manter hegemônica, vislumbra-se o tensionamento desse lugar colonial
hegemonizado mediante processos de relativização da verdade a partir da sua compreensão como
produção cultural e visibilização/afirmação de diferentes lugares de enunciação, diferentes
formas de contar a história, diferentes epistemologias e diferentes construções identitárias.
Pensar nas potencialidades da luta decolonial implica reconhecer a necessidade de
construção de outras condições de conhecimento. Nesse sentido, o questionamento e a abertura à
necessária transgressão das bases epistemológicas universalistas sinalizam para um movimento
propenso a desafios, visto que supõe o enfraquecimento de posições hegemonizadas em relação à
produção de conhecimento e às suas pretensões de verdade(iro). É nessa perspectiva que se tecem
as considerações sobre os desafios que se fazem sentir, no trabalho de professoras/es, na inserção
da História e da Cultura Afro-Brasileira, em suas práticas de sala de aula, como demandadas
pela Lei. Já o fomento de pensamentos, práticas e experiências por parte de professoras/es que
desafiam a
“matriz colonial”
(WALSH, 2010b) será tomado como potencialidades que se
mostram diante da implementação dessa Lei, em um contexto de colonialidade germânica.
Como se trata de um mesmo movimento que se tece enredado por desafios e
potencialidades, as análises das falas de professoras/es são feitas em torno desse movimento, de
forma que se possa pensá-las quanto à potência que sugerem, seja em termos de tensionamento
quando de seus olhares sobre a colonialidade germânica, seja em termos de
proposições/construções em uma perspectiva multi/intercultural crítica, em se tratando de pensar
os desafios e potencialidades que a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) sugere em termos de
experiência decolonial em escolas de Educação Básica em Novo Hamburgo.
Ainda, a título de introdução, destaca-se que o artigo, resultado de uma pesquisa mais
ampla, caracteriza-se pela originalidade, pois, durante o seu desenvolvimento, realizou-se um
estado do conhecimento e percebeu-se que, no contexto investigado, ainda não foi efetuada uma
investigação que privilegiasse a luta decolonial dos professores negros. Há várias lutas
decoloniais investigadas em outros contextos brasileiros e elas estão inseridas ao longo do artigo
(SISS E FERNANDES,
2014; SILVA,
2013; SANTOS; SILVA,
2017; PAULA,
2013;
MAGALHÃES, 2010; LEITE, 2010; GOMES, 2011, 2017; COELHO E COLEHO, 2013).
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2 Sinalizações teórico-metodológicas
A produção de dados foi feita mediante a prática de entrevista interativa (SILVEIRA,
2007), com pessoas negras - seis professoras2 e um professor - militantes da causa negra e
comprometidas com a prática de inserção das questões étnico-raciais na Educação Básica, em
escolas públicas da Rede Municipal de Novo Hamburgo. Recortes de suas falas, em diálogo com
teóricos dos campos de estudos pós-coloniais, do grupo modernidade/colonialidade e de estudos
étnico-raciais que se debruçam sobre a temática em questão, compõem a discussão sobre a luta
decolonial em contextos de colonialidade germânica.
O contexto de colonialidade refere-se a uma invenção da modernidade, que procura
justificar a construção de uma hierarquização racial/social, com base em supostas inferioridades
raciais (o não-europeu) de um lado e de pretensas superioridades raciais (europeu), de outro. E,
com base nessa hierarquização procura negar, destruir, primitivizar, inferiorizar e subordinar as
diferenças. É um processo de negação, inferiorização, subordinação e dominação sobre grupos de
pessoas (negros e indígenas, no Brasil) e suas respectivas culturas, religiões, espiritualidade,
epistemologias, cosmologias e ontologias. E tudo isso sustentado por um pensamento colonial,
produzido basicamente como processo de naturalização das diferenças, procurando legitimar
práticas coloniais no âmbito da produção econômica e política e, também, nas perspectivas
científica e teológica (QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2008; WALSH, 2010b; 2013).
Levando em conta essa colonialidade
- em que a “matriz colonial, o sistema de
classificação hierárquica racial civilizatória que tem operado e opera em distintas ordens da vida”
(WALSH, 2010b, p. 221, tradução nossa) -, ao mencionar colonialidade germânica, referimo-nos
aos processos de construção identitária sociocultural de populações de imigrantes alemães,
vindos desde os inícios do séc. XIX à região do Vale dos Sinos/RS, e de seus descendentes,
quanto às suas pretensões de se construírem como cultura hegemônica, procurando invisibilizar e
inviabilizar a presença de outros grupos étnico-raciais, especialmente populações negras, através
da produção de estigmas e discriminações em relação à diferença racial (MAGALHÃES, 2017).
A região do Vale dos Sinos compreende os municípios de Araricá, Canoas, Campo Bom, Dois
Irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Portão,
2 Uma das professoras, à época, ocupava cargo de gestão e será referida como gestora no decorrer das análises. Os
nomes das/dos participantes da pesquisa foram trocados por pseudônimos sugeridos pelas/os mesmas/os.
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São Leopoldo, Sapiranga e Sapucaia do Sul (FEE, 2015), e situa-se junto à região metropolitana
de Porto Alegre/RS.
Visto que os inícios da colonialidade germânica em Novo Hamburgo remontam à terceira
década do século XIX, com a chegada de imigrantes europeus (povos germânicos) ao Vale dos
Sinos, cabe problematizar essa colonialidade germânica, situando-a nos contextos da lógica da
expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo. Uma expansão europeia que se
procura fortalecer mediante a elaboração/implantação da perspectiva eurocêntrica de
conhecimento, alçando a invenção da ideia de raça à condição científica. Uma invenção a partir
da qual os europeus intencionam justificar suas relações coloniais de dominação sobre os não
europeus, forjando a naturalização de inferiorizações de povos subordinados/dominados, não
somente quanto aos traços fenotípicos, como também quanto à sua cultura e mentalidades
(QUIJANO, 2005), envolvendo suas concepções epistemológicas, cosmológicas, ontológicas e
espirituais. A inferiorização de elementos que envolvem a cultura e a mentalidade do povo afro
pode concretizar-se, atualmente, como ainda acontece em Novo Hamburgo, como prática de
invisibilização desses elementos, a partir da invenção de uma cultura em particular, alçada à
condição hegemônica. É um tipo de invenção que se fortalece através da estratégia de construção
da branquidade como “presença ausente” (APPLE, 2001) e que se tece como lugar de referência
única.
Já para pensar a multi/interculturalidade crítica, parte-se do conceito de
multi/interculturalidade em sua dupla potência - percepção das “min~cias, sutilezas, artimanhas
dos diferentes saberes/poderes que produzem as identidades em diferentes culturas” e como
“aliança estratpgica” (BACKES, 2013, p. 61) - associoando-a à interculturalidade crítica. Com
Walsh (2010a; 2013) e Candau (2012; 2014a), entende-se que a interculturalidade crítica se trata
de uma perspectiva de diálogo intercultural, em que o questionamento e a subversão das relações
políticas
(relações de poder) se articulam com as relações epistemológicas (de saber) e as
relações ontológicas (de ser).
3 Colonialidade e raça: memórias e experiências de tensionamento decolonial
Saber que os inícios da invenção da “ideia de raça, em seu sentido moderno, não têm
história conhecida antes da Amprica” (QUIJANO, 2005, p. 107) e compreender os cenários dessa
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invenção como suposto marcador biológico diferencial e, como tal, possibilidade de construção
de uma hierarquização naturalizada de povos segundo diferenças étnico-culturais, mostram-se
como duas condições a partir das quais se torna possível pensar algumas das relações de poder
colonial. Relações que marcam tanto os processos de inferiorização e de subordinação,
pretendidos por parte de quem se encontrava/julgava na posição de colonizador, como os
processos de resistência, de concepção de estratégias e de criação de espaços de produção e
afirmação cultural, social e religiosa (MAGALHÃES, 2017) e de lutas contra subordinações e
inferiorizações culturais e raciais, empreendidas pelas populações negras, em terras americanas,
brasileiras e novohamburguenses.
A compreensão dessas condições mostra-se decisiva para o tensionamento da
colonialidade
- engendramento de uma estrutura social, cultural e política fortemente
hierarquizada, com base em questões de raça. Ao adentrar na colonialidade quanto ao que a
constitui como projeto, encontra-se na invenção da ideia de raça
“o principal elemento
constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia” (QUIJANO, 2005,
p. 107).
O engendramento de relações sociais de subordinação e inferiorização a partir dessa
configuração de poder, ao mesmo tempo em que reconhece, na América, novas identidades
sociais como índios, negros e mestiços, ao colocá-las em relação com identidades sociais já
constituídas geopoliticamente, como portugueses, espanhóis e europeus, procura redefini-las,
conferindo-lhes também uma conotação racial. Essas identidades engendradas em relações de
dominação passam a dar o tom aos lugares e papeis de cada uma das formações identitárias em
uma sociedade que passa a justificar a hierarquização social com base em supostas inferioridades
raciais de uns em relação a pretensas superioridades raciais de outros. Em outras palavras,
transformam-se diferenças étnico-culturais em condições que permitem justificar a desigualdade
social como derivada de condições de natureza - uma das marcas da colonialidade/modernidade.
Diferentes processos de naturalização passam a ser engendrados. Importa sinalizar que,
embora a naturalização dos processos de subordinação e inferiorização recorrentes nas
representações da diferença racial tenham se desenvolvido como “uma tentativa de deter o
inevitável ‘deslizar’ do significado para assegurar o ‘fechamento’ discursivo ou ideológico”
(HALL, 2016, p. 171), os significados - uma produção cultural - trazem consigo os contextos em
que foram gestados e, dessa forma, pretendê-los únicos, fixos, inalteráveis torna-se uma
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empreitada impossível do ponto de vista dos processos culturais. Daí as tentativas de constante
reiteração da naturalização das diferenças raciais, quando das pretensões de fixá-las e transformá-
las em fonte de desigualdade social. Veja-se, nesse sentido, uma fala da professora Flor em
relação ao questionamento que lhe fora feito sobre manifestações de preconceito e de racismo na
escola, quando referia que esses ainda eram muito fortes nesse espaço:
O preconceito, principalmente em relação à cor da pele, porque sempre o negro é visto como uma coisa
ruim. Tudo o que acontece de ruim é o negro, o negro é ladrão, o negro é isso, o negro é aquilo. E ainda tem
muito a questão do cabelo, que nós temos o cabelo diferente [...]. Muitas vezes, se sofre por causa disso,
colocam apelidos ou ficam fazendo piadinhas: - ‘Ah, cabelo de bombril’! [...] [E em relação à religião?]
Muito! Principalmente porque aqui nessa região [...] muitos alemães têm origem evangélica e sempre houve
essa coisa de se pensar que as religiões afro estão ligadas ao mal. (Prof.ª Flor)
Na fala da professora Flor, há uma espécie de atualização dos diferentes esforços que
vinham sendo feitos no período colonial, desde os religiosos, sob a liderança do cristianismo, até
os pretensamente científicos, esmerando-se em reiterar a natureza das diferenças raciais (com
destaque para o negro como fonte do mal) como forma de auferir legitimidade ao modelo de
acumulação capitalista e ao processo civilizatório em constituição, em escala mundial. Nesse
mesmo patamar, há as três práticas disciplinares pensadas por Beatriz Gonzáles Stephan - “as
constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas do idioma” -, instituintes da cidadania
latinoamericana do século XIX, abordadas por Castro-Gómez (2005, p. 81) e que se constituem
como “dispositivos de saber/poder que servem de ponto de partida para a construção [da]
invenção do outro” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 81).
O domínio da palavra escrita torna-se central nesse processo: a construção das leis, dos
planejamentos, dos manuais, como os de urbanidade, e os tratados, como os de higiene, e o
acesso a eles passa por esse domínio de compreensão da palavra escrita. O Estado, através do
Direito, forja uma cidadania - subjetividade que lhe garante a governamentalidade. A Escola,
através da Pedagogia, terá o cuidado de formar esse perfil de sujeito requerido pela modernidade:
“homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual” (CASTRO-
GÓMEZ, 2005, p. 81), tornando os sujeitos produtivos e úteis à pátria. Destaca-se, nesse sentido,
uma fala da professora Lyntia, ao rememorar algumas práticas de pesquisa desenvolvidas como
estudante de Pedagogia, das quais se serve em suas aulas para trabalhar as questões étnico-raciais
com seus alunos de 5º ano. Uma fala que aponta para as restrições do acesso ao domínio da
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palavra escrita e das restrições ao acesso às escolas para as populações negras - uma prática do
século XIX que atravessa o século XX:
[...] eu fiz uma pesquisa sobre o papel da mulher negra na sociedade hamburguense e a gente viu que Novo
Hamburgo tinha só uma escola de mulheres nas décadas de 1920-40 [...]. As mulheres só poderiam
frequentar essa escola se fosse para fazer economia doméstica. Só tinha uma negra nessa escola e ela foi
levada por uma senhora que na verdade queria que sua empregada aprendesse as coisas que ela fazia. [...]
Essa foi então a trajetória de uma mulher negra, num curso de educação doméstica. Depois dali a gente vai
ver mulheres negras na educação em Novo Hamburgo, só na década de 1970 quando começam os cursos de
MOBRAL. (Prof.ª Lyntia)
Por mais que houve/há esforços reiterados por parte da colonialidade, empenhada na
construção de um discurso hegemônico, passando pelos campos da moral, da religião e da
ciência, como se pode depreender nas falas das professoras Flor e Lyntia, esses não se mostraram
capazes de conter os efeitos da sua construção cultural. Uma construção cultural com história,
isto é, como movimento/força que se tece nas/por relações de poder em conflito, associação,
combinação e recombinação, situada em determinado tempo e espaço, logo, passível de ser
descontruída em seus processos de criação cultural e, também, modificada e alterada por outras
forças em disputa. Nas palavras de Hall (2016, p. 211):
[...] o significado começa a escorregar e deslizar. Começa a derrapar, ser arrancado ou
redirecionado. Novos significados são enxertados nos antigos. Palavras e imagens
carregam conotações não totalmente controladas por ninguém, e
[...] significados
marginais ou submersos vêm à tona e permitem que diferentes significados sejam
construídos, coisas diversas sejam mostradas e ditas.
Essa impossibilidade de fixar o significado em termos de representação (HALL, 2016),
por mais que os esforços sejam conjugados (articulação entre religião, ciência e economia), como
se verificou durante a modernidade colonial, quanto à invenção de imagens estereotipadas de
negros, deve-se às resistências, às contraestratégias e à articulação de intervenções por parte das
populações negras, tanto em relação às imagens degradantes (preguiça e primitivismo inatos)
como em relação às imagens idealizadas e sentimentalizadas (bom escravo3 negro cristão;
escrava doméstica fiel e dedicada; e nativo feliz
- artistas, menestréis, tocadores de banjo,
malandros) (HALL, 2016).
As diferentes intervenções, criativamente construídas pelas populações negras,
encharcadas por suas práticas, cosmologias e epistemologias, remetem a práticas decoloniais e,
3 No contexto específico, o uso dos termos escravo e escrava
(e não escravizado/a) deve-se por remeter à
naturalização dos processos de escravização, empreendidos pela modernidade/colonialidade.
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portanto, sem se pretenderem universais, como propugnam as epistemologias euro-usa-centradas
(WALSH, 2010b). Para o pensamento e prática decolonial, se ainda há um universal a ser
construído - a descolonização -, esse é o como projeto. Pois em suas formas de luta, isto é, em
suas instaurações como processo, a descolonização se mostra tão diversa quanto as diferentes
perspectivas por parte de cada um dos povos/grupos/comunidades subalternizados. Daí a
importância de se ficar atento ao potencial epistêmico dos espaços não completamente
colonizados (GROSFOGUEL, 2008). É a partir desses espaços/margens que se podem favorecer
trocas epistemológicas e práticas, avançando quanto às possibilidades de fortalecimento de lutas
em comum de diferentes povos/grupos/comunidades, em se tratando de posicionamentos e
objetivos sintonizados em torno de causas comuns (LACLAU, 2011; SANTOS, 2002).
Habitar esses espaços/margens numa perspectiva epistemológica é o que permite
entender, como a colonialidade germânica, em Novo Hamburgo, como abordada na presente
discussão, foi/é construída a partir de um lugar que se assume explicitamente normal, porque
germânico/branco. Em uma fala da professora Violeta - quando fez uma pausa em torno da
conversa sobre suas vivências/experiências como criança, adolescente e jovem negra em Passo
Fundo (cidade em que nasceu e em que fez sua formação acadêmica), foi-lhe perguntado como se
deu sua inserção em Novo Hamburgo -, encontra-se uma marca expressiva dessa colonialidade:
[...] na chegada em algum ambiente, aqui da cidade, diferenciado, lembro-me muito de ter ido em dois clubes
aqui com uma amiga, com as colegas da Rede [professoras de escolas municipais] e as pessoas perguntarem
duas a três vezes: - Mas de onde é? - E dirigida a mim e não às outras pessoas que estavam juntas e que
também não eram sócias. (Prof.ª Violeta)
É a colonialidade germânica, cristã e branca, que, ao inventar a diferença a partir da
mesmidade, transforma-a em fonte do mal (SKLIAR, 2003) e procura constrangê-la, repetindo-
lhe a mesma pergunta, que passa a assumir outros contornos como se estivesse a perguntar
também: Mas como assim? Quem a convidou? Quem pensa que você é? O que veio fazer aqui? A
pergunta: “Mas de onde p?”, ao se desdobrar em várias outras, reaviva velhas identidades
engendradas em relações de inferiorização e subordinação, que passam a dar o tom aos lugares e
papeis de cada uma das formações identitárias, em uma sociedade hierarquizada social e
racialmente. Magalhães (2010) em seus estudos sobre identidade negra em Novo Hamburgo, uma
comunidade germânica, refere que “a coexistência entre aceitação e negação da presença dos
negros azia-se presente no cotidiano da comunidade” (MAGALHÃES, 2010, p. 52). É uma
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 21, n. 3, p. 965-989, set./dez. 2019.
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colonialidade germânica.
coexistência que, ainda hoje, não abre mão de algumas concessões que devem ser feitas por parte
de quem é visto como diferente e pretende inserção maior na sociedade. É como se fosse uma
espécie de permissão (e, dessa forma, remonta às cartas de alforria) que vem acompanhada da
necessidade de um “plus” (como nos tempos de alforria) que faça jus à inserção pretendida,
mesmo que em escalas que pareçam mais democráticas, como o é a inserção no mundo do
trabalho, através de seleção por concurso público.
Nesse contexto de coexistência, mais especificamente quanto às concessões, encontra-se a
fala do professor Bira, que vê, nesse tipo de prática cultural, uma prática de fechamento e uma
especificidade da cultura alemã, em Novo Hamburgo. Falando sobre o mito da democracia racial
no Brasil, foi perguntado ao professor Bira se havia preconceito na escola. Ele respondeu: “Entre
quem? Entre alunos ou entre professores?” (Prof. Bira). Respondeu-se que tanto entre alunos
como entre professores e entre professores e alunos. Ao que respondeu:
Na verdade, faz parte da cultura alemã: Pode entrar na minha comunidade, mas desde que tragas alguma
contribuição. Tipo assim: - [Bira], tu vens lá de Canoas para trabalhar aqui, mas tu vais pegar teu
dinheirinho aqui e vais aplicar em Canoas, por que tu não aplicas aqui? Se tu começares a aplicar aqui, tu és
do nosso grupo. Então tem muito disso. Claro que ninguém fala, mas indiretamente a gente sabe que isso faz
parte da cultura alemã. (Prof. Bira)
A descrição do que “faz parte da cultura alemã”, como referiu o professor Bira, fazendo
uma crítica a esse tipo de prática de concessão que permite a entrada na comunidade - um
possível retorno financeiro -, associa-se a uma prática de racismo velado, que se mostra na
articulação entre raça/“estrangeiro”/classe. Trata-se de um racismo velado, que procura associar a
diferença racial à desigualdade social como “resultado de problemas estruturais do país e não do
preconceito, ou somente do seu passado escravista - como defendiam as teses dos autores da
escola paulista desde a dpcada de 1950” (SANTOS; SILVA, 2017, p. 440). Dessa forma, articular
estratégias que permitam sua desconstrução passa, também, por esse tensionamento da
colonialidade germânica/branca, que, por se entender como normalidade, ainda
(im)põe
condições à entrada de outros em sua comunidade/normalidade. E uma das estratégias de
estilhaçá-la, quanto às suas pretensões de normalidade, consiste em expô-la, falar dela, fazê-la
aparecer, como faz o professor Bira e como “denuncia” a professora Violeta.
Já nos contextos de um “plus”, a coexistência entre aceitação e negação da presença
negra se reatualiza quando de certas funções que passam a ser ocupadas por negros e negras. A
docência é uma dessas funções que, ainda nos anos 90 do séc. XX, soava estranha em uma cidade
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em que o imaginário da imigração germânica permanecia forte, tendendo ao enaltecimento de si
própria, em detrimento de qualquer outra formação identitária, sobretudo a identidade negra.
Dessa forma, a docência negra, quando presente e referida, parece vir acompanhada de
uma conjunção adversativa - “mas” - como a recordá-la de que, como negra, em uma sociedade
marcada pela colonialidade, p preciso algo a mais (um “plus”) - “um diferencial”, como refere a
professora Violeta - do que é necessário para um branco ser reconhecido profissionalmente nessa
atividade. Isso se torna mais visível em uma das falas da professora Violeta que, ao ser
perguntada sobre sua inserção na comunidade de Novo Hamburgo, falou que se deu pelo trabalho
na rede pública municipal, através do seu diferencial de formação:
Naquele período, em 1987, eu era uma das poucas professoras negras que a Rede Municipal tinha e eu
lembro, porque no espaço do nosso centro de cultura cabiam umas 500 professoras da Rede que eram
daquela época. Então, a gente conseguia ver o que era o universo da Rede. [...]. Éramos meia dúzia, acho, de
professoras negras, naquele período. [...] a inserção na rede pública municipal se deu de uma forma muito
boa. Eu senti muito essa questão de uma valorização pela formação até porque naquele período eram
pouquíssimos professores, na rede, que tinham graduação. O concurso público era só com o magistério, o
curso normal e eu já era uma professora que tinha graduação. Tanto que na escola para a qual eu fui, num
universo de 30 professoras, eu era a única graduada. No universo da Rede Municipal, nós éramos, acho 20 e
poucas, trinta professoras graduadas. [...]. Então, já era um diferencial. (Prof.ª Violeta)
O fato de a professora Violeta já ter em seu currículo a graduação, algo ainda pouco
comum entre os docentes em Novo Hamburgo, nos anos de 1980, e sequer requerido para prestar
o Concurso Público Municipal para docentes, é seu código de acesso, seu “diferencial” que lhe
garante “uma forma muito boa” (Prof.ª Violeta) de inserção nesse universo profissional, embora
que essa não seja condição suficiente para a eliminação de práticas racistas. Quanto a esse
aspecto da busca pela formação, convém referir a aposta/luta histórica que as lideranças negras e
o Movimento Negro (man)tiveram na importância da educação/formação como perspectiva de
maior inserção na sociedade. Destaca-se, nesse sentido, já nos anos de 1930, a fundação, em 16
de setembro de 1931, com sede em São Paulo, da Frente Negra Brasileira, que concentrava seus
esforços na educação e no domínio da ciência, da literatura e das artes como forma de vencer o
preconceito racial e garantir a inserção dos negros na sociedade vigente (MUNANGA; GOMES,
2006). Essa é, também, uma das marcas da luta do Movimento Negro brasileiro - a garantia do
acesso igualitário à educação, que, a partir dos anos de 1990, pauta-se, também, pela luta por
políticas de ação afirmativa (GOMES, 2011; 2017), que “têm como foco a população negra, mas
não se restringem a ela. Visam à construção da sociedade e da educação como espaços/tempos
mais igualitários, democráticos e justos para todos” (GOMES, 2017, p. 38).
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Ainda quanto à coexistência entre aceitação e negação da presença negra, em outra
perspectiva, embora nos mesmos contextos, tem-se o posicionamento da professora Ísis Angela,
que sinaliza para a necessidade de um permanente tensionamento dessa coexistência. E, nesse
sentido, aproxima-se da compreensão de Siss e Fernandes (2014, p. 113), que apontam a
educação como “um espaço carregado de tensão e de conflito onde se trava uma luta cotidiana
contra o racismo em todas as suas dimensões e as desigualdades sociorraciais”. Quando falava
sobre o estranhamento que ainda se verifica quanto à presença de religiões de matriz africana na
escola, perguntou-se à professora Ísis Angela sobre como a Lei 10.639/2003 pode contribuir para
ampliar as possibilidades de circulação da cultura afro na escola. Como resposta, traz à cena
algumas das interrupções (HALL, 2013) que a cultura afro produz quando da sua entrada no
espaço escolar:
[...] tentando todos os dias diminuir essa resistência [...] - O que tu queres fazendo aqui? - Quem essa negra
pensa que é para fazer esse trabalho aqui, agora? Tu chegaste agora, chegaste ontem! Esse espaço é meu!
Eu sempre estive aqui! E na verdade, não é para tirar espaço de ninguém, para que a gente possa dividir os
espaços, que a gente possa disseminar conhecimento. (Prof.ª Ísis Angela)
Nesse posicionamento da professora Ísis Angela, a coexistência cede lugar à não-
aceitação da diferença que adentra um espaço ainda avesso a práticas e pessoas que o tensionem
quanto ao que fora até então - um espaço de normalidade branca. E a pergunta “O que tu queres
fazendo aqui?” (Prof.ª Ísis Angela), em uma perspectiva de pensamento colonial, revela-se uma
das facetas mais cruentas da colonialidade: a tentativa de manter, com base na fixação de lugares
e identidades, a sociedade social e racialmente hierarquizada.
Colonizar, entre outras coisas, implica imposições, inferiorizações, negações. Implica a
despersonalização do outro, conferindo-lhe uma identidade inferiorizada, estereotipada. Os
estereótipos, geralmente forjados em sociedades produzidas por meio de modelos sociais e
institucionais rigidamente hierarquizados, sinalizam para uma junção de ideias preconcebidas
com expectativas/fantasias de desempenho e de ameaças, alimentadas por quem se posiciona
social, cultural, política e, em sociedades racistas, racialmente superior em relação à construção
de um “outro” inferiorizado. O estereótipo, na situação colonial, encontra sua validade na força
da ambivalência (BHABHA, 2014). Uma ambivalência que:
[...] garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas
estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística
e predictabilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser
provado empiricamente ou explicado logicamente (BHABHA, 2014, p. 118).
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A ambivalência, nesses termos, pode ser entendida, talvez, como forças em estado
agonístico
- o outro é simultaneamente individuado e marginalizado e, também,
simultaneamente, dele se constroem tanto efeitos de verdade possíveis como se atribuem efeitos
de realidade ao dito: “ele p o dito”. Dessa forma, a ambivalência se mostra como uma das
condições de adentrar no discurso colonial, que “produz o colonizado como uma realidade social
que p ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível” (BHABHA,
2014, p. 124).
Apreensível e visível, porque fixado em representações estereotipadas, compondo uma
totalidade que se constitui em um jogo de poder. Um
“outro”, porque marcado por essa
ambivalência, que se encontra na fala da professora Ísis Angela, a qual, ao ser perguntada sobre
como as culturas negras entram na escola, relatou suas experiências de viver na cidade de Novo
Hamburgo, como pessoa negra, a partir da segunda metade da primeira década do séc. XXI:
E me assustava muito. Andar pela cidade, circular no ônibus e as pessoas te olharem com estranhamento;
quase uma comoção quando tu entras de turbante ou com as minhas roupas! Isso para mim é o meu
cotidiano, mas assusta algumas pessoas ainda. Ir no centro e as crianças chorarem, porque nunca viram um
negro na vida. E de tu não enxergares pessoas negras circulando pelos espaços comuns, no centro. (Prof.ª
Ísis Angela)
Uma ambivalência em que as diferentes experiências de afirmação do ser negro tendem a
ser vistas como estranhas na lógica da colonialidade germânica, porque segundo ela essas não
têm razão de aparecerem, pois são entendidas como inferiores ou inexistentes. Daí a estranheza
quando da sua visibilidade. Daí, também, a inconformidade por parte da colonialidade branca
quando espaços de poder, tradicionalmente ocupados pela branquidade, passam a compor os
cenários de possibilidades de ocupação por parte de pessoas negras.
A narrativa da professora Lyntia sobre suas experiências como diretora de uma escola de
Educação Infantil também está associada às marcas da colonialidade germânica em Novo
Hamburgo. Ao concluir sua fala sobre a pergunta anterior, que lhe fora feita quanto às
dificuldades de se trabalhar a cultura afro em uma cidade, em que há um imaginário de
predominância de uma cultura germânica, perguntou-se a ela sobre racismo na escola: Há
racismo, hoje, na escola? Como se manifesta? Como a escola enfrenta, isso? A sua resposta é
marcada pelos cenários de ambivalência de uma afirmação da negritude, situando-os como
necessidade de “perceber o fio” (Prof.ª Lyntia). Uma necessidade que remete a um dizer de
Fanon (2008) quando das suas discussões em relação às possibilidades de compreensão das
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relações de dependência, produzidas em uma situação colonial: “O problema da colonização
comporta [...] não apenas a intersecção de condições objetivas e históricas, mas também a atitude
do homem diante dessas condições” (FANON, 2008, p. 14). Pela fala da professora Lyntia, quem
melhor pode compreender isso é quem vive(u) esse processo de forma objetiva. Assim, sobre o
racismo presente nas escolas, ainda velado e não enfrentado, disse:
A escola não enfrenta. Porque ele é muito velado. É uma coisa que existe, que tu que és negro percebe, tu que
és branco, jamais vais perceber, mas porque és negro, percebe. [Todo negro percebe?] Todo negro percebe.
E não é que é da cabeça do negro! [...] Eu não consigo te explicar isso, porque é uma coisa que está ali, mas
tu não pegas. Se tu pegasses, tu conseguirias perceber o fio, de onde surge, da onde vem, porque vem. Eu vou
te contar uma história minha muito particular. [...] No final dos anos 90 para os inícios dos anos 2000, eu
assumi o cargo de direção de uma EMEI aqui em Novo Hamburgo. [...] E lá pelas tantas, foi a semana de 20
de novembro, o [jornal] NH foi na minha escola e quis fazer uma reportagem. [...] Fui página central do NH.
“Novo Hamburgo já tem diretora negra!” [...] A partir daí, gerou um caos no grupo de professoras que
faziam parte da minha equipe de trabalho, naquela ppoca. Elas me chamaram e disseram assim: “Olha aqui
ó, ninguém vai se fazer em cima de nós, em cima de mim não! É porque fez aquela reportagem do NH, o
trabalho p feito por nós!” Então me lançaram na cara: “Como p que p: tu estás te fazendo em cima de nós?”
E eu era negra! O resto das professoras eram brancas. E a SMED o que fez? Começou a fazer reunião.
“Vamos tirar os fantasmas dos corredores.” Que fantasma era esse? (Prof.ª Lyntia).
“Perceber o fio”, como ensina a professora Lyntia, olhando para as tramas que tecem sua
experiência de professora negra, em um cargo de direção à frente de um grupo de professoras
brancas, passa pelo embrenhar-se na teia heterárquica (GROSFOGUEL, 2008) que entrelaça
diferentes fios, forjando nós intensamente fechados no sentido de impedir sua abertura/decifração
quanto ao que os constitui em termos de condições objetivas e subjetivas. A abertura desses nós,
como se percebe na própria narrativa da professora Lyntia, passa pela percepção do fio. É um fio
que se tece no jogo das relações de poder em torno de afirmações identitárias marcadas pela
colonialidade branca, forjando-se como normalidade mediante a negação, a anulação e a
consequente invisibilização de tudo o que pode feri-la em sua pretensa normalidade. Nesses
termos, “perceber o fio” passa por pensar nos desafios de outros lugares de enunciação capazes
de tensionar a matriz colonial (WALSH, 2010b).
4 Dos desafios de outros lugares de enunciação
A potência do movimento feito por professoras/res, como questionamento às bases
epistemológicas universalistas e como fomento de pensamentos, de práticas e experiências que
desafiam a “matriz colonial”
(WALSH, 2010b), mostra-se presente desde seus lugares de
enunciação. Lugares marcados pela luta por afirmação de uma identidade, de uma história que,
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embora negada pela história escrita, manteve-se viva pela tradição oral, como memória coletiva
que se tece a cada recontar, a cada lembrança ressignificada e revivida nas trajetórias de
existência das populações negras. Assim, em uma análise quanto aos desafios de se trabalhar com
as questões da História e da Cultura Afro-Brasileira em uma comunidade de colonialidade
germânica - quando perguntado à gestora Jurema se existe alguma implicância em se trabalhar
essas questões nas escolas
- tensiona esse lugar colonial hegemonizado e aponta para a
perspectiva de um “entre-lugar” (BHABHA, 2014) como lugar de enunciação. Nas suas palavras:
[...] temos muitos professores que são de descendência germânica, alemã, eles ficam com receio de trabalhar
sobre cultura-afro. Dizem o seguinte: “Por que só trabalhar cultura-afro?” Eu chegava e dizia para eles:
“Só trabalhar a cultura-afro é porque foi um povo que foi esquecido, que não teve sua história contada -
essa história vem sendo contada mais com tradição oral. Que os livros surgiram agora que falam sobre este
povo, essa história”. E aí os professores diziam: “Pensando por esse lado, p verdade!”. (Gestora Jurema)
O que a gestora Jurema aponta mostra-se como um processo de negociação que se forja
no encontro de culturas (BHABHA, 2014). Assim, o que se encontra em jogo é a compreensão de
que existem diferentes lugares de enunciação, diferentes formas de contar a história, diferentes
epistemologias, diferentes construções identitárias que se mantêm vivas em suas matrizes
culturais. Nesses contextos, a menção “Pensando por esse lado, p verdade!” (Gestora Jurema),
mais que a explicitação de uma concordância e de um reconhecimento quanto às diferenças
presentes no encontro de culturas, por parte dos “muitos professores que são de descendência
germknica, alemã” (Gestora Jurema), atenta para a relativização da verdade e de sua produção.
Ou seja, o que se via como único - o conhecimento e a verdade, contidos nos livros - passa a se
revestir de contextualidade e, assim, torna-se tão somente mais uma forma de conhecimento e
mais uma verdade, abrindo-se para horizontes de pluralidade. Isto é, outras epistemologias, outras
histórias, outras culturas, outras experiências de viver, outros lugares de enunciação, outras
verdades são visibilizadas.
A expressão “sentir essa cultura”, utilizada pela professora Rosa, quando questionada
sobre a formação docente em relação à Lei, promovida pela Secretaria Municipal de Educação,
marca esse lugar de produção de visibilidade, que é, também, um lugar de disputa, marcado por
relações de poder. Nas suas palavras:
Era um curso muito rico em termos de cultura, em termos de Lei. Só que faltou empenho do município
também de que esses professores pudessem realmente participar nas práticas. [...] que o professor pudesse
realmente sentir essa cultura. [...]. Acho muito forte isso [imaginário da cultura alemã]. É bem forte mesmo.
Não que se desvaloriza, mas intrinsecamente não se dá exatamente o grande valor que deveria ser. Todo o
município fazia o curso e em nenhum momento você viu isso em nada, em nenhuma mídia. (Prof.ª Rosa)
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A Prof.ª Rosa, ao falar que o professor precisa “sentir essa cultura”, fez uma expressão
corporal que lembra um abraço, aproximando-se de uma compreensão de que, nos encontros
culturais, as identificações são forjadas pelos significados que se encontram em jogo nas relações
de poder, presentes nos discursos de representação, produzidos pela cultura. Assim, “sentir essa
cultura”, como enfatizou a professora Rosa, é a possibilidade ambivalente de ser acariciado,
abraçado e confrontado por outras lógicas culturais, fundamentadas em outras epistemologias,
outras cosmologias e outras ontologias. É poder mergulhar em outro cenário e se permitir a
interpelação com a diferença. É, ainda, deixar-se possuir/constituir por uma diferença que obriga
ao questionamento/tensionamento de representações que já não dão conta da experiência vivida.
Questionamento/tensionamento que se produz como abertura ao diálogo com a diferença, como
abertura para a produção de outras representações, em diálogo com outros discursos de produção
de saber/poder.
Ao estabelecer uma relação entre as diferentes potencialidades que o “sentir essa cultura”
(Prof.ª Rosa) traz e algumas marcas da colonialidade germânica em Novo Hamburgo - uma
colonialidade cristã e branca -, é possível entender a profundidade da crítica da professora Rosa
em relação ao processo de formação docente para a inserção da História e da Cultura Afro-
Brasileira nas escolas. O que a professora Rosa teceu como crítica a uma dupla ausência - não
poder “sentir essa cultura” e maior visibilidade ao evento - constitui-se em uma crítica ao
pensamento colonial, que inventa a diferença a partir da mesmidade (SKLIAR, 2003): invenção
do outro a partir de si, que não é o outro. É o outro inferiorizado, subalternizado e que, em uma
lógica de tolerkncia tecnocrática, “marca, de uma vez e para sempre, a distkncia entre o ‘eu’ e o
‘outro’, a macabra distkncia entre o ‘nós’ e o ‘eles’” (SKLIAR, 2004, p. 83).
O que se encontra em jogo na lógica de tolerância tecnocrática não tensiona as formas de
invenção de um outro e sequer implica possibilidades de pensar o “outro em relação a nós
mesmos” (SKLIAR, 2004, p. 82), a não ser como algupm a ser tolerado. Assim, a tolerkncia
tecnocrática não passa de uma estratégia de reafirmação do outro inventado pela mesmidade.
Essa é a potência compreensiva que deriva do dizer da professora Rosa: “Não que se desvaloriza,
mas intrinsecamente não se dá exatamente o grande valor que deveria ser”. Ou seja, na
perspectiva da mesmidade, em que o outro é inventado pelo mesmo, esse sempre será algo menor
a ser tolerado em um universo em que o mesmo é equivalente ao normal, verdadeiro e universal,
três das grandes invenções do pensamento colonial.
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Reconhecer que há críticas à tolerância não significa defender a intolerância. O desafio
está em mudar o discurso sobre a intolerância, implodindo-a em seus sentidos anteriores. Isso
significa que já não se pode usá-la mais para “diferir a morte do outro” (SKLIAR, 2004, p. 83) -
seu primeiro sentido -, nem para referir “uma virtude própria do eu e/ou do nós” (SKLIAR, 2004,
p.
83)
- segundo sentido. Em uma acepção à fala da professora Rosa, isso passa pela
possibilidade de conferir valor ao outro, procurando minar a “separação do ‘eu’ e do ‘outro’, na
medida em que tudo é diferença, tudo é alteridade: alteridade em mim e alteridade no outro”
(SKLIAR, 2004, p. 83).
Daí a importância de “sentir essa cultura” (Prof.ª Rosa). É um sentir que, também,
contribui para o engajamento da docência em torno de processos educativos voltados à afirmação
da identidade negra
- uma reivindicação histórica do Movimento Negro (GOMES, 2011),
transformada em desafio que justifica a necessidade da implementação da Lei 10.639/2003,
concebendo a professora e o professor como elos desse tipo de educação (LEITE, 2010). Quanto
a essa perspectiva do engajamento fomentado pelo “sentir essa cultura” (cultura afro), destaca-se
a fala da professora Violeta, ao avaliar a possibilidade de docentes se tornarem multiplicadores de
conhecimentos construídos em seus processos de formação continuada:
Qual foi a ideia da Secretaria daquele período? De que esses professores que fizessem os cursos atuassem
como multiplicadores [...], mas a gente vê que realmente essa ideia do multiplicador não vinga muito. Acaba
sendo realmente aquelas pessoas que se interessam pela causa, professores mais engajados, seja pela sua
própria origem étnico-racial, seja por participarem de movimento social, seja por serem pesquisadores ou
pela comunidade, enfim, por vários motivos, engajados culturalmente, socialmente. (Prof.ª Violeta)
É um “sentir essa cultura” que passa pelo engajamento com a causa negra que, de acordo
com a professora Violeta, pode-se desdobrar em diferentes âmbitos: social, cultural, étnico-racial,
acadêmico, político, comunitário. Engajamento que passa pelo “sentir essa cultura” e que produz
identificações. Essas, em se tratando de diferentes âmbitos, a partir dos quais os sujeitos se
posicionam e se pronunciam, podem assumir diferentes contornos. Há um somar-se à luta e que,
em uma acepção a Laclau (2011, p. 93), pode ser pensada como uma “demanda equivalencial”,
que em dado momento (o momento da luta pela inserção efetiva da Lei na Educação Básica)
resulta da produção de uma “articulação transitória” de diferentes sujeitos engajados e saberes
comprometidos com uma luta, em que a diferença ocupa lugar central, tensionando identidades
hegemonizadas. Essa é uma das possibilidades de se entender que é possível mesmo àqueles/as
que não estão diretamente vinculados ao Movimento Negro, mas que de uma forma ou de outra
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colonialidade germânica.
tensionam a produção da diferença encharcada pelas relações de saber/poder, somarem-se à luta
por uma educação que implemente a Lei 10.639/2003. É nesses contextos que ganham relevância
as questões discutidas a seguir e que sinalizam para o domínio do conteúdo e o desejo de
trabalhá-lo, o comprometimento docente e a necessidade de um trabalho mais contínuo, quando
das perspectivas de se pensar as potencialidades da Lei, em um contexto de colonialidade
germânica.
5 Das potencialidades de uma educação multi/intercultural crítica
As perspectivas da multi/interculturalidade, em sua dupla potência, como argumenta
Backes (2013) - possibilidades de perscrutar os processos de produção de identidades em
diferentes culturas e possibilidades de tecer alianças estratégicas
-, oferecem-se como duas
condições com as quais se pode pensar potencialidades de uma educação multi/intercultural
crítica a partir da inserção da temática étnico-racial, em escolas da Educação Básica, em
contextos de colonialidade germânica. O domínio do assunto e o desejo de trabalhá-lo, apontados
pela professora Flor como desafios à prática docente - quando provocada a falar sobre como
percebe o trabalho com as questões de cultura afro - podem ser associados, respectivamente, com
a dupla potência da multi/interculturalidade crítica. O domínio do assunto (Prof.ª Flor) permitirá
perscrutar diferentes processos de construção de identidades e compreendê-los quanto às relações
de poder implicados e, o desejo de trabalhá-lo
(Prof.ª Flor), oferece condições de
aproximação/interlocução com outras diferenças. Em suas palavras:
[...] para eu chegar numa sala de aula e falar sobre o assunto, eu tenho que ter domínio sobre ele. [...] Acho
que um dos maiores desafios é que realmente os professores queiram que essa causa seja trabalhada em sala
de aula e busquem um pouco mais de conhecimento sobre o assunto. Não é uma tarefa fácil, eu também estou
sempre lendo, sempre buscando [...]. (Prof.ª Flor)
O desejo de trabalhar as questões da História e da Cultura Afro-Brasileira, aliado ao
comprometimento com essa causa, apropriando-se dos conhecimentos/saberes construídos pelo
Movimento Negro em torno da causa negra
(GOMES,
2017) é o que potencializa
pesquisas/atividades que favorecem à criança “se sentir desse país em que ela vive”, expressão
utilizada pela professora Flor para referir-se à pertinência de se trabalhar, na escola, questões de
História e Cultura Afro-Brasileira que envolvem a participação social, política, econômica e
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cultural das populações negras na construção do Brasil e as suas lutas de resistência à escravidão,
ao preconceito e ao racismo.
A criança poder “se sentir desse país em que ela vive” (Prof.ª Flor) é, possivelmente, a
tradução mais próxima do que se pode conquistar a partir de uma educação multi/intercultural
crítica: o empoderamento de crianças e adolescentes educandas/os, a partir da apropriação de
conhecimentos que lhes permitam compreenderem a si mesmas/os e à sociedade brasileira em
suas diferenças culturais e lutas de afirmação identitária. E, nesse sentido, aponta para a potência
de pensar a prática pedagógica, demandada pelo teor da Lei 10.639/2003, na perspectiva de uma
prática intercultural crítica e interepistêmica, como ressaltam Candau (2012; 2014a) e Walsh
(2010b).
Fomentar práticas interculturais críticas e interepistêmicas é, também, construir
possibilidades de tensionar uma das dificuldades muito presente na colonialidade germânica -,
manifestada nas falas de todos/as os/as participantes da pesquisa: a não-aceitação de certos temas,
com destaque para a religiosidade de matriz africana. Religiosidade que faz parte da vida como
um todo e que se mostra de difícil compreensão por uma lógica disciplinar, uma das marcas da
epistemologia ocidental, em que as diferentes dimensões/manifestações do humano
(epistemologia, cultura, história, cosmologia, política, economia) parecem manter uma relação de
independência entre si, negando sua ambivalência (BAUMAN, 1999). Daí a expressão “choques
de religiosidade”, como referiu o professor Bira, mencionando algumas das dificuldades para as
culturas negras entrarem na escola. Foi-lhe perguntado se entram na escola e como entram, ao
que respondeu:
[...] a resistência e o preconceito ainda são muito grandes. [...] A gente consegue falar de quase tudo, mas
quando chega na religiosidade, o professor fica constrangido, por quê? Porque não sabe como esse assunto
vai ser levado para a casa pelos alunos. Então, muitas vezes, acontecem esses choques de religiosidade.
(Prof. Bira)
“Choques”, expressão utilizada pelo professor Bira, é um dos desdobramentos possíveis,
produzidos a partir de um encontro cultural. Encontros culturais produzem tensões. As tensões
envolvem potência, força. Força que, inclusive, se mostra como tal, mesmo quando voltada a
manter algo como está - uma força/potência contrária à mudança. E é a esse tipo de choque que o
professor Bira fez referência. Choque como força conservadora e reativa, que procura paralisar as
possibilidades de mudança que podem derivar de negociações em encontros culturais.
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Contudo, há, também, os choques que irrompem como tensão, produzindo fissuras,
infiltrações, rupturas, fusões, (re)combinações que levam a transformações. A professora Flor,
quando questionada sobre possíveis mudanças quanto às crianças e aos adolescentes a partir da
inserção da História e da Cultura Afro-Brasileira, falou entusiasmada, de algumas situações que
ela vivencia a partir do seu trabalho como professora de dança:
A gente percebe que muitas vezes eles começam a se dar conta de algumas atitudes que eles tinham
anteriormente e que acabavam sendo atitudes preconceituosas e que, já tendo conhecimento a respeito
daquele fato, começam a agir de uma maneira diferente. As alunas que estão comigo na dança perguntam:
“Mas a gente vai aprender samba?” Claro! O samba também faz parte da Cultura Afro-Brasileira. Então,
aprendendo a questão do samba, as danças afro em si, que são movimentos que estão relacionados a muitas
questões da natureza, porque a questão dos africanos com a natureza é muito forte, tanto que as entidades,
os orixás, estão sempre relacionados à alguma coisa com a natureza. Então, os gestuais que elas fazem, os
movimentos, tudo isso elas aprendem. (Prof.ª Flor)
O relato da professora Flor, em uma perspectiva do trabalho com os educandos, vem ao
encontro do “sentir essa cultura”, que a professora Rosa trouxe em relação aos processos de
formação continuada de docentes, como já discutido no item anterior. É um “sentir essa cultura”
possível, porque o conhecimento sobre questões afro pode ser experienciado pelos educandos
como prática social, cultural, corporal, rítmica, dançante, epistêmica e ôntica. É uma
aprendizagem que se experiencia como corpo e espírito integrados, produzindo outros olhares em
relação a si mesmo como sujeito que se produz e é produzido em uma cultura que se encontra em
interação com outras culturas, outras epistemologias, outras cosmologias e ontologias, outros
olhares em relação ao mundo, quanto à sua organização social, política e econômica, e em
relação aos outros, quanto à produção das diferenças culturais e que, em uma sociedade
hierarquizada social e racialmente (QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2008), tendem a ser
transformadas em desigualdade.
A aprendizagem que deriva da experiência do encontro de culturas (BHABHA, 2014) e
que adentra, a partir da Lei 10.639/2003, os espaços escolares da Educação Básica, produz
diferentes tensionamentos que passam a pautar algumas questões que até então não pareciam
entrar/estar em disputa. Assim, embora já se tenha conquistado, em diferentes frentes, espaços de
participação e de reconhecimento, garantindo maior visibilidade à negritude, torna-se importante
manter as apostas em atividades mais continuadas de inserção da História e da Cultura Afro-
Brasileira nas escolas, seu estudo e aprofundamento, que permitam o reconhecimento da
participação negra na construção social, política, econômica e cultural da cidade. Ao mesmo
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tempo, possibilidades de desconstrução de estereótipos e inferiorizações produzidos por
sociedades social e racialmente hierarquizadas. É o que a professora Violeta, diante da pergunta
sobre como as culturas negras entram na escola, que espaço elas têm hoje e como vão entrando
ou se infiltrando, nomeia como necessidade de “chegar a um outro patamar” (Prof.ª Violeta).
“Um outro patamar” que, visualizado em suas potencialidades de compreensão e
informação sobre a “história do negro e dos afrodescendentes no nosso país” (Prof.ª Violeta); de
desconstrução do “estereótipo do negro ainda pautado do negro escravo”, de problematização e
desconstrução da branquidade, percebem-se próximas do que Candau
(2014b) chama de
educação intercultural crítica. Ou seja, nesse “outro patamar” (Prof.ª Violeta) encontram-se em
jogo as possibilidades de ir além de um olhar que situa as questões étnico-culturais apenas no
campo das relações humanas, em uma perspectiva de criação de mecanismos de respeito, que
garantam a convivência solidária com as diferenças. Encontram-se, ainda, em jogo, as
possibilidades de superação das perspectivas interculturais funcionais que tendem apenas a
acomodar as diferenças, preferencialmente assimilando-as através de integrações subalternizadas
à cultura hegemônica.
O “outro patamar” (Prof.ª Violeta), em uma concepção de educação multi/intercultural
crítica, supõe compreender os movimentos e processos de construção das culturas e identidades,
mediante articulações e negociações, envolvendo desestabilizações,
(re)combinações e
hibridizações, com destaque para as relações de poder/saber presentes nesses processos de
construção. Assim, o “outro patamar” (Prof.ª Violeta) supõe a desconstrução de estereótipos e
de imagens “congeladas” da história e da cultura afro, superando o patamar da redução da
História e da Cultura Afro-Brasileira à escravidão negra (SILVA, 2013) e de abordagens de
questões étnico-raciais com teor mais moralizante. A produção de rupturas com abordagens mais
moralizantes sobre questões étnico-culturais e com representações de negros que remontam ao
período colonial, pode ser potencializada a partir de uma maior aproximação com estudos
acadêmicos (COELHO; COELHO, 2013) e, também, com outras pedagogias, como as das
Africanidades e da Prática Pedagógica Griô
(PAULA, 2013), fomentando a reinvenção, a
recontagem, a reedição e a reescrita de sua(s) história(s).
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6 Considerações finais
A pesquisa mostrou que os/as professores/as negros/as desenvolvem diferentes práticas
pedagógicas que, construídas numa perspectiva multi/intercultural crítica e decolonial, colocam
em xeque a colonialidade germânica.
As falas das seis professoras e do professor, participantes da pesquisa, carregam as marcas
de um engajamento com a causa negra pautado por estratégias de sobrevivência, de resistência,
de protagonismo, de inserção à sociedade local, de lutas contra a discriminação racial que se
traduzem, por sua vez, em construção de estratégias e iniciativas decoloniais como possibilidades
de se pensar/articular/construir outras lógicas de compreensão de mundo, de vida, de sociedade,
de cidade.
Nesses termos, os espaços das escolas da Educação Básica, são vistos em sua
potencialidade transformadora das condições de grupos historicamente subalternizados e
inferiorizados. E a luta, nesses espaços, em torno de uma afirmação maior da negritude é uma
luta em estado agonístico (BHABHA, 2014). Uma luta tecida como tensão, ao estilhaçar práticas
monoculturais e, como potência, ao favorecer práticas pedagógicas multi/interculturais críticas.
Entretanto, apesar da potência dessas lutas e dessas práticas, a questão que fica para a
reflexão é até quando essa luta será uma luta quase restrita aos/às professores/as negros/as?
Quando essa luta se tornará uma luta de toda a sociedade, tornando-a mais plural? Quando a
educação deixará de ser um espaço privilegiado da cultura branca?
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